O Ser Interior
Toda divindade é difícil de conhecer, mas por razões diferentes. A divindade suprema nos é oculta precisamente na medida em que não está velada pelas formas sensíveis e materiais. Ela nos cega por excesso de claridade, como o Sol. Só se pode falar dela mediante comparações e negações. As divindades inferiores, ao contrário, são ocultas porque as almas divinas, em sua descida para a matéria, recobrem-se de corpos cada vez mais numerosos e espessos. Elas estão ocultas porque envoltas nas formas visíveis.
(Pierre Hadot)
Vimos que a Natureza é a fonte primária do conhecimento. Falamos da Natureza constitutiva da alma. A alma é Prakriti (matéria) e Purusha (espírito). A Prakriti é dotada de três modos de ação que condicionam o comportamento da alma enquanto extrato material: tamas, rajas, sattva.
Adquirido o conhecimento das qualidades da Prakriti, sua essência material, e aprendendo a controlar suas influências, a alma poderá, então, avançar para o domínio onde se encontra a sabedoria: o Purusha.
Purusha é a essência espiritual da alma. Purusha é o princípio universal eterno, indestrutível, sem forma e que a tudo penetra. O universo e tudo o que nele existe é uma combinação de prakriti (matéria perceptível aos sentidos, a substância visível) e purusha (o princípio não material, não perceptível aos sentidos, o elemento invisível). A realidade da matéria (prakriti) é mudança, transitoriedade, impermanência, sujeita à causa e efeito; a realidade do espirito (purusha) é imutabilidade, eternidade, aquilo que integra, conecta e une todas as coisas e todos os seres.
Purusha é o vislumbre do Ser Interior em nós. O Ser Interior é a fonte primária da sabedoria. É do Ser Interior que emana a sabedoria transcendental. Sabedoria transcendental significa que a verdade Divina nos foi revelada, ou seja, que a materialidade, ao qual a alma está imersa na vida térrea, isto é, a sua corporalidade, embora seja um aspecto condicionado da Natureza, não é o fator limitante à sua ascensão a Vida Divina. Isso porque o espírito é eterno, infinito, imutável.
Este ser te aparecerá também como eterno, não tendo absolutamente nada de não-ser e, por conseguinte, como sendo sem princípio e sem fim. Aparecer-te-á, outrossim, como não possuindo senão o ser e, por isso mesmo, sem composição, mas simplíssimo. Aparecer-te-á como privado de toda possibilidade, e por isso atualíssimo, porque o ser possível tem em si algo do não-ser. Aparecer-te-á ainda sem sombra de imperfeição e, por isso mesmo, perfeitíssimo. Aparecer-te-á, enfim, sem diversidade alguma e, portanto, sumamente uno. O ser que é pura, simples e absolutamente ser é, por conseguinte, o Ser primeiro, simplíssimo, atualíssimo, perfeitíssimo e absolutamente uno (São Boaventura)
O Ser Interior é a centelha da Presença suprema, aquela porção do Infinito que habita em nós; Purusha é o único que nos pode revelar a verdade sobre a existência, os segredos do universo, da vida e da morte. Ele é o guia espiritual infalível, que nos mantém firmes no Caminho. Ele é o Mestre do Yoga, a passagem segura e única que conduz o Humano ao Divino, e que traz o Céu à Terra. Seus ensinamentos não passam pelo raciocínio do intelecto, pois são transmitidos diretamente à consciência, pela via da intuição. O Ser Interior é o lugar sagrado de onde origina-se a sabedoria transcendente, que nos leva à plena compreensão do sentido da vida e do significado da existência.
Bem-aventurado aquele a quem a verdade por si mesma ensina, não por figuras e vozes que passam, mas como em si é. Nossa opinião e nossos juízos muitas vezes nos enganam e pouco nos ensinam sobre a verdade (Tomás de Kempis)
Mas como acessamos o Ser Interior? Vimos que o conhecimento da Natureza, em suas miríades de manifestações, pode ser adquirido pelo estudo do mundo exterior e tudo o que nele há; e, também, o conhecimento da Natureza, em seus modos de ação (tamas, rajas, sattva), pode ser conquistado pela observação de nossas tendências e comportamentos. É a Natureza que nos proporciona o conhecimento da Terra e da matéria. Já o acesso ao Ser Interior se faz pela quietude do corpo e pelo silêncio da mente, quando nos voltamos a nós mesmos, e trazemos nossa atenção ao mundo interior e nele elevamos à consciência.
É na prática da meditação, portanto, que podemos acessar o Ser Interior. Ou melhor, é quando alcançamos determinado estado meditativo, que ele se revela a nós. Trata-se de um estado de plena consciência, e que nos permite perceber com total clareza as coisas como elas realmente são. Nesse estado meditativo peculiar denominado samadhi, os pensamentos e as projeções da mente cessam; a mente se retira e, assim, emerge o silêncio e a consciência se eleva.
