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Foto do escritorMarcelo Augusti

A CORRIDA E A SUPERAÇÃO DOS LIMITES

Atualizado: 6 de set. de 2022


O conhecimento ou a experiência do Infinito pode começar em qualquer lugar e expressar-se por meio de qualquer coisa, pois o Divino está em tudo e tudo é o Divino

(Sri Aurobindo)


A autoimposição é quando estipulamos que determinadas coisas não podem ser realizadas. A autoimposição, entretanto, não é algo que vem de dentro de cada indivíduo. Por força das circunstâncias exteriores, uma determinada regra ou “verdade” (científica, filosófica ou religiosa, não importa) se impõe às pessoas, e as levam a crer que “isso ou aquilo é impossível”. Essas imposições exteriores têm origem em uma ordem de uma autoridade superior, isto é, alguém considerado socialmente importante e que concluiu, com base em seus experimentos ou estudos, que há limites para algumas coisas. Ultrapassar esses limites seria pôr em risco a própria vida e, além disso, tentar desrespeitar esses limites seria uma ofensa às convenções da sociedade.


A autoimposição, portanto, provém de um paradigma dominante. Um paradigma é formado por conceitos que definem um modelo a ser seguido por todos. Uma vez adotado um paradigma como uma “verdade eterna”, tudo se torna estanque, limitado, sem possibilidades de evolução. Foi o filósofo e cientista Thomas Kuhn, em sua obra A estrutura das revoluções científicas (1962), quem desvendou as práticas que circundam as investigações da ciência. Ao compreender o modus operandi da comunidade científica, Kuhn considerou que o conhecimento progride a partir dos paradigmas, ou seja, dos conceitos que fundamentam aquilo que deve ser investigado (o objeto de estudo), os modos de investigar (quais métodos devem ser utilizados), como interpretar (qual teoria filosófica deve ser adotada para direcionar o resultado) e, por fim, a representação do modelo como algo universalmente reconhecido para solucionar os problemas da vida.


Para o conhecimento avançar, portanto, os paradigmas vigentes devem ser postos à prova. Um paradigma que se perpetua é um atraso na evolução da humanidade em direção à sua excelência. Logo, os paradigmas vigentes devem ser testados por outras maneiras de se buscar o conhecimento da realidade. Isso quer dizer que devemos olhar para o objeto de estudo a partir de outras perspectivas metodológicas e interpretativas, para que os conceitos se renovem, se atualizem e um novo modelo de conduta e procedimentos possam propiciar um passo importante na direção da evolução e da excelência. Karl Popper (A lógica da pesquisa científica, 1959) e Paul Feyerabend (Contra o método, 1975), para citar apenas esses dois, deixaram importantes contribuições na área da filosofia da ciência e que mostram o quanto podemos evoluir ou estagnar a partir do conhecimento que se renova ou das “verdades” que se perpetuam.


A quebra ou ruptura de um paradigma, portanto, é o que torna possível a superação dos limites. Um limite é uma barreira autoimposta. Acreditamos que certas coisas não são possíveis, simplesmente porque ideias foram inculcadas em nossa mente pelas autoridades competentes. Obviamente, cada época tem seus avanços e retrocessos, seja no conhecimento ou na qualidade da experiência humana. Sabemos, pela história, que os postulados da teoria de Nicolau Copérnico, de 1543 (ano da publicação de sua obra De Revolutionibus Orbium Coelestium - Das revoluções das esferas celestes), somente puderem ser evidenciados quando Galileo Galilei, a partir do ano de 1610, pôde observar com mais nitidez o movimento dos planetas no céu. Isso somente foi possível porque Galileo utilizou-se de um telescópio/luneta, que ele ampliou a capacidade de alcance, ou seja, realizou um avanço tecnológico em um instrumento de observação.


A autoimposição põe limites à qualidade das nossas experiências e nos enquadra em uma condição de “sou levado a crer que” não posso fazer isso, não posso ter aquilo, não posso saber aqueloutro, etc. Esses condicionamentos, que se tornam pensamentos recorrentes, acabam por sabotar a nossa percepção da realidade e, principalmente, o poder mental ao qual somos dotados pela natureza para realizar mudanças, se torna inoperante, quase nulo, pois a nossa postura inicial já é de conformismo com aquilo que se diz único, certo e verdadeiro. A autoimposição nos torna mesquinhos e medíocres, sem que percebemos. Para vencer essa indisposição adquirida, que muitas vezes se transmuta em má vontade, e ir além do convencional, é necessário ter convicção (sem presunção) e estratégia adequada (que exige estudo, observação e prática).


Enfim. Toda essa introdução foi para fazermos uma viagem no tempo, mais precisamente, ao dia 6 de maio de 1954, uma manhã de primavera na Europa. O cenário em que se desenrolou o então maior desafio do esporte mundial, foi a pista de atletismo da lendária Universidade de Oxford, cuja fundação data, aproximadamente, ao ano de 1096. Tal como na escalada do Everest, uma conquista humana aparentemente impossível, as ruínas de Iffley Road entrariam, definitivamente, para a história da humanidade, como o lugar onde um ser humano, ao superar os limites autoimpostos, abriria o portal para uma nova e ampla dimensão da realidade da performance esportiva.


