Ignorância é confundir o impermanente com o eterno, o impuro com o puro, a fonte de sofrimento com a fonte de felicidade e o ego com o Eu verdadeiro. (Yogasutras. II-5)
Avidya é o termo que se usa, na tradição do yoga, para uma visão embotada da realidade. Avidya representa a ignorância, no sentido da falta de percepção do indivíduo em relação à sua verdadeira natureza. Muitas coisas encobrem a visão correta da realidade, dentre elas, os hábitos e condicionamentos adquiridos de nossa cultura, sociedade, religião, política e economia. Imersas na ilusão, as pessoas acabam por ser subjugadas por aqueles que detém tanto o poder da interpretação da lei, quanto a força da autoridade para fazer cumprir aquilo que é considerado certo.
O post de hoje tem como proposta uma breve biografia daquele foi considerado um defensor da divulgação do conhecimento, e da urgente necessidade de mudanças em hábitos enraizados em um sistema político-religioso que, conforme suas pretensões de poder e domínio, apenas servia para subjugar as pessoas, mantendo-as em um estado de cegueira espiritual.
Essa personagem histórica, ao perceber a visão embotada que pairava sobre a ordem eclesiástica e as pessoas em geral, exigiu a reforma das práticas religiosas, bem como a restauração de uma ética clerical condizente com os princípios espirituais mais nobres e elevados. Sua tentativa foi de “limpar o espelho”, para que o conhecimento fosse, enfim, revelado em sua plenitude a todos os que estavam subjugados pela falta de compreensão. Conhecimento era o caminho para a liberdade intelectual e espiritual.
Erasmo de Rotterdam
Desidério Erasmo, vulgo de Rotterdam, nascido nesta cidade em 28 de Outubro de 1466, foi um teólogo, considerado como o maior representante do Humanismo. O Humanismo foi uma corrente de pensamento, desenvolvido na Europa entre os séculos XIV e XVI, e que tinha como principais características o antropocentrismo, a racionalidade e o cientificismo. Ele se constitui na base do Renascimento, e marcou a transição entre a Idade Média e a Moderna.
Para os humanistas, o ser humano era detentor de uma capacidade intelectual ilimitada e, assim, a divulgação do conhecimento deveria ser estimulada, questão essa que desafiou o sistema político-religioso da época. Não foi por acaso que a imprensa surgiu no século XV, invenção de Johann Gutemberg, e que impulsionou as ideias humanistas por toda a Europa.
Como uma de suas primeiras ações que se pode considerar como resultado do seu pensamento crítico, Erasmo, resistindo aos preceitos da tradição religiosa, em 1493, abandona a Ordem dos Agostinianos por não suportar a vida no monastério, apenas um ano após o seu ingresso. O contato com os humanistas franceses, após a insatisfação com os estudos de teologia na Sorbonne, em 1495, permitiu-lhe novas perspectivas em relação à compreensão da realidade social de sua época, ao qual dedicou severas críticas à escolástica.
Na Inglaterra, em 1499, Erasmo conheceu Thomas More, que se tornaram amigos. Influenciado pela obra de Lorenzo Valla (1407-1457), Anotações ao Novo Testamento, Erasmo se convenceu da necessidade de promover uma fundamentação teológica crítica do Novo Testamento, conhecido então como Vulgata, de São Jerônimo.
Ele, então, assumiu o compromisso de traduzir, do grego para o latim, o Novo Testamento e adequá-lo conforme os conhecimentos dos pressupostos humanistas. Possuidor de vasta cultura geral, o cristão Erasmo foi admirado pelos humanistas e, ao mesmo tempo, reconhecido como traidor da tradição religiosa por sua tentativa de empreender um movimento de restauração e reforma da Igreja.
Apontando para o monopólio do conteúdo das escrituras sagradas pelas instituições eclesiásticas como um equívoco que reduz a religião à simples rituais destituídos de significados éticos e espirituais, Erasmo mostrou o abismo que separa o clero dos fiéis, denunciando ainda que a vida monástica – o isolamento nos mosteiros – era algo muito distante da verdadeira fé.
