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Foto do escritorMarcelo Augusti

A FORÇA DA CRIAÇÃO E O PODER DA RECONCILIAÇÃO




Sarvam Khalvidam Brahman

“Tudo isso é Brahman”

(Chandogya Upanishad)



São as narrativas mitológicas da tradição védico-bramânico-hinduístas que dão suporte aos ensinamentos do yoga. Yoga, como sabemos, é unir, integrar, harmonizar. É pelo yoga que os opostos se reconciliam, e a existência mantém o seu perfeito equilíbrio dinâmico. Por isso, quando a força da criação que a tudo impulsiona se insurge contra a vida, o equilíbrio deve ser restaurado pelo poder da reconciliação.


Uma das narrativas mitológicas mais difundidas na Índia conta-nos sobre a razão do nascimento de Krishna. De acordo com esse conto, uma legião de demônios havia se espalhado pela superfície da Terra, aterrorizando a todos, causando muita destruição e instalando a desarmonia entre os seres terrenos.


A deusa Terra, sentindo que não poderia mais suportar tanto terror, injustiça e destruição, pediu permissão para ingressar na Assembleia dos Deuses, para suplicar sobre a sua situação. Prostrando-se diante de Brahma e dos seres celestes, a deusa Terra suplicou-lhes que olhassem para a situação dos mortais, que estavam sendo esmagados por Karsha, filho do rei Ugrasena, e que comandava o ataque feroz aos mortais. Finalizou a deusa Terra, dizendo: “Olhai por mim, pois não suporto mais o peso de tantas infâmias e iniquidades, ou acabarei vencida, tragada pelas profundezas do abismo”. Brahma e os seres celestiais, compadecidos da situação da Terra, decidiram por libertá-la de suas terríveis tormentas. Então, seguiram para a morada de Vishnu, o Ser Supremo, para levar-lhe as queixas da Terra e sua petição, para que Vishnu a libertasse de seu sofrimento.


Chegando lá, permanecendo em profundo silêncio, Brahma meditou e Vishnu lhe apareceu.

Após ouvir os suplicantes, Vishnu arrancou dois fios de cabelos de sua própria cabeça, um escuro e um louro, e disse: “Esses dois fios de cabelos descerão à Terra para livrá-la de seu sofrimento. O escuro será Krishna, filho de Devakí, minha esposa; e o louro será seu meio-irmão, Balarama, filho de minha outra esposa, Rohiní. Karsha tentará mata-los, mas eles passarão a infância entre os pastores de vida simples, guardando rebanhos, brincando nos bosques e campos, até o momento de seu despertar”.


Krishna e Balarama, como qualquer ser terreno, permaneceram envolvidos pelas atividades mundanas, até que, subitamente, uma façanha os tornariam conscientes de suas essências divinas. Em certa ocasião, quando passeava a sós pelo bosque, a caminho de Vrindavan, Krishna chegou a um local onde as águas do rio Yamuna turbilhonavam em brancas espumas. Esse era o covil de Kaliya, o grande rei-serpente que, com seu poderoso veneno, contaminava as águas do rio.


Krishna, ainda uma criança de sete anos, olhou para as profundezas daquelas águas e nelas se atirou para subjugar Kaliya, com a intenção de libertar os habitantes das perversidades do implacável rei-serpente. Kaliya, injuriado com o forasteiro atrevido e sem reconhecer Krishna como avatar do Ser Supremo, levantou-se furioso das águas, e com seu séquito infernal de incontáveis rainhas-serpentes e seu veneno de fogo, atacou Krishna, prendeu-lhe pelos ombros e o arrastou para as profundezas do rio. A cena foi vista por um pequeno grupo de pastores que por ali passavam. Desesperados, correram para o povoado, gritando que o rei-serpente estava devorando Krishna.


Balarama, conduzindo os moradores até o local, que estavam em pânico diante da situação, pois todos amavam o menino, viu Krishna inerte no fundo do rio, preso pela serpente. Enquanto a mãe adotiva desfalecia, o pai, em profunda tristeza, estava em choque com o que estava vendo.


Mas Balarama, o meio-irmão mais velho, que conhecia o segredo da natureza de Krishna, detendo-se com olhar penetrante, diz: “Divino Senhor dos Deuses, por que mostra tanta fragilidade humana? Não estais conscientes de sua essência divina? Tu és o criador, o destruidor e o preservador dos mundos. Essas pessoas, que são as nossas famílias terrenas, estão aterrorizadas, tomadas por desespero. Tem piedade delas. Já representastes a fraqueza humana, agora revele o seu infinito poder, levantando-se e derrotando esse perigoso inimigo”.


