A Verdade
Há uma distinção entre conhecimento e sabedoria. Ambos tratam da verdade. Em linhas gerais, a verdade pode ser apresentada em dois aspectos: o de correspondência e o de revelação. No primeiro, quando afirmamos aquilo que é e negamos aquilo que não é, isso é a verdade. A verdade como correspondência não está no pensamento ou no discurso em si, mas no objeto ao qual nos referimos. Assim, se afirmarmos que um objeto é azul, o objeto é azul não porque dissemos, mas porque, de fato ele é azul. O que afirmo sobre algo, logo, corresponde exatamente a ele. A verdade como revelação pode ser definida como “aquilo é como aparece”, ou seja, aquilo que se revela a si mesmo em sua própria essência. Aquilo que se revela a si mesmo é algo que traz em si mesmo a própria revelação da verdade. Esta é a verdade da coisa em si, que se revela de imediato à consciência, sem passar pela averiguação do raciocínio. Portanto, a verdade como revelação diz respeito àquilo que é inerente ao seu princípio, à sua própria realidade intrínseca.
O conhecimento associa-se ao entendimento de algo. Para entender algo se faz necessário pensar ou refletir com insistência, após diligente investigação e pesquisa. O entendimento é resultado de um processo cognitivo racional. Entender é conseguir explicar algo racionalmente, ser capaz de demonstrar algo por meio de alguma técnica. O conhecimento, logo, é tudo aquilo que pode ser racionalmente explicado e demonstrado, e que resulta de investigação, análise, reflexão e elaboração intelectual. O conhecimento, portanto, expressa as verdades da razão e, como tal, todo conhecimento é passível de ser reproduzido.
Uma pessoa alcança o conhecimento sobre algo e transmite aos demais, que apenas o reproduzem geração após geração. Assim, quando dizemos que temos conhecimento sobre algo, é porque somos capazes de explicar, por palavras, exatamente aquilo que conhecemos. Nesse sentido, o conhecimento é a expressão de veritas, isto é, relaciona-se a ideia de verdade como algo que é preciso, exato, rigoroso. Conhecer é enunciar os fatos de modo metódico e sistemático, conferindo-lhes a condição de veracidade. Então, conhecimento se opõe à mentira, já que tudo o que pode ser conhecido também pode ser analisado, verificado, comprovado e legitimado por veritas, ou seja, pode ser afirmado por palavras. Conhecer, portanto, é afastar de si toda a mentira, corrupção, fraude e tudo aquilo que afirma ser o que não é em nosso mundo exterior.
Na mitologia romana, Veritas era a deusa da verdade; entre os romanos, a maior virtude era, exatamente, a veracidade, ou seja, a qualidade de tudo aquilo que correspondia à verdade. Para um romano, dizer a verdade era referir-se objetivamente a realidade, pois ele seria indigno se suas palavras não correspondessem aos fatos, isto é, àquilo que poderia ser verificado e comprovado por outros. Em tempos passados, a palavra de um homem valia mais do que qualquer coisa, pois era pelas palavras ditas que se distinguia o homem digno e decente, do infame e indecoroso.
A deusa Veritas era representada por uma virgem vestida de branco e esquivava-se, habilmente, dos humanos; acredita-se que ela se escondia no fundo de um poço sagrado. Percebe-se, claramente, nessa alegoria, que o conhecimento é sagrado e imaculado, assim como a verdade; ele também se mostra parcialmente, nunca se dá por completo. Portanto, as verdades da razão estão sempre em um processo de descoberta, pois nunca podemos conhecer tudo e entender de tudo. Confinar e manipular o conhecimento é atentar contra a verdade.
Todavia, como o conhecimento é fruto da ação e da experiência, ele é passível de estagnar ou evoluir. Quando grupos sociais detém o conhecimento para si, esse se torna uma fonte de poder e manipulação, pois esses grupos não permitem que o conhecimento evolua, servindo-se dele apenas aos seus interesses obscuros, causando estagnação e até retroagindo as conquistas humanas. As verdades da razão são parciais, e necessitam ser renovadas, pois o que conhecemos hoje é o fundamento do conhecimento de amanhã. Por isso, o conhecimento nunca pode ser retido, mas espalhado, para que possamos ampliar o entendimento sobre a realidade que nos cerca.
Sabedoria é compreender. Compreender é originado de um insight, de um estalo intuitivo. A compreensão, portanto, é um súbito esclarecimento, uma percepção profunda de algo, que nos sobrevém quando voltamos a atenção ao nosso mundo interior. Compreender, então, é apreender tudo o que não pode ser entendido à luz da razão, ou seja, não se pode demonstrar ou explicar aquilo que se compreende, pois a compreensão de algo está além das palavras. A sabedoria, logo, é proveniente de algo que, em si mesmo, carrega a própria verdade. Porém, uma verdade que não pode ser demostrada, pois essa verdade somente pode ser revelada num lampejo.
Ao contrário de veritas, a descrição correta daquilo que se conhece, essa verdade é aletheia. Aletheia era a deusa grega da verdade, mas da verdade como realidade. A realidade em si, nada oculta, pois tudo está aí, aos nossos “olhos”. Entretanto, quando imersos no mundo fenomênico, sofremos um esquecimento de quem somos, de nossa essência constitutiva. Se a mentira se opõe a veritas, é o esquecimento que se opõe a aletheia. Na mitologia grega, quando uma alma regressa da morte para um novo corpo, ela bebe das águas do esquecimento, para não se recordar de nada. O retorno a essa vida, ao mundo fenomênico, portanto, necessariamente passa pelo esquecimento da verdade de quem somos em essência.
Aletheia, então, é a verdade que se desvela, aquilo que descobre o que estava oculto, no esquecimento; ela traz de volta a memória límpida de quem somos. Aletheia é a súbita lembrança da verdade eterna de quem somos. É a revelação imediata da realidade tal como ela é, e que se desvela somente na quietude e no silêncio do mundo interior. Trata-se de algo que foi esquecido, e está oculto dentro de nós à espera para ser revelado. Aletheia é a revelação de tudo o que é falso, encoberto e dissimulado. Enquanto veritas nos traz o conhecimento da realidade temporal, aletheia nos propicia a sabedoria transcendental.
Trazemos, em nosso mundo interior, a verdade da realidade de quem somos. Cada pessoa tem que descobrir, por si só, quem ela é, em essência, não apenas na aparência do mundo exterior. A aparência pode ser descrita, assim que conhecida; a essência, entretanto, está além das palavras, e somente pode ser percebida no recôndito mais íntimo de nosso coração. A verdade da realidade é inefável; ela se revela apenas à consciência, está além da mente, além do conhecimento; por isso, não há palavras para transmitir diretamente a sabedoria. Somente por meio de parábolas e metáforas é que podemos dizer algo.
Continua no próximo post.
Hari Om Tat Sat.
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