A Philosophia Christi
Para Erasmo, a Igreja deveria recuperar a autenticidade de seus princípios fundadores, o que tornaria possível a philosophia Christi, ou seja, um modo de vida onde todos os cristãos pudessem seguir os Evangelhos conforme a ética formulada por Cristo, e não uma teologia dogmática, misteriosa e especulativa.
A philosophia Christi é a expressão do humanismo que Erasmo buscou empreender na Igreja, e que se manifestou na negação de todos os traços secundários do cristianismo medieval (a vida monástica, os votos, a religião exterior - caracterizada pelas abstinências, peregrinações, bulas e liturgias), o que desobrigava os fiéis das formalidades do estruturalismo eclesiástico e teológico, pois o ser humano é naturalmente bom e deve ser livre em sua vontade para a realização de boas obras e obter, assim, a graça de Deus.
O Elogio da Loucura
Erasmo, em sua obra, Elogio da Loucura, de 1508, escrita em homenagem ao amigo Thomas More, lançou o germe da Reforma Protestante, perpetrada por Marinho Lutero, a partir de 1517. Apesar de sua eloquente denúncia acerca dos equívocos eclesiásticos e teológicos e do convite de Lutero para unir-se às suas pregações, Erasmo relutou em partir para a prática e preferiu optar por permanecer na Igreja Católica, apenas apontando-lhes os defeitos.
Talvez a recusa do convite de Lutero se deva às questões contraditórias que havia entre eles e relacionadas ao livre-arbítrio. Porém, reforma protestante à parte, em O Elogio da Loucura, Erasmo atiçou o debate sobre os costumes da Igreja de seu tempo por meio de uma crítica severa:
Suponha-se que, em meio a todos esses prejuízos, surgisse um odioso moralista que, em tom apostólico, fizesse esta patética, mas verdadeira exortação: “Não basta ter devoção por São Cristóvão: é preciso, também, viver segundo a lei divina (...) praticando constantemente o Evangelho.
Percebe-se neste trecho que, para Erasmo, não bastava apenas que os fiéis acreditassem nas aparências da religião exterior; ao cristão cabia-lhe o dever de seguir os exemplos deixados pelos santos, pois esta era a verdadeira religião que conduziria o ser humano à salvação de sua alma. Em seu discurso, Erasmo expôs ao público as contradições da Igreja, dos padres e dos fiéis, confrontando a teoria com a prática.
Em outra passagem de sua obra, Erasmo se direciona para as crendices populares que o povo, ignorante, acreditava como verdades, e disso a Igreja tirava vantagens como, por exemplo, vendendo indulgências – o “passaporte para o Céu” – que as pessoas acabavam por adquirir em nome da sua salvação. Afirmava Erasmo:
Mas, eis que se adiantam algumas pessoas, que sem dúvida vivem sob as minhas leis: são os que se divertem ouvindo ou contando milagres e romanescas invencionices. (...) Os milagres, os espectros, os duendes, os fantasmas, o inferno, e mil outras visões dessa natureza, são o assunto mais comum das conversas do vulgo ignorante, sendo que, quanto mais extraordinárias são essas coisas, com tanto maior prazer são elas ouvidas e facilmente acreditadas. E não penseis que tais histórias são contadas apenas para iludir as horas de aborrecimento: tornaram-se, na boca dos monarcas e dos pregadores, um meio de tirar proveito da crendice popular.
