As disposições que podem fazer surgir a guerra têm suas raízes em sentimentos populares, que se deixam facilmente influenciar
(Otto von Bismarck)
O texto que segue abaixo foi inspirado pela obra de Gustave Le Bon, As opiniões e as crenças, de 1911. Le Bon (1841-1931) é considerado um grande pesquisador da psicologia das multidões e um dos gênios mais proeminentes de sua época. Conforme Le Bon, as multidões formam uma mentalidade coletiva, cujo processo de formação se baseia no (a) anonimato, (b) contágio mental e (c) sugestionabilidade. Anonimato é o que permite que um indivíduo sinta-se intocável e invencível; o anonimato ocasiona a perda da responsabilidade pessoal, e o indivíduo acredita que tudo pode fazer, agindo por instinto, sem autocontrole emocional. No meio de uma multidão, o indivíduo sente-se protegido pelo anonimato e ousa mais do que poderia.
O contágio mental é a disseminação, na multidão, de comportamentos particulares, que têm o poder de levar os indivíduos a sacrificarem sua vontade própria em prol de um interesse supostamente coletivo. A sugestionabilidade é o meio pelo qual o contágio é realizado; quando uma multidão se aglutina em torno de uma mente singular, a força das sugestões dessa personalidade despertam algo inconsciente nas massas; essa “voz forte”, uma vez inculcada nas multidões, passa a guiar seus passos, a determinar seus objetivos e interesses.
Quando a multidão aceita as sugestões e abraça a “causa”, então, a mentalidade coletiva está estabelecida e, cada vez mais, ela acata os apelos da personalidade e daqueles indicados como suas referências. Nas palavras de Le Bon, “esses líderes geralmente são homens de ação, não de palavras. Eles não são dotados de perspicácia e capacidade de previsão. São recrutados nas fileiras daquelas pessoas meio perturbadas, nervosas e mórbidas que estão à beira da loucura”.
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As multidões se arrastam pelo sentimento, não pela inteligência. Sentimentos possuem propriedades contagiosas que, ao se espalharem entre as almas individuais, logo formam uma alma coletiva, ou seja, pessoas que se reúnem sob o efeito hipnótico de uma personalidade que dita as normas e as regras de conduta do coletivo. Essa personalidade se impõe ao inconsciente dos demais, atrai a sua atenção, extrai a energia psicológica e faz com eles obedeçam a uma vontade única. Sob a influência inconsciente de uma personalidade, as almas individuais se agregam momentaneamente, formando uma coletividade que se coloca a seu serviço. É assim que a vontade consciente de cada indivíduo é substituída por uma vontade coletiva inconsciente; e essa personalidade agregadora toma posse das faculdades da razão de cada alma individual, deixando-as alheias a qualquer outro tipo de experiências.
A experiência da desagregação da individualidade, ou seja, quando a alma individual se perde na lama de uma alma coletiva, passa por um fator sentimental. A conduta consciente da alma individual, então subjugada pela vontade da personalidade agregadora, tenta justificar o seu comportamento por meio de explicações que, a depender do grau de influência e desagregação, são absurdas e sem qualquer conexão com a realidade. Isso quer dizer que um indivíduo, mesmo agindo pelo inconsciente, encontra “razões aceitáveis” para colocar-se a serviço do líder.
Aqui, a lógica sentimental supera a lógica racional. A força psíquica de cada alma individual, ao convergir para o centro da alma coletiva, eleva o poder de influência da personalidade agregadora; ela se alimenta dessa energia e, assim, é capaz de permanecer no domínio dos demais.
A vontade irradiante do líder do rebanho conquista as mentes individuais, escravizando todas, sem que elas percebam. Iludida por um fenômeno psíquico, a alma coletiva reage, com violência, a tudo que se mostra contrário à vontade do líder. Essa alma coletiva possui uma credulidade quase ilimitada; a mentalidade que abarca a alma coletiva, retirou-se do ciclo do conhecimento para adentrar e entregar-se, sem reservas, ao mundo das opiniões e das crenças. Interessante notar que qualquer indivíduo pode ser tomado de assalto pela credulidade, seja ele um erudito ou ignorante; essa tendência a acreditar em tudo aquilo que se lê ou que se ouve dizer, sem checar a veracidade (parece que sofremos de uma preguiça mental ou uma paralisação da consciência para buscar a verdade), é o que mantém a coesão da alma coletiva, subjugada a uma vontade alheia a vontade individual de cada membro.
Mas essa alma coletiva apenas toma forma e avança, pois as almas individuais que a constituem, anteriormente à sua formação, já estavam na escuridão. Erudição e saber acadêmico não significam prudência ou experiência de vida. Um indivíduo pode possuir um vasto conhecimento acadêmico, mas cuja utilidade serve apenas para envaidecer o próprio ego. Embora detentor de muitos saberes técnicos e culturais, um erudito dos grandes centros urbanos pode ter uma mente tão ingênua e simplória como a de um boçal provinciano. É exatamente essa mente ingênua que o arrasta à credulidade, tal qual sucumbe o patego inculto.
A personalidade, portanto, é a personificação de uma crença; a crença “encarnada” faz da personalidade o ser venerado. A credulidade das almas individuais, exposta aos agitadores da estreita mentalidade, acreditam que receberam uma missão, e que tal missão diz respeito a restituir o reino da virtude. O grão-mestre dessa empreitada supõe que seu dever é imolar sem piedade a todos aqueles que considera como “inimigos do bem”. Apóstolo maior de uma nova ordem político-teocrática, seus discursos e gestos apelam com insistência ao Altíssimo. É como se ele fosse o “messias”, redentor do mundo. O que essa personalidade espalha é apenas o ódio contra os “infiéis”. Submissão e adoração é o que se espera das almas cativadas.