Ao ouvir as palavras de Balarama, Krishna lembrou-se de sua essência divina, sua consciência despertou e, com um sorriso se desenhando no rosto, aos poucos abriu os olhos; rapidamente, com suas mãos, ele golpeou o rei-serpente, livrando-se das espirais que o envolviam. Após libertar-se, começou a dançar sobre a cabeça de Kaliya, pisoteando-a inúmeras vezes, até que o rei-serpente desfaleceu.


As rainhas-serpentes, tomados de súbito pânico pela situação de seu rei, imploraram a Krishna para que ele não o matasse, pois elas não o reconheceram antes como o Ser Supremo, Senhor dos Deuses. Kaliya, recobrando a consciência, suplicou a Krishna, dizendo que ele não havia cometido nenhum mal contra a ordem do universo, mas apenas fez aquilo que a sua natureza determinara.


Disse Kaliya: Tu me criaste com força e veneno; como eu poderia agir diferente? Se tivesse feito algo diferente, estaria violando a lei que tu impusestes e que determina que cada criatura deve agir conforme a sua própria espécie. Assim, peço-lhe que poupe a minha vida, e diga-me o que devo fazer”. Krishna, em sua infinita benevolência, poupou a vida de Kaliya e o mandou para habitar a vastidão dos oceanos. O rei-serpente, então, reverenciou a Krishna e se retirou.


Esse conto mostra-nos o simbolismo dos opostos e das forças que operam em nossa vida. O rei-serpente representa a força da criação; na mitologia hindu, as serpentes são símbolos da eternidade e da sabedoria. Mas quando a força da criação, por sua natureza intrínseca, se insurge contra a vida, um desequilíbrio se instaura no universo, e necessário se faz a reparação.


Podemos observar claramente esse cenário no processo de metástase: diferentemente das células normais, as cancerosas se multiplicam de maneira descontrolada, formando tumores malignos que comprometem os órgãos afetados; tais células malignas chegam a se desprender do tumor original e migram para outros tecidos, pondo fim à própria vida. Eis a força da criação se insurgindo contra a vida!


Por mais paradoxal que seja, aqui não há nenhuma contradição. A força da criação é um fluxo divino em contínua mutação, que ora repousa tranquilamente e concede vida, ora se agita furiosamente e provoca morte; tal força apenas cumpre a sua função original, estando em perfeita concordância com a lei sagrada do universo, o dharma. Aquilo que dá vida, é o mesmo que a toma de volta. Por isso a serpente disse a Krishna: “tu me criaste assim, não podes me punir, apenas cumpro a tua lei”.


No conto, Kaliya, o rei-serpente, nada mais é do que uma manifestação de Vishnu; assim como Brahma e todos os seres celestiais; assim como a deusa Terra e todos os seus habitantes; Krishna e Balarama também são Vishnu encarnados, a cumprir a missão de reconciliação. Por isso se diz na Chandogya Upanishad (3.14.1): Sarvam Khalvidam Brahman: “tudo isso é Brahman . Tudo vem de Brahman, tudo remonta a Brahman e tudo é sustentado por Brahman”. Pois Brahman é o princípio divino que a tudo penetra, a tudo abarca; ele é Vishnu “o espírito que respira através da máscara humana”.


O jogo da vida (lila), com todas as suas ilusões (māyā) se revela no mito do nascimento de Krishna. Vishnu é ao mesmo tempo pai e filho, Senhor dos Deuses e Rei das Serpentes; o universo é seu corpo, e nesse espaço cósmico infinito, todas as contradições se reconciliam com apenas um simples gesto do Ser Supremo (como tirar um fio de cabelo da própria cabeça).


A narrativa também nos revela que cada pessoa humana carrega em si as contradições da vida: trazemos em nós a força da criação e da dispersão e, ao mesmo tempo, o poder da reconciliação e da integração. Como Brahma meditou em silêncio e Vishnu lhe apareceu, também assim devemos fazer, atentos à respiração, pois ela é o caminho que nos conduz à Presença divina que habita o “coração” de todos os seres.


Percebe-se na narrativa que o Uno está em tudo, que o Uno é o Todo. Vishnu é o Absoluto, a Essência Divina todo-abrangente, compreendendo todas as dicotomias; por meio das tensões de suas polarizações, pela infinidade de suas manifestações, ele mantém a perfeição do equilíbrio dinâmico que sustenta o universo. Vishnu é o Uno que está presente em tudo e todos.


A sabedoria do yoga nos ensina que conhecer Vishnu – a força da criação/destruição e o poder da reconciliação – é conhecer a nós mesmos: somos uma fusão de opostos, constituídos de uma natureza que ao mesmo tempo é infinita e imanifesta (o espírito), e outra que é finita e manifesta (a matéria).


É pela natureza finita e manifesta que experienciamos o mundo e, pelo despertar da consciência, nos libertamos da ignorância de nossa dualidade; é restaurando o equilíbrio “na Terra” que nos tornaremos aptos a ascender “ao Céu”.


Hari Om Tat Sat.

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