Quase nenhum de nós deseja verdadeiramente ser livre, em qualquer sentido ou profundidade que seja; entretanto, parece-me que uma das coisas mais importantes da vida é descobrirmos, por nós mesmos, como poderemos ser total e completamente livres.
(Jiddu Krishnamurti)
A compreensão do Yoga passa, necessariamente, pelo significado de dois termos: liberdade e imortalidade. Todas as práticas que se encontram prescritas nas muitas vias que conduzem ao yoga, buscam revelar-nos a nossa real essência constitutiva, isto é, um ser espiritual. Liberdade e imortalidade é a finalidade de toda prática do yoga, pois o ser espiritual é livre e imortal.
A essência, todavia, se encontra velada. O ser espiritual está oculto sob várias camadas de matéria, da mais densa à mais sutil. O processo do yoga é revelar cada uma dessas camadas ou invólucros (koshas, em sânscrito), aos quais o Ser espiritual se encontra encoberto. Isso não é nenhum mistério, pois o Ser espiritual, ao emergir no mundo fenomênico, necessita desses invólucros, que o tornam apto à sua manifestação como “alma no mundo”.
Na tradição do yoga, o Ser espiritual apresenta três corpos (sariras, em sânscrito), com seus respectivos invólucros (koshas), que são cinco. É na Taittiriya Upanishad que se descreve essa estrutura que permite ao Ser espiritual manifestar-se no mundo fenomênico. Vejamos isso com mais detalhes.
Corpo denso (sthula sarira), cujo invólucro corresponde ao corpo físico (o corpo que se alimenta de matéria orgânica), o corpo que age no mundo, corpo impermanente, que nasce e morre.
Corpo sutil (suksma sarira), composto de três camadas que correspondem ao corpo da energia vital (pranamaya kosha), ao corpo da mente (manomaya kosha) e ao corpo da consciência (vijñanamaya kosha). A energia vital, que se manifesta pela respiração, é o que sustenta a vida; ela a tudo permeia e, quando se retira, o corpo físico morre, a mente se dissolve e a consciência segue o seu próprio curso. A mente é a camada intermediária entre os corpos mais densos e os mais sutis. Ela está conectada ao corpo físico. A função da mente é captar, interpretar, categorizar e armazenar todas as sensações e informações decorrentes das nossas experiências no mundo fenomênico. A mente elabora e projeta as nossas tendências comportamentais. E a consciência é o domínio do conhecimento, da reflexão e do discernimento. É pela consciência que adquirimos a compreensão da existência.
Corpo causal (karana sarira), cujo invólucro corresponde ao corpo kármico, aquele que carrega todas as impressões (vasanas) e tendências (samskaras), que foram acumuladas no subconsciente ao longo de muitas vidas, e que são a causa das infindáveis reencarnações da alma.
O que nos interessa, para o artigo, é o corpo da mente, pois é nele que se encontra o medo. Então, vejamos isso com mais detalhes. É na mente que surge e se aloca o ego, esta sensação de que somos uma individualidade separada de tudo e todos. O ego se alimenta das experiências do corpo físico. É ele que experiencia o prazer e o sofrimento, que reverberam na alma. A mente, sob o domínio do ego, atua pela repetição dos padrões de comportamentos que foram adquiridos ou inculcados pela cultura, pela educação, pela sociedade e pela religião – ou seja, os elementos responsáveis pelo condicionamento mental e, como consequência, pela formação do ego.
A mente, assim, se condiciona conforme a quantidade e qualidade das experiências vividas pelo corpo físico. É na mente que fluem os pensamentos e os sentimentos. Influenciada pelas sensações do corpo físico, originadas dos estímulos do mundo exterior, na mente brotam as emoções que, se não forem percebidas a tempo pela consciência, podem nos fazem reagir instintivamente, o que geralmente nos causa situações de embaraço.
Quando isso ocorre com frequência, ou seja, quando reagimos inconscientemente a qualquer estímulo, é porque a mente tornou-se estreita e obtusa, reclusa em si mesmo. O egoísmo é essa tendência da mente em proteger-se de tudo aquilo que vai contra aos seus pensamentos, sentimentos e padrões de comportamentos. Ela elaborou e projetou um “ser” e, então, precisa mantê-lo “vivo”. O indivíduo regido pelo ego apenas reage instintivamente, incapaz de refletir.