A intransigência absoluta é a característica daqueles que pregam a “liberdade de expressão”. A intolerância e a rigidez dividem as sociedades, separam os indivíduos em eleitos e réprobos. Quem “veste a outra camisa” não deve ser considerado; aliás, deve ser julgado e condenado. Porém, quando a personalidade alcança o seu objetivo – o poder total sobre as vidas de todos – torna-se um tirano, capaz dos atos mais cruéis e devastadores; ele não poupará ninguém que, por um breve instante de pensamento, ouse duvidar de sua liderança. Todos serão massacrados e a humanidade está repleta de exemplos como esse.
Exercer o domínio sobre a alma coletiva, entretanto, não significa controle total dos membros da alma coletiva. Esses membros, ou seja, as almas individuais que constituem o todo coletivo, sob o encantamento da personalidade congregadora, passam a agir por conta própria, como que “inspiradas” pelo seu mentor. O mentor não manda ninguém fazer nada; apenas sugere, com seus discursos e gestos muito bem engendrados. Então, sentindo-se alinhados com o mentor e acreditando que estão fazendo o que é certo, os membros individuais cometem todo tipo de barbárie em nome da alma coletiva e do seu líder. Mais do que isso, uma crença que triunfa acaba por se fragmentar em diversas tendências, instituindo novas entidades, cada qual com seus estatutos, métodos e técnicas de atuação, preservando apenas os elementos fundamentais da crença original.
O projeto de vida da personalidade, quando triunfa, portanto, torna-se o projeto da alma coletiva; seus pensamentos, palavras e ações se transferem para a alma coletiva. Estabelece-se uma conexão. Os membros transmitem sugestões uns aos outros, e perdem por completo o senso crítico; tornam-se tão crédulos que não conseguem chegar a conclusões corretas; mas isso não importa, pois o que vale mesmo é a obediência e a fidelidade irrestrita ao “mestre”.
Desencadeia-se, assim, uma série de alucinações coletivas, que facilmente são aceitas como realidade. Os “apóstolos” dessa congregação macabra, profanam a verdade, falando em tom profético e ardente, vulgarizando e debochando de tudo que seja contrário aos seus ideais. A mentira é seu maior trunfo. Vociferando como bárbaros, descem ao mais baixo nível mental, perdendo totalmente a percepção correta da realidade. Nada pode impressionar essa ignorância manifesta, pois não há olhos para ver, tampouco ouvidos para ouvir. O discernimento foi pisoteado.
A alma coletiva, uma vez formada e enredada pelo poder de persuasão, não opõe resistência; apenas segue, tão inconsciente de que é arrastada pelo ideal alheio como uma folha seca é levada pelo vento. As almas cativas seguem, sem qualquer reflexão ou crítica, as opiniões, as crenças e os preconceitos da mentalidade coletiva inculcados pelo “mestre” insaciável, arrogante, hipócrita e perverso. A força dessa alma coletiva se faz pelas explosões de opiniões, que são movimentos instantâneos que tentam deslocar a maioria para seu lado. Uma súbita explosão de opiniões pode abalar o mundo, quando certas palavras são ditas por personalidades influentes, atiçando o sentimento de milhões de almas. Já foi dito aqui que as almas individuais se movem mais pelo sentimento do que pela razão. Uma explosão de opiniões nada mais é do que uma repercussão instantânea e intensa de emoções, daí sua força quase irresistível. Uma rajada de opiniões pode ser fatal à salvaguarda da harmonia e da serenidade de uma nação.
Em 1938, Adolf Hitler, discursou na sacada do Palácio Imperial de Hofburg, Viena, para uma multidão de 200 mil pessoas, que saudava a anexação político-militar da Áustria (Anschluss) ao Terceiro Reich. Na época, a Áustria era uma nação onde 74% da população pertencia a diferentes etnias e praticavam diferentes religiões, mas havia coesão social. Um grupo minoritário, entretanto, de origem germânica, desdenhava dessa multiculturalidade e desejavam uma nação “pura” com apenas uma etnia e uma cultura. A ascensão de Hitler na Alemanha nazista, todavia, fortaleceu a determinação desse grupo minoritário de expurgar a nação, recorrendo ao terrorismo para impor suas ideias, o que significou expulsar e assassinar aqueles que consideravam como inimigos.
Em outro exemplo, o filme russo Attraction (2017), traz a cena de um discurso que, a princípio, parece justo e correto, mas que, no fundo, carrega o sentimento de ódio e vingança pessoal. Rapidamente, as palavras inflamam a multidão que, contaminada pela comoção, se lança a um ataque feroz e suicida contra o “inimigo”. Os discursos de ódio são estratégias de pessoas frustradas, “pessoas meio perturbadas, nervosas e mórbidas que estão à beira da loucura”, exatamente como na cena do filme.
Portanto, se não nos precavermos contra o contágio mental das opiniões e das crenças coletivas, também estaremos expostos às suas influências em nosso modo de pensar, ser e fazer. Nossa individualidade cairá por terra, e seremos arrastados pela mentalidade das “multidões”. Estejamos, pois, atentos às palavras proferidas nos discursos daqueles que se intitulam “líderes” de uma nação.
Não se governa um povo com ideias verdadeiras, mas com crenças tidas como verdadeiras. Se a verdade é aquilo que se acredita, então toda crença estabelecida constitui uma verdade. É com verdades dessa ordem que o mundo tem sido conduzido
(Gustave Le Bon)
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