Nessa manhã gloriosa, um estudante de medicina, Roger Bannister, então com 25 anos, e considerado o melhor corredor de meio-fundo da Inglaterra na ocasião, lançou-se ao desafio de percorrer a milha (1609m) em menos de 4 minutos. A milha é uma distância de corrida tradicional entre os ingleses. Em 1852, Charles Westhall percorreu a distância em 4’28” e, a partir de então, a distância tornou-se popular e clássica. Muitos corredores ingleses de meio-fundo alcançaram a glória esportiva, entre eles Steve Ovett, Steve Cram e Sebastian Coe – esse último, considerado um dos melhores em todos os tempos, e adversário do medalhista olímpico Joaquim Cruz, nos famosos embates travados entre ambos pelas pistas do mundo nos anos 1980.


Bannister, que havia participado das Olimpíadas de Helsinque, em 1952, estava frustrado, pois a disputa olímpica não correspondeu às suas expectativas de medalha, ficando de fora do pódio. Pensou em desistir do atletismo e dedicar-se apenas à medicina. Porém, inspirado pelo seu ídolo, o corredor Sydney Wooderson, recordista da milha nos anos 1930 (4’06”4), Bannister estabeleceu como objetivo supremo da sua vida a superação da barreira dos 4 minutos. E por que, afinal, havia essa barreira? Qual mistério envolvia a milha sub4?


Não havia nenhum mistério. Mas, no século XIX, cientistas e médicos, estudando o coração humano, decretaram que, se um indivíduo realizasse um esforço físico tremendo, o coração poderia explodir, literalmente, na caixa torácica. O esforço físico necessário para completar a milha em menos de 4 minutos era considerado, por essas autoridades, como fatal a pretensão de qualquer um que se arriscasse. Quem ousasse, certamente não escaparia. Imagine alguém correndo e o coração explodindo dentro do peito... Uma cena estarrecedora... Um assombro... Quem iria querer passar por isso? Que morte terrível!


Convicto de que seria possível, Bannister decidiu por encarar o desafio. Sua estratégia envolvia dois colegas de equipe, Chris Chataway e Chris Brasher, que seriam os marcadores de passo ou “coelhos”, como são denominados, no jargão da corrida. Eram eles os auxiliares que ditariam o ritmo inicial para poupar a energia do corredor principal. Havia toda uma expectativa na Inglaterra em torno desse desafio. Afinal, segundo os médicos da época, Bannister estava correndo, praticamente, em direção a uma morte chocante. E até pouco menos de 30 minutos para o início da corrida, algumas dúvidas surgiram, pois estava ventando e Bannister pensou em desistir, pois, com o vento, as coisas ficariam mais difíceis.


Todavia, Bannister foi convencido pelos seus “coelhos” de que teria que seguir adiante, que eles garantiriam o ritmo inicial. E assim sucedeu. A primeira metade, Brasher passou com 1’58”. Um pouco mais adiante, Chataway assumiu, levando Bannister no seu encalço. Próximo da última curva, ao ouvir a multidão enlouquecida, Bannister acelerou, ultrapassou Chataway e disparou como um raio até linha de chegada. Ao cortar a fita, desabou, exausto. Por breve instante, achou que havia morrido. Estava atordoado. O resultado ainda não fora divulgado. O cronometrista oficial fazia um certo drama. Mas quando Norris McWhirter iniciou o anúncio do tempo de prova, a multidão entrou em êxtase, simplesmente quando ele disse “três...”. A barreira fora superada: 3’59”4.


Mas Bannister não apenas obteve êxito como um desafio pessoal, algo até então, impossível de ser realizado por um ser humano. Uma barreira mental coletiva fora superada. No mês seguinte, após o feito extraordinário de Bannister, John Landy, um australiano, faria a marca de 3’57”9. Nos três anos seguintes, outros quinze corredores também romperam com a barreira dos 4 minutos. De 1954 até os dias atuais, consta-se que mais de 20 mil corredores fecharam o percurso abaixo da “meta impossível”. O detentor do recorde mundial, atualmente, é o marroquino Hicham El Guerrouj, que em 1999 marcou 3’43”13. Em nenhum desses atletas o coração explodiu no peito, a não ser pela satisfação.


A realização de Roger Bannister alterou a percepção dos corredores, em todo o mundo, em relação às suas possibilidades, objetivos e expectativas. O paradigma da milha havia sido superado. Bannister mostrou ao mundo que o “impossível” era possível e que o corpo humano pode alcançar feitos, até então, inimagináveis. O feito de Bannister nos leva a refletir sobre as barreiras que acreditamos existir e que, na verdade, são apenas imposições de uma mente iludida, condicionada por comportamentos conformistas e derrotistas. “A mente escraviza, a mente liberta”, alertava Sidarta Gautama, o Buda.


Bannister deu o testemunho de que o Infinito está em nós; de que uma disputa atlética, se investida de um sentimento de superação que extrapola o mero benefício individual, pode ser um momento de expressão do Divino em nós. Basta não darmos atenção aos pensamentos recorrentes que refletem a mentalidade coletiva e a autoimposição. Temos que acreditar por nós mesmos. Se tivermos uma convicção inabalável, as portas se abrirão para uma nova realidade.





A terra parecia se mover comigo. Eu encontrei uma nova fonte de poder e beleza, uma fonte que eu nunca soube que existia

(Sir Roger Gilbert Bannister, 23/Mar/1929 – 03/Mar/2018)




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