A manutenção desse “ser mental” (o ego), bloqueia a mente em direção à sua própria evolução. Ela fecha a ponte que a liga ao corpo da consciência, que é onde está o conhecimento, o discernimento. Ao barrar o conhecimento, a mente bloqueia o discernimento. Pois o conhecimento e o discernimento trarão a ruína ao “ser mental”.
Mas o “ser mental” não é o Ser espiritual; portanto, o “ser mental” não é a nossa essência, mas um impostor, uma projeção inventada pela mente. Quando a mente se mantém no comando das ações, ela põe em risco o corpo físico e a própria integridade da “alma no mundo”. O “ser mental” torna-se obstinado, passando a agir como se fosse, ele próprio, o Ser espiritual. Ao tentar manter, a todo custo, a sua sobrevivência, instala-se, na mente, o medo da morte.
Mas a morte não é o único medo do “ser mental”. Ele tem medo da pobreza, da velhice, da crítica, da separação e da doença; quando não temos consciência de quem somos e nos identificamos com o “ser mental”, todos esses medos são considerados por nós como reais. Porém, são tão “reais” quanto o medo de fantasmas, de assombrações ou da escuridão.
O medo que sentimos é apenas a mente apegada à sua própria criação, o ego. O ego, esse “falso eu”, apegado e impermanente, deseja a liberdade e a imortalidade; e isso o faz agarrar-se a qualquer coisa que lhe dê a sensação de que pode se perpetuar no tempo. Isso o faz sofrer. Mas o ego, em si, não é a causa do sofrimento, pois ele foi criado para ser um “ajudante” da mente para administrar o corpo físico. O ego se torna uma questão apenas quando se avoluma sobre a mente (não quer mais ser ajudante, quer ser diretor!), e lhe oprime para se manter em evidência, protegido e satisfeito. Eis o sofrimento a se manifestar em toda a sua plenitude.
O medo é uma emoção que surge na mente e constitui-se no claro indício do quanto estamos desalinhados em relação ao fluxo do Universo. O medo provoca sensações contraditórias, que tanto pode nos lançar na vida, quanto nos recolhermos dela. Ele gera angústia e insegurança, e repercute na fisiologia do organismo: altera o ritmo cardíaco, o ritmo da digestão, eleva a pressão arterial, aumenta a taxa de glicose no sangue (disponibiliza energia para “lutar ou fugir”). Caso estas alterações se repitam com frequência, desestabilizando a harmonia fisiológica do organismo, nosso corpo sofrerá graves consequências.
Enquanto sentimos medo, estamos aprisionados. Porém, o medo também nos leva à nossa essência, caso estejamos dispostos a redirecionar a atenção ao mundo interior. A atenção, quando voltada apenas para o mundo exterior, se perde nas miríades de manifestações. Trazer a atenção ao mundo interior é o que podemos fazer para observar a atuação do “ser mental”, o quanto ele é astuto e disposto a não se mostrar, pois muitos são os seus disfarces.
É o ego, portanto, aquele que deseja prosperidade, abundância, juventude, beleza, aceitação, amizades, saúde, alegrias, sucesso e prazeres sem fim; e rejeita tudo o que for contrário a isso. Mas o Ser espiritual nada deseja, por isso nada teme. Ele não precisa ser nada, pois ele já é tudo; não precisa ter nada, pois tudo já tem; não necessita nenhuma experiência, pois ele é a própria existência; não necessita de alegrias ou prazeres, pois ele é a própria felicidade ilimitada.
O medo, pois, é uma inquietação da mente obscurecida, que se mantém em vigilância para que nada atente contra a sua criação, o “ser mental”, o “falso eu”. O medo, logo, é algo despropositado e exagerado, pois não diz respeito “àquilo que é”, mas àquilo que não é. Pelo seu caráter afetivo, o medo elege suas ameaças e identifica em coisas, objetos, pessoas e situações, os elementos e fatores que podem provocar danos ao ego. O maior dano ao ego é quando ele é despido de sua máscara, e se revela como o grande impostor que nos priva da liberdade.
