A Natureza
As perfeições invisíveis de Deus, desde a criação do mundo, se veem visivelmente através do conhecimento que as criaturas dele nos dão
(São Boaventura)
A Natureza é a fonte primária do conhecimento. É da Natureza que procede o conhecimento imanente. Todo o conhecimento ancestral provém daquilo que os seres humanos puderam observar, analisar e compreender da Natureza.
Natureza, aqui, tem dois aspectos: o primeiro, relacionado à estrutura física e aos componentes químicos que dão forma e função a tudo o que existe no Universo manifestado. Observando a diversidade de seres, objetos e coisas que fazem parte do mundo fenomênico, podemos conhecer de que são formados e como funcionam.
Ou seja, podemos conhecer a estrutura física e o funcionamento fisiológico do corpo humano, por exemplo. Assim como podemos conhecer a estrutura molecular da água e como essa estrutura reage diante dos estímulos do ambiente físico.
Esse conhecimento, embora de muita utilidade, é um conhecimento inferior, no que diz respeito ao segundo aspecto da Natureza: os seus atributos ou qualidades. São as qualidades da Natureza que condicionam as condutas dos indivíduos. Vejamos isso com mais atenção.
Na tradição do yoga, aos seres manifestados no mundo fenomênico, a Natureza os dotou de matéria (Prakriti) e espírito (Purusha). O espírito é que o vivifica e vitaliza, é o elemento invisível, eterno, a porção imortal de todo ser vivo; a matéria é o que constitui a forma, a função, é o elemento visível, que brota, cresce, se desenvolve, amadurece, envelhece e, por fim, se desintegra.
Quando uma alma emerge no mundo fenomênico, portanto, ela é constituída, em sua base, de Prakriti e Purusha. Prakriti é dotada de qualidades ou gunas, que são os instrumentos da matéria, que correspondem a três forças naturais que agem sobre o indivíduo para que ele se mantenha em sujeição harmoniosa com ela, a Prakriti.
O conhecimento dessas três forças naturais, que condicionam o comportamento do indivíduo enquanto “ser-matéria”, é o primeiro passo em direção ao entendimento correto daquilo que somos. Por meio desse conhecimento, alcançamos o domínio da matéria, e teremos a correta percepção das “forças ocultas” que nos arremessam de cá para lá, no mar revolto da existência terrena.
Essas três forças ou modos de atuação da Prakriti, são: tamas, rajas e sattva. Cada forma de vida é mantida em equilíbrio constante por meio da atuação dessas três forças ou gunas. É a interação dessas forças qualitativas que resulta na dinâmica da Prakriti.
A Prakriti, contudo, pela sua própria essência, está sujeita a todo tipo de perturbação que advém do contato com o ambiente circundante. A recepção dos estímulos do mundo circundante e a reação a eles são reguladas pelos gunas, conforme prevalecem em cada indivíduo. São os gunas que determinam a disposição da recepção e o caráter da resposta, conforme prevalecem na Prakriti.
Cada um dos gunas têm suas características. Tamas é inação, obscuridade, incapacidade de assimilação, preguiça, má vontade, inércia. Quando tamas prevalece, o indivíduo se mostra indolente, entorpecido, reage de modo automático aos estímulos do ambiente. Tamas conduz à cegueira da alma, à falta de criatividade, ao desinteresse pelo conhecimento, a recusa a aprender e se aperfeiçoar, à negligência e leva o indivíduo a fazer sempre mais do mesmo. Tamas é o princípio da ignorância.
Rajas é luta, coragem, resistência, afirmação da vontade, criação e conquista. Quando rajas é predominante, prevalece a ação, a paixão, a sede de desejo. Rajas, por um lado, conduz à mudança, à criação de novas possibilidades, vitórias, alegrias e prazer; e, por outro, leva ao sofrimento, à dor, ao apego excessivo, desajustes, esforço ignorante e frustração. Energia, atividade e movimento, ainda que conduzidos pela ignorância, expressa pela ambição, pela presunção, pelo egoísmo e hipocrisia, pela inveja e ingratidão, são as características do indivíduo que se encontra sujeito ao guna rajas.
Sattva é o terceiro guna. Sattva é clareza de raciocínio, percepção e compreensão corretas, ponderação e equilíbrio. Quando sattva predomina, brota a simpatiza, a boa intenção, a tranquilidade, o controle sobre as emoções. Lucidez, harmonia, estabilidade emocional, busca pelo conhecimento, bondade, simplicidade e moderação são as características do indivíduo sujeito ao domínio de sattva.
É certo que todos nós temos momentos tamásicos, rajásicos e sátvicos. Há luz, sombras e escuridão em todos nós. Às vezes, temos tanta energia que acreditamos que podemos mudar o mundo com as nossas ações; outras vezes, caímos em total desinteresse por tudo, nos sentimos extenuados da jornada, recuamos de medo diante das pressões do mundo, e as circunstâncias difíceis da vida nos fazem parecer uns covardes. E há momentos em que a vida parece não ter segredos, compreendemos tudo, permanecemos em harmonia e serenidade, ficamos felizes e parece que fomos banhados por uma luz divina.
Cada indivíduo traz, em si mesmo, um guna prevalecente. Observar as próprias reações e comportamentos diante dos eventos da vida, nos ensina muito sobre o modo da Prakriti ao qual estamos sujeitos. Conhecer nossas tendências é o primeiro passo rumo ao autoconhecimento e a liberação dos condicionamentos dos modos de ação da Natureza.
Assim, se em nós prevalece tamas, façamos um esforço para equilibrar com rajas; ou seja, sair da inércia e partir para a ação; se prevalece rajas, nos esforcemos para equilibrar com sattva, isto é, sair da ação para alcançar a quietude. Da inércia, passando pela ação desordenada e chegando à quietude, alcançaremos um certo equilíbrio e harmonia em nossa vida.
Podemos dizer que tamas representa a ausência, um estado mental onde permanecemos entorpecidos; rajas, é o passado e o futuro, os extremos pelos quais a mente condicionada se movimenta perdida em ilusões; e sattva, o presente, o estado mental do tranquilo permanecer.
Quando dominarmos tamas e rajas, e permanecermos no modo sattva da Prakriti, então, estaremos aptos a beber da fonte da sabedoria: o Ser Interior.
Os sábios não são sempre, ou de todo sábios; os inteligentes são inteligentes apenas em parte; o santo reprime muitos movimentos que não são santos, e o mau não é de todo mau; o mais tolo tem suas capacidades não expressas ou não utilizadas ou não desenvolvidas; o mais medroso tem seus momentos ou seu jeito de ser corajoso; o impotente e o débil têm uma parte latente de força em sua natureza
(Sri Aurobindo)
(continua no próximo post)
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