top of page
Foto do escritorMarcelo Augusti

A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Atualizado: 7 de fev. de 2023



As crenças religiosas são frequentemente usadas para manter o povo sob sujeição e jugo.

(Étienne de La Boétie)


Servir voluntariamente. Um paradoxo, decerto. Talvez, não. Como se pode abdicar da própria liberdade para, voluntariamente, tornar-se um serviçal? Como poucos conseguem dominar muitos? Que estranho fascínio ou poder é esse que leva milhares de pessoas a se submeterem à vontade de apenas um indivíduo? Mesmo em face da indignação da opressão, por que as pessoas sacrificam-se espontaneamente em favor da causa alheia, que em nada lhes acrescenta de bom, a não ser a vergonha de sua condição desprezível?


Foi essa questão que Étienne de La Boétie tratou em sua obra O discurso da servidão voluntária, publicada postumamente, em 1563. Boétie se perguntava de onde uma pessoa tirava tanto poder para controlar muitos, e mantê-los sob seu domínio, a não ser que esse poder e domínio fosse consentido, espontaneamente, por aqueles que são subjugados. Ou seja, são as próprias pessoas que se deixam dominar, pois caso desejassem retomar sua liberdade, bastaria que elas apenas deixassem de servir ao dominador. Isso sem qualquer violência, apenas desistindo da servidão.


Qualquer poder ou força que subjuga, oprime e escraviza, é possível de ser vencida; pois toda autoridade é construída mediante o consentimento de quem a ela se submete. Se não contribuirmos com a força opressora, que poder ela teria sobre nós? Nenhum. Porém, quando nos tornamos disponíveis ao opressor por nossa própria escolha, e nos entregamos a ele, nem sempre percebemos com clareza o quanto somos oprimidos. É como estar vivendo um engano: não notamos que estamos sendo enganados, quanto mais envolvidos estivermos na situação.


Mas, por que, um indivíduo ou uma coletividade inteira, se deixa persuadir pela lábia opressora? Temos que entender que opressão é quando alguém é capaz de provocar constrangimento, humilhação, vexame, aflição, tristeza, melancolia e sujeição ao outro. A opressão é arbitrária, ou seja, não segue regras ou normas, não tem fundamento lógico, não tem argumentos. Quem oprime o faz conforme seus próprios métodos, ridicularizando o oprimido.


O faz com que alguém se eleve à condição de dominador entre as multidões, é a força que seu nome exerce sobre as pessoas. Trata-se de uma fascinação irresistível, que hipnotiza o público ao qual ele dirige a palavra. O dominador não faz discursos sobre a verdade, pois assim não exerceria nenhuma atração em seus súditos; as pessoas não querem ouvir a verdade, elas querem um líder que lhes aponte um caminho a seguir. Nesse sentido, o discurso de quem domina aponta para um “futuro glorioso”, que diz respeito a um “passado glorioso” outrora perdido.


Essa representação que fala acerca do futuro remetendo ao passado, desvincula o medo das pessoas em resistir a dominação. Cria-se um vínculo afetivo entre aquele que serve e aquele que é servido, de tal intensidade que, ao dominador, são atribuídas qualidades e características as quais não lhe pertencem. A avaliação daqueles que o servem, são carregadas de afeto, sem nenhuma crítica, pois apenas o adoram sem restrições. Por mais injusto, desleal e cruel que seja o dominador, a idolatria segue irretocável.


O poder tirânico é autodestrutivo. Estar sob o jugo da opressão, mesmo sem dela se dar conta, não isenta o serviçal de sua responsabilidade moral na situação. Afinal, o vínculo da submissão foi estabelecido por aqueles que abdicaram de sua liberdade para manterem-se à sombra opressora de quem os domina autoritariamente. O indivíduo que se entrega, espontaneamente, ao domínio tirânico, muitas vezes o faz por acreditar que estará em segurança ou terá algum proveito na situação. Porém, ele será apenas explorado, ridicularizado e descartado quando não mais tiver utilidade.


O desejo de liberdade é intrínseco a todos os seres vivos. E mesmo aqueles que depositam nas mãos alheias a sua liberdade, ainda desejam ser livres, mesmo não sabendo do que se trata essa tal liberdade. Não é de se estranhar que, ao longo da história da humanidade, pessoas que se aglomeraram em torno de um ídolo tirano, saudaram-lhe, entusiasticamente, por ter-lhes trazido a liberdade quando, na verdade, a liberdade lhes era retirada. Assim, quanto mais se exalta o tirano e mais lhe sustenta tal condição, mais o tirano lhes priva da liberdade.


Para acabar com essa subserviência, basta deixar de atender qualquer pedido do dominador. O poder de quem domina não está no dominador, mas, sim, em quem é dominado. São os dominados, os servos, que conferem poder ao dominador. Esse poder, portando, não é real; trata-se de um poder ilusório, cuja força está na estupidez de quem se deixa dominar. Para livrar-se do mal da servidão voluntária, basta virar às costas e ir embora. Para isso, entretanto, é necessário coragem para sair da situação em que se encontra.


O poder de um ou poucos sobre muitos é ilegítimo, pois é um poder inventado por meio de mentiras e enganos. Quando uma coletividade delega sua liberdade apenas a uma pessoa, e lhe concede poder para tomar decisões sobre a vida de muitos, é como se cada indivíduo dessa coletividade entregasse a própria cabeça para ser decapitada ou a garganta para ser cortada. Viver em tal estado de submissão é levar uma vida indigna, indecente e vergonhosa, assim afirmava La Boétie.



Não são as hordas de soldados a cavalo, não são as companhias de soldados peões, não são as armas que defendem o tirano. Parece à primeira vista incrível, mas é a verdade. São sempre quatro ou cinco os que estão no segredo do tirano, e são esses quatro ou cinco que sujeitam o povo à servidão.

(Étienne de La Boétie)






8 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page