Quando a mente é mantida afastada das preocupações, ela se torna quieta. Se você não perturbar essa quietude e permanecer nela, você verá que ela é saturada de uma luz e de um amor que você sequer sabia que existiam, mas que você reconhece, pois essa luz e esse amor, são a sua própria natureza. No dia em que todas as turbulências da mente forem superadas, todas as ilusões e apegos chegarem ao fim, então, a vida se tornará supremamente centrada no momento presente
(Sri Nisargadatta Maharaj)
Tal qual o mundo exterior se ilumina quando desvendamos os mistérios da Natureza, o mundo interior também se ilumina quando a consciência penetra o espírito e o Ser Interior se revela. Em samadhi entramos em comunhão com o Ser Interior e em sintonia com as altas vibrações do Universo: amor, paz e felicidade inundam a alma. A comunhão com o Ser Interior é o primeiro nível da ascensão da consciência em direção ao Divino. É somente em comunhão com o Ser Interior que estaremos habilitados a receber a sabedoria transcendental.
O segundo nível dessa ascensão é a comunicação direta com o Divino, sem as interferências de nossos pensamentos ou projeções da mente. É na comunhão com o Ser Interior que emerge a comunicação direta com o Divino. Então, a percepção da realidade se clarifica: tudo o que antes era percebido equivocadamente como separado, agora é percebido como uma unidade; o que era percebido como parte, agora se revela como todo. É a Luz Divina a iluminar as trevas da ignorância e nos conceder a sabedoria do Céu e do espírito.
A comunhão com o Ser Interior nos devolve a integridade entre a alma e a consciência; e a comunicação com o Ser Supremo nos revela a verdade da realidade, isto é, que tudo o que existe, toda a manifestação da criação, é uma parte onde o Todo está contido. Tudo o que existe no Universo, sem exceção, não é, portanto apenas parte da teia da Vida, mas a própria expressão de uma Realidade Divina.
O ar que expiro é o mesmo ar que você inspira. A força invisível que nos sustém, a tudo sustém. O espírito – Purusha – aquele que vivifica a matéria é o mesmo em tudo e todos. Paz, Amor e Bem-aventurança forma a essência constitutiva de todos os seres. A ignorância é superada quando alcançamos a compreensão plena de que somos todos Um – pois o Ser Interior é o Uno indivisível que habita a toda a diversidade.
Então, percebemos claramente que a separação e todo dualismo, é a grande ilusão a ser superada; nossa verdadeira identidade não é o corpo, o nome, o local onde nascemos ou moramos, nossa profissão, nossa ideologia, crença, filosofia de vida; nossa identidade está para além de tudo o que é pessoal, para além de toda matéria, pois somos um ser universal e espiritual. É na senda da espiritualidade, logo, que descobrimos a Pessoa Universal que somos e, então, percebemos com toda clareza que o Universo está em nós, ainda que pareça que nós é que estamos no Universo. Somo a infinitude. Este é o fim da ignorância.
A alma não nasce, nem morre. Não brotou de algo e nada brotou dela. É não nascida, eterna, imortal e sem idade. Não é destruída quando o corpo perece
(Katha Upanishad)
É apenas na conquista do silêncio da mente, que podemos recobrar a consciência de quem somos, de fato. A mente ruidosa é tendenciosa, estreita e limitada. Se quisermos ir fundo no conhecimento de quem somos e alcançar a sabedoria transcendente, precisamos refinar o nosso instrumento, isto é, a mente. E a ferramenta para refinar a mente é a meditação.
A experiência do estado meditativo nos transforma. Ficamos sensíveis às sutilezas do Universo. Tornamo-nos intuitivos, e nossa mente permanece serena e ilumina-se, e expande-se em criatividade. Aprendemos a estar atentos às mensagens espirituais que, constantemente, são enviadas a nós. Essas mensagens nos chegam pela Voz do Silêncio, ou seja, pela inspiração do Divino, que nos comunica diretamente a Verdade. É o Ser Interior que governa a nossa vida, e não mais o ego.
No buscador espiritual, o Divino, Ele mesmo, se tornou o Conhecedor. Haverá cada vez menos escolha individual, opinião, preferência; cada vez menos intelectualização, elaboração mental, cada vez menos trabalho cerebral; pois uma Luz interior verá tudo que deve ser visto, conhecerá tudo o que deve ser conhecido: desenvolverá, criará, organizará. Será o Conhecedor interior que, na mente liberada e universalizada do indivíduo, cumprirá as obras de um conhecimento todo-abrangente (Sri Aurobindo)
Hari Om Tat Sat.
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