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ANDAR A PÉ: AS METAMORFOSES DA PEREGRINAÇÃO E A TRANSCENDÊNCIA DO SUJEITO CAMINHANDO

Introdução


O ato de caminhar é uma condição biológica e cultural indispensável ao ser humano. Conforme Foley (2003), as longas travessias a pé na busca por abrigo, alimento e melhores condições de existência material, foram a base primordial da sobrevivência dos mais longínquos antepassados da espécie humana[1].


Mas a caminhada, ao longo de um processo civilizador, revestiu-se de várias roupagens, servindo a diversos propósitos sociais e culturais em contextos históricos distintos, inclusive, apresentando entendimentos contraditórios sobre a sua prática em uma mesma sociedade de uma mesma época, tendo uma consideração ostentatória e, ao mesmo tempo, degradante, a depender de quem dela fazia uso, quando e como (AUGUSTI, 2019).


Atualmente, a caminhada representa, em seu aspecto preponderante, uma prática voltada à saúde, ao bem-estar e qualidade de vida. Tais formas de expressão podem ser manifestadas no lazer como atividades de aventura na natureza (trilhas ecológicas, travessias em serras e montanhas), percursos por estradas rurais e pelo campo, dentre outras. Assim, a prática da caminhada está inserida em diversos contextos sociais e culturais que revelam a criatividade e o empenho humano em buscar opções que atendam aos mais variados tipos de necessidades que satisfaçam os aspectos essenciais da existência para além da matéria: paz, harmonia e felicidade (AUGUSTI, 2014).


Andar a pé ou caminhar é, portanto, uma prática corporal. Na pesquisa que tem como foco as práticas corporais há de se considerar as várias dimensões que tal objeto comporta. Para a Ciência da Motricidade, uma prática corporal pode ser vista a partir da ótica da biologia, da sociologia, da história, da filosofia, da antropologia e de suas relações recíprocas que permitirão análises e interpretações profundas sobre o tema. O estudo das práticas corporais deve considerar, logo, a dinâmica da sociedade contemporânea que configura o corpo como um território de construção de identidades e estilos de vida que expressam diferentes visões de mundo, apresentando o corpo como espaço de construção de significados simb ólicos no “uso que dele fazemos” (...) e que “compõem um universo ao qual se inscrevem valores e comportamentos” (BUENO; CASTRO, 2006, p.10).


Conforme Murad (2009) as práticas corporais institucionalizadas constituem-se em interessantes objetos para a pesquisa em Ciência da Motricidade em sua interface com as Ciências Humanas e Sociais. O estudo da corporeidade a partir de uma abordagem transdisciplinar resulta de uma complexa articulação entre múltiplos saberes que conduzem a novas instâncias da produção intelectual, novas reflexões, conceitos e categorias.


Deste modo, superados os obstáculos epistemológicos que regulam e delimitam os campos dos saberes acadêmicos, por meio das relações recíprocas entre pesquisadores e intelectuais da Educação Físicas e das Humanidades, avança-se na produção do conhecimento sobre o corpo humano e as práticas corporais.


Rompem-se as fronteiras que marcam os discursos e as práticas de cada campo do saber acadêmico e os intercâmbios estabelecidos promovem uma melhor compreensão do objeto e o enriquecimento da ciência em sua totalidade (MURAD, 2009).


Dadas essas considerações, este artigo se propõe a uma análise sobre a prática da caminhada em sua vertente religiosa, que se expressa por meio do ato de peregrinar. A peregrinação, portanto, é o objeto em que o olhar perscrutador se lança para a compreensão do que pode a caminhada enquanto prática corporal. Visa compreender os elementos simbólicos e rituais que permeiam e perpassam o ato de peregrinar e que conferem a esta ação uma aura de possibilidades para a transformação pessoal.


Trata-se, assim, de enxergar na caminhada um elemento indispensável ao desenvolvimento espiritual do ser humano, algo para além de um exercício físico para modelar o corpo ou promover melhorias fisiológicas. No mais, o estudo aqui apresentado, considera as mudanças de entendimento e as práticas decorrentes das formas de manifestação da peregrinação em determinadas épocas e que extrapolaram e mesmo deturparam o seu significado primordial.


[1] Atualmente, ainda se verifica em várias partes do mundo, milhares de pessoas que se deslocam a pé em busca de abrigo, segurança, alimentos e água. O fenômeno das migrações a pé pode ser observado na América Central (mexicanos, hondurenhos), na África (somális, congoleses, nigerianos e outros), Oriente Médio (sírios, afegãos e outros) e América do Sul (venezuelanos), onde todos b uscam melhores condições de vida em países que poderiam oferecer tais oportunidades.

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