Uma breve introdução sobre as origens da preparação desportiva
O treinamento desportivo é um processo pedagógico orientado para o alcance do melhor desempenho do atleta em sua modalidade.
Desde os mais remotos tempos, a preparação desportiva apresenta uma estrutura cíclica, onde se alternam treinos fortes com momentos de recuperação.
Já na Antiga Grécia, esta estrutura era conhecida como tetra, com os atletas de então treinando em três dias consecutivos seguidos de um dia destinado ao descanso.
Nas décadas de 50 e 60 do século passado, período de destaque da chamada “era científica do treinamento”, foi Leev Pavlovitch Matveev, pesquisador e treinador soviético, que lançou os fundamentos daquilo que hoje denominamos de “periodização do treinamento desportivo”.
A partir da teoria da periodização proposta por Matveev, houve uma revolução no modo em que a preparação desportiva era realizada pelos atletas de diversas modalidades. Se até então os atletas treinavam sem um preciso direcionamento de suas ações, foi a partir do pesquisador Matveev e de seus contemporâneos do leste europeu, que a preparação desportiva ganhou consistência, sendo elevada ao nível de ciência.
Periodização: o planejamento do treinamento
Como periodização do treinamento desportivo, entendemos como sendo todo o conjunto das ações técnicas e pedagógicas relacionadas aos aspectos gerais e específicos da preparação desportiva, organizadas e direcionadas para a obtenção do rendimento máximo em determinado momento.
Assim, a periodização é nada mais que o planejamento da estrutura da preparação desportiva, onde tudo o que diz respeito ao treinamento de uma modalidade esportiva, será esmiuçado em seus pormenores, com a disposição dos meios e métodos de treinamento ordenados em uma sequência ótima durante toda a temporada competitiva e ao longo dos anos.
Esta disposição sequencial forma um ciclo de treinamento, ou seja, um espaço de tempo onde os meios e métodos de preparação são aplicados de forma gradual e evolutiva, promovendo uma diferença marcante na capacidade de desempenho do atleta entre o estágio inicial e o auge alcançado.
A periodização, como um plano de expectativas, portanto, deve prever a variedade dos estímulos de treinamento, partindo-se sempre dos meios e métodos gerais aos mais específicos e complexos, do volume para a intensidade e, na etapa final, da intensidade para a recuperação, pois esta é a essência do ciclo de preparação esportiva.
Os ciclos de preparação e os mecanismos biológicos
Sob o ponto de vista biológico, o ser humano não possui mecanismos apropriados para se manter em forma atlética durante um tempo prolongado.
As proteínas contráteis, que são responsáveis pelo mecanismo das ações musculares, possuem um certo tempo de vida útil, devendo ser substituídas a cada determinado número de dias.
Nos momentos em que ocorre a regeneração das células e tecidos, o organismo não se encontra apto a grandes desempenhos, pois as suas estruturas estão sendo reparadas e aperfeiçoadas, caso o mesmo esteja submetido aos estímulos de treinamento adequados.
Quando o organismo é estimulado pelo treinamento, nos primeiros dias ocorre um processo de reconhecimento ao esforço psicofísico dele solicitado. Isto ocorre geralmente na primeira semana de um ciclo de treinamento. Logo, a primeira semana de cada ciclo é uma semana de ajuste às cargas de treinamento que servirão de estímulos para a evolução do atleta.
Nos dias que seguem ao treinamento, o organismo vai se adaptando a esses estímulos, lançando as bases para um novo nível de desenvolvimento que leva o atleta a um rendimento superior àquele em que estava inicialmente. Pode-se observar uma melhora das capacidades condicionantes já na segunda semana de treinamento, que evoluirão com a sequência do treinamento.
Se os estímulos são ordenados de forma a promover esses benefícios no organismo, ou seja, aplicados progressiva e gradualmente, por volta da terceira semana de treinamento, o atleta se encontrará em um momento onde poderá suportar uma carga mais elevada de treinamento. A terceira semana de cada ciclo é aquele onde as cargas de treinamento se elevam ao máximo, para aquele momento, e o atleta se sente mais forte e bem-disposto.
A partir de então, tem início uma fase de redução na capacidade biológica, onde o organismo encontra-se destinado a uma regeneração de sua estrutura e funcionamento. Neste momento, uma certa fraqueza muscular ou algum desconforto podem ocorrer em relação aos treinos mais intensos e de maior quilometragem.