Esse é um dos motivos que tornavam a Igreja Católica reprovável, na opinião de Erasmo; urgia, assim, empreender mudanças, ou seja, uma restauração nos valores morais e a reforma nas práticas eclesiásticas. As indulgências foram o motivo de duras críticas daquele que é considerado o maior pensador do humanismo:
Persuadidos dos perdões e das indulgências, ao negociante, ao militar, ao juiz, basta atirarem a uma bandeja uma pequena moeda, para ficarem tão limpos e tão puros dos seus numerosos roubos como quando saíram da pia batismal. Tantos falsos juramentos, tantas impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas, tantos assassínios, tantas imposturas, tantas perfídias, tantas traições, numa palavra, todos os delitos se redimem com um pouco de dinheiro, e de tal maneira se redimem que se julga poder voltar a cometer de novo toda sorte de más ações. Quem já terá visto homens mais tolos, ou melhor, mais felizes do que os devotos, os quais julgam que entrarão infalivelmente no reino dos céus, recitando todos os dias sete versículos, que eu não sei quais sejam, dos salmos sagrados?
Observa-se que Erasmo não apenas acusava o clero de sua fraude eclesiástica, porém, não poupava, igualmente, os fiéis de seu comportamento ignóbil e sem qualquer reflexão sobre suas condutas. O povo era tão insensato quanto os padres! E nisso o humanista não tem qualquer dúvida, ao deixar explícito o seu descontentamento com as tradições “mundanas” da Igreja e as atitudes dos devotos católicos. De modo irônico e contundente, afirmava Erasmo:
Os homens, enfim, querem ser enganados e estão sempre prontos a deixar o verdadeiro para correr atrás do falso. Quereis disso uma prova sensível e incontrastável? Ide assistir a um sermão, e vereis que, quando o cacarejador (oh! que injúria! enganei-me, desculpai-me), queria dizer, quando o pregador aborda o assunto com seriedade e apoiado em argumentos, o auditório dorme, boceja, tosse, assoa o nariz, relaxa o corpo, inteiramente enjoado. Se, porém, o orador, como quase sempre é o caso, conta uma velha fábula ou um milagre da lenda, então o auditório logo se agita, os dorminhocos despertam, todos os ouvintes levantam a cabeça, arregalam os olhos, prestam atenção...
O discurso que Erasmo empreendia na figura da Loucura evocava o pensamento reflexivo acerca das práticas do clero e do comportamento dos fiéis que, segundo ele, sempre estavam dispostos a inclinarem-se aos contos fantásticos e, por contrário, pouco afeitos aos assuntos que demandavam à devida seriedade, e que deveriam ser tratados como questões fundamentais para a modificação das estruturas eclesiásticas.
Em Elogio da Loucura, portanto, percebe-se o caráter político do posicionamento que Erasmo ocupa no debate, ou seja, como restaurador dos valores e reformador das práticas, ao exteriorizar publicamente o seu descontentamento com a realidade social de sua época, apontando as falhas do sistema político-religioso, o que o levou a ser vigiado pelas autoridades eclesiásticas e, posteriormente, punido por expressar o seu pensamento contrário à ordem natural estabelecida.
O fim
Em 1517, o advento da Reforma Protestante, engendrada por Martinho Lutero, provocou um abalo nas questões propostas por Erasmo que, então, procurou não se envolver nas disputas entre católicos e protestantes. Tal neutralidade, porém, não foi suficiente para que ele não tenha sido atacado por ambos os lados, que buscavam nele o apoio às suas causas. Quando o faz, por meio da obra O Livre-Arbítrio (1524), Erasmo se posicionou ao lado da Igreja Católica, pois não concordava com as concepções de Lutero acerca do tema. Porém, definitivamente, o processo de ruptura já havia se instalado e ele não seria mais considerado.
Em outra obra de sua autoria, A Instituição do Príncipe Cristão (1516), Erasmo expôs o seu pensamento sobre as questões relativas ao poder e soberania do príncipe, cuja legitimidade era conferida pela sua dedicação ao bem comum e aceitação dos cidadãos. A regeneração da Europa, contrapondo o ideal evangélico ao princípio da guerra, era o objetivo de Erasmo que, em 12 de Julho de 1536, morreu na Basiléia (Suíça). Mesmo que ele não tenha empreendido efetivamente a restauração e a reforma da Igreja, a sua contribuição intelectual lançou a semente para uma nova realidade social perpetrada pelo luteranismo.
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