Embora já sejamos livres em essência, nossa porção constitutiva de matéria (Prakriti), nos aprisiona em uma natureza inferior que tende a destruição. Essa natureza inferior é o campo de ação do “ser mental”, pois é dessa natureza que ele se alimenta, seja de prazer ou sofrimento. Então, é pela nossa porção constitutiva espiritual (Purusha), que nos elevamos a uma natureza superior e, dotados de uma virtude especial, que os antigos gregos denominavam enkranteia, podemos nos emancipar da tirania do ego, e estabelecer o domínio do espírito sobre a matéria.
Enkranteia significa “autodomínio” ou domínio sobre si mesmo. O autodomínio é originado do autoconhecimento: quanto mais nos conhecemos, ou seja, quanto mais conhecemos a nossa natureza espiritual, maior poder temos sobre o “ser mental”, e maior a força que temos para vencer nossas imperfeições. Autocontrole, portanto, é o domínio que temos sobre os desejos, paixões e interesses do ego, e o que nos torna livres da influência da mente.
Quem não é livre de si mesmo, isto é, do próprio ego, é escravo de tudo e de todos. O indivíduo aprisionado pela sua mente, acorrentado pelo “ser mental” em seu mundo interior, também não é livre no mundo exterior; pois o mundo exterior reflete o que se passa no mundo interior. “A mente liberta, a mente escraviza”, assim dizia o Buda. Se somos inconscientes do que se passa no mundo interior, na mesma medida somos inconscientes do que ocorre, de fato, no mundo exterior.
A realidade se oculta de nós quando a consciência dela se ausenta. Ou seja, reagindo por impulsos, nos tornamos joguetes das forças naturais inferiores que atuam sobre nós. Somos incapazes de discernir entre o bem e o mal, pois a ignorância obliterou a nossa consciência. Não esqueçamos que é próprio do ego a tudo reter; a consciência, a tudo liberta.
Todo ser humano deve agir com discernimento para evitar ou buscar alguma coisa. Mas o discernimento, entretanto, não provem da mente egóica, porém, de uma reflexão consciente. Portanto, cada um de nós, seres humanos, devemos agir conforme a parte mais nobre do qual nos constituímos, ou seja, o Ser espiritual; e, ao ir além dos limites da mente egóica, então, alcançaremos a liberdade que, como já dito, é a finalidade do yoga.
A bem-aventurança é o destino espiritual de todos os seres. Quem não reflete sobre o próprio destino imortal e não contempla a Luz que vem do Ser espiritual – luz que dissipa o ego e elimina o medo – não se realiza, nesse mundo terreno, como um ser livre para a bem-aventurança. Assim, a felicidade suprema se relaciona diretamente com a liberdade, pois é a liberdade que nos conduz à felicidade.
O que fazer para se tornar livre? Simples: solte tudo aquilo ao qual seu ego se agarra. O ego, quando exacerbado, se agarra a qualquer coisa para manter a mente sob o seu domínio despótico: pessoas, ideias, coisas, objetos, situações, símbolos. O apego, gerado pelo ego, pode ser tão intenso que relações simbióticas se estabelecem; tais relações provocam dependência emocional acentuada, que é difícil de se desfazer sem enorme sofrimento.
Portanto, permita à vida o seu livre fluir. Não tente interromper o fluxo da vida somente porque seu ego “quer e quer”, tal como uma criança birrenta e mimada. Coloque-o no seu devido lugar, que é estar subordinado à consciência. O ego nada sabe sobre si mesmo; nada procura realizar, a não ser aquilo que lhe satisfaça, independente do quanto isso pode ser prejudicial a outros seres.
Libere a mente daquilo que ela mesmo criou e perdeu o controle. Devolva a mente ao seu estado natural de serenidade e harmonia. Liberte-a da angústia e do sofrimento. Uma mente perturbada pelas suas próprias criações, fantasias e medos é o maior obstáculo à liberdade e à felicidade.
Por certo, só em liberdade pode haver mudança. E nós temos de mudar, mas não superficialmente, com pequenos aparos aqui e ali; temos de operar uma radical transformação da própria estrutura de nossa mente. Por isso, sinto ser tão importante falarmos de mudança, discutirmo-la, para ver até que ponto poderemos penetrar neste problema. Mudar é pensar de maneira totalmente diferente; é fazer nascer um estado de espírito livre da ansiedade em qualquer momento, sem sentimento de conflito, sem luta para conseguir alguma coisa, para ser ou “vir a ser” algo. É estar completamente isento de medo
(Jiddu Krishnamurti)
Hari Om Tat Sat.
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