Toda esta sequência de acontecimentos não ocorre somente em relação a quatro semanas de treinamentos, porém de um modo muito mais amplo, durante toda a temporada competitiva e ao longo da vida atlética do corredor.
Esquema representando a distribuição das cargas de treinamento ao longo de um ciclo de quatro semanas de preparação.
Esquema representando a distribuição das cargas de treinamento ao longo de um ciclo de doze semanas de preparação.
Estímulo e adaptação: a resposta do organismo ao treinamento
Uma das propriedades básicas dos seres vivos é a sua capacidade de adaptação ao ambiente.
A partir das observações do cientista Charles Darwin, em seu famoso clássico “Sobre as Origens das Espécies” (1859), o tema “evolução do ser humano” adquiriu grande importância nos meios científicos.
Nos anos de 1930, Hans Selye, cientista canadense, propagou a teoria da Síndrome da Adaptação Geral que, em outras palavras, diz que o organismo humano responde aos estímulos do ambiente, adaptando-se ao meio para a sua sobrevivência. A descoberta de Selye diz que o organismo humano se encontra em um estado de equilíbrio bioquímico dinâmico denominado de homeostase.
Todas as vezes que realizamos o treinamento correto, conforme a teoria dos ciclos de preparação de Matveev, ocorrem perturbações na homeostase que induzem a novas adaptações e respostas biológicas mais eficientes no futuro.
Pela teoria de Selye, três são as possibilidades de resposta do organismo, conforme seja a intensidade e a duração dos estímulos, que aqui transportamos para a preparação desportiva:
a) estímulo débil: quando os exercícios físicos aplicados já são reconhecidos pelo organismo, o mesmo se encontra adaptado ao esforço requerido. Se esses estímulos estiverem abaixo da capacidade de resposta biológica do organismo, os mesmos não produzirão nenhum tipo de alteração na estrutura e funcionamento do mesmo. Isto significa que o treinamento não produzirá nenhum benefício, não proporcionando melhora no rendimento;
b) estímulo ideal: se o exercício físico é reconhecido pelo organismo e o estímulo proporcionado pelo mesmo está em conformidade com a capacidade biológica, a resposta ao estímulo produzirá benefícios ao organismo, promovendo novas possibilidades de adaptação e melhora no rendimento. Neste caso, o esforço psicofísico proporcionado pelo exercício físico foi suficiente para induzir o organismo ao aperfeiçoamento de sua estrutura e funcionamento;
c) estímulo agressivo: nesta situação, o esforço do organismo para responder ao exercício físico estava além de suas possibilidades. Para tentar executar o que foi solicitado, o organismo teve que recorrer às reservas biológicas que são utilizadas somente em caso de grande perigo à vida. Ao ultrapassar este patamar biológico de proteção à vida, o organismo se encontra exposto aos riscos de lesões e traumas que, além desta questão, podem inclusive limitar o seu rendimento futuro. Os treinos de alta intensidade e elevadas quilometragens aplicados em momentos inadequados da preparação, são exemplos de estímulos agressivos que remetem o organismo a um estado de degradação da sua capacidade.
Fadiga e recuperação: o segredo para melhorar o condicionamento
Durante o treinamento o organismo utiliza as suas reservas de energia, também ocorrendo uma degradação na taxa de proteínas contráteis, responsáveis pelas ações musculares.
Ao final do treino o organismo encontra-se em um estado de fadiga, que impossibilita a continuação do exercício físico na mesma intensidade e duração.
A fadiga é o desgaste natural provocado pelas exigências do treinamento, tendo como consequência a redução do desempenho do atleta, parcial ou completamente, conforme seja o nível em que a mesma se apresente.
Quando mais intenso e mais longo for o exercício executado, maior será o desgaste orgânico – maior será a fadiga.
Se os efeitos da fadiga não forem considerados após o treinamento, o quadro clínico apresentando poderá ser revertido para uma exaustão, ou seja, o completo esgotamento das possibilidades orgânicas, o que torna inviável a execução das tarefas do treinamento e da competição.
Entretanto, a fadiga não é um mal em si, mas algo de grande importância para a melhora do condicionamento do atleta, pois, durante o repouso, o organismo irá se recompor e apresentar uma melhora em relação ao seu nível inicial (antes do treino).
É durante o repouso que irá ocorrer a recuperação do organismo, que podemos definir como sendo a restauração das reservas energéticas, o reequilíbrio dos processos bioquímicos e a regeneração da estrutura e função celular. A recuperação poderá ser parcial ou total, dependendo das medidas tomadas e da importância que cada um dá a esse momento.
As tarefas principais a serem observadas durante o repouso são: garantir um adequado suprimento de nutrientes (os carboidratos são muito importantes!), reposição de líquidos e as horas de sono suficientes.
Podemos dizer que o processo que conduz à melhora da capacidade atlética dos corredores é um produto da relação fadiga x recuperação.
Assim, temos a fórmula:
C = F x R
Onde C = condicionamento, F = fadiga e R = recuperação.
Se durante a fase de repouso o corredor realizou as tarefas necessárias para a completa restauração do organismo, ocorrerá o que se denomina como fenômeno da supercompensação, isto é, o aumento posterior da capacidade em realizar o esforço físico em relação ao nível em que se encontrava anteriormente.
Observe as figuras abaixo, que ilustram quando ocorre a supercompensação, conforme sejam os estímulos recebidos.
FIGURA 1
SEM EFEITO DE TREINAMENTO
(ESTÍMULO DÉBIL OU EXPOSIÇÃO TARDIA A UM NOVO ESTÍMULO)
NÃO PROVOCA NENHUMA MELHORA NO CONDICIONAMENTO FÍSICO
E NO DESEMPENHO ESPORTIVO
(NÃO OCORRE A SUPERCOMPENSAÇÃO)
FIGURA 2
EFEITO POSITIVO DE TREINAMENTO
(ESTÍMULO IDEAL, RECUPERAÇÃO COMPLETA)
MELHORA DO CONDICIONAMENTO FÍSICO E DESEMPENHO ESPORTIVO
(FENÔMENO DA SUPERCOMPENSAÇÃO OBSERVADO)
FIGURA 3
EFEITO NEGATIVO DE TREINAMENTO
(ESTÍMULO AGRESSIVO, RECUPERAÇÃO INCOMPLETA)
LESÕES FÍSICAS, DANOS FUNCIONAIS E EMOCIONAIS
RISCO À SAÚDE, OVERTRAINING
(NÃO OCORRE A SUPERCOMPENSAÇÃO)
A figura 2 é o resumo daquilo que temos que buscar durante o treinamento, ou seja, o exercício físico aplicado na medida certa, seguido de uma recuperação adequada e do consequente aumento do nível de preparação do corredor.
Considerações finais
Podemos afirmar que a vida do corredor se resume na seguinte sequência de eventos:
TREINAR – REGENERAR – COMPETIR – REGENERAR – TREINAR – REGENERAR – COMPETIR – etc.
Este ciclo se repete sistematicamente, seja durante uma semana, um mês, um ano ou ao longo da vida atlética do corredor.
Para realizarmos uma boa prova e obtermos um novo recorde pessoal, se faz necessário a preparação adequada, seguido de um período de recuperação suficiente que elimine todos os vestígios da fadiga acumulada, permanecendo apenas o novo condicionamento atlético alcançado após o penoso processo de treinamento.
O nosso próprio corpo nos dará dicas valiosas do estado em que nos encontramos, se precisamos treinar ou descansar. Basta observarmos o comportamento da freqüência cardíaca, da respiração e da resposta muscular ao exercício físico. Músculos “pesados” e sem “força” são indícios de que ainda não estamos recuperados 100%, assim como a frequência cardíaca e a respiração mais aceleradas durante o repouso.
A participação sem critério em um elevado número de competições durante o ano, compromete todo o processo evolutivo do organismo do corredor que pretende alcançar novos patamares em sua forma atlética, pois é na competição que ele irá apresentar todo o seu arsenal de recursos físicos e psicológicos ou toda a sua fragilidade perante os desafios proporcionados pela mesma. Portanto, toda competição deve ser previamente planejada.
A máxima que devemos seguir é: “na competição devemos competir; no treino, treinar”. Qualquer coisa que fuja a esta regra está fora de cogitação, trazendo somente frustrações desnecessárias ao corredor. Isso porque muitos corredores são verdadeiros “leões de treinos”, porém, “gatinhos de competição”.
Não podemos nos enganar em relação aos mecanismos biológicos que fazem do nosso organismo algo extraordinário, uma potente “máquina” dotada de muitos recursos inteligentes.
A dedicação e a perseverança são as nossas aliadas, mas a negligência tem um preço elevado; doloroso será o caminho percorrido por aqueles que querem, a todo custo, alcançar as glórias do Olimpo sem o mínimo de preparo e conhecimento do seu próprio corpo.
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