Eu podia ver claramente seu rosto impassível perfeitamente calmo e olhos arregalados com o olhar fixo em algum objeto distante e invisível, situado em algum lugar no alto do espaço. O homem não correu. Ele parecia levantar-se do chão, procedendo aos saltos. Parece que ele foi dotado da elasticidade de uma bola e rebatia cada vez que seus pés tocavam o chão. (Alexandra David-Néel)
Entre 1911 e 1925, a parisiense Alexandra David-Néel perambulou pelas terras da Índia, do Nepal e do Tibete. Seu vasto interesse e dedicação pelos conhecimentos transcendentais do Oriente, a tornaram a primeira mulher europeia a entrar em Lhasa e, ainda mais, a receber o título de lama, uma designação honorífica do budismo tibetano que significa “professor do dharma”. Um lama, portanto, é alguém que tenha alcançado uma elevada realização espiritual, obtendo autoridade para transmitir seus conhecimentos.
Ao retornar à França, Alexandra tornou-se uma famosa escritora espiritualista, uma reformadora religiosa e uma exploradora inigualável. Em 1929, ela publicou Mystiques et Magiciens du Tibet, obra em que relata suas diversas experiências místicas, vivenciadas a partir de fenômenos psíquicos, aos quais poderíamos denominar de milagres ou magias. Por exemplo: é possível uma pessoa ficar invisível? Podemos elevar a temperatura do nosso corpo a ponto de entrarmos em autocombustão? Seria possível correr pelos gélidos planaltos tibetanos, tão rápido quanto o vento, e sem se cansar?
Para Alexandra, a investigação dos fenômenos psíquicos, se levada a sério, poderia esclarecer muitos mistérios e segredos das antigas tradições esotéricas do Oriente, pois, segundo ela dizia, uma vez que um milagre ou magia tenha sido explicados, deixariam de ser milagre ou magia. Imersa em suas investigações, mesmo alertada sobre os perigos, Alexandra decidiu-se a experienciar um tulpa, isto é, criar uma imagem mental de um objeto ou ser a partir da força do pensamento.
No Ocidente, o equivalente é denominado de forma-pensamento, cuja imagem criada na mente pode apresentar característica boas ou ruins, positivas ou negativas, conforme a natureza do pensamento. Uma vez criada, a forma-pensamento torna-se real, no sentido de influenciar a nossa vida e impactar a vida de outras pessoas. Há quem diga até que são visíveis e podem ser tocadas.
Mas, o que isso tem a ver com a corrida? No livro de 1929, Alexandra faz um relato bem interessante sobre um dos mistérios que ela teria presenciado nas planícies do Tibete. Em certa ocasião, em suas andanças solitárias, ela teria visto um monge correndo; em sua descrição, ela diz que o monge parecia flutuar e seus passos eram tão regulares como o pêndulo de um relógio; e a velocidade com que se deslocava pelo espaço era inimaginável! Nesse dia, Alexandra testemunhou uma antiga prática dos iogues tibetanos, denominada lung gom pa.
Essa prática já havia sido descrita por Jetsün Milarepa, um mestre do budismo tibetano, que viveu entre os séculos X e XI. Milarepa dizia ser capaz de percorrer, em poucos dias, a mesma distância que uma pessoa comum levaria mais de um mês. Ele afirmava que essa habilidade fora desenvolvida e aperfeiçoada a partir do treinamento, de muitos anos de dedicação, do controle da respiração. A habilidade no lung gom pa fazia dos monges os mensageiros, por excelência, do Tibete. Dizem que eles percorriam até 320 km por dia ou permaneciam correndo por 48h sem parar. Eram mais rápidos e resistentes do que qualquer cavalo ou atleta maratonista dos dias de hoje. Um assombro!
Mas, afinal, o que é lung gom pa? Trata-se de uma habilidade que permite ao praticante percorrer grandes distâncias, em velocidade extraordinária. As técnicas para desenvolver essa habilidade de locomoção ao mesmo tempo duradoura e intensa, provém dos treinamentos austeros dos monges tibetanos que viviam isolados nas montanhas. O lung gom pa, portanto, é uma prática ascética, onde somente aos iniciados no budismo revelam-se os seus segredos. Muitos anos de treinamento se faz necessário para desenvolver essa habilidade de grande impacto.
O que sabemos para desenvolver o lung gom pa é que se exige do praticante a máxima concentração em sua energia vital. Por meio de técnicas de meditação específicas, o praticante alcança um amplo e profundo conhecimento sobre como utilizar sua energia vital, o que se faz no domínio e controle da respiração. É esse conhecimento que permite que a energia vital do praticante transcenda os limites do corpo físico, altere o estado de consciência e possibilite que a mente faça conexões que desafiam a lógica normal. Nesse estado de ampliação da consciência, é possível direcionar o pensamento para além das condições limitantes da mente comum, e perceber as coisas como elas são para além das aparências.
Segundo a tradição do budismo tibetano, explicada no livro The Way of the White Clouds, pelo Lama Angarika Govinda, quem deseja desenvolver o lung gom pa, deve, primeiramente, retirar-se para um mosteiro budista, renunciar à vida mundana, interiorizar-se e manter-se no anonimato. O treinamento leva de 3 a 9 anos para ser concluído. Durante esse período, o praticante não tem nenhum contato com outra pessoa; vive em total reclusão, meditando, recitando mantras e treinando o domínio e controle da respiração.
Recluso no seu espaço de confinamento, o praticante também deve ser capaz de dominar a arte da levitação: sentado, com as pernas cruzadas, aprenderá a saltar no ar, sem apoio das mãos, sincronizando o movimento com a respiração. Uma das técnicas meditativas mais importantes é a visualização: o praticante deve ser capaz de imaginar seu próprio corpo mais leve do que uma pluma. Outra prática fundamental é ser capaz de observar uma estrela no céu, acompanhar seu movimento celeste durante várias noites seguidas, sem nenhuma distração, sem perder a concentração. Essa concentração implacável em um objeto em movimento é o último obstáculo a ser superado para capacitar o praticante a correr – ou voar? – como o vento.
Meditação, controle da respiração, visualização, levitação e concentração – essas são as bases gerais do treinamento do monge budista candidato à prática do lung gom pa. Assim, em posse do domínio total da energia vital, representada pelo controle da respiração, uma força psíquica extraordinária é liberada, permitindo que a energia vital se concentre e seja direcionada para onde ele queira. Aqui, talvez, se revele o segredo do lung gom pa: não se trata de uma pessoa correndo, literalmente, pelas planícies do Tibete, incansável e na velocidade do vento; porém, de uma imagem mental, criada a partir da força do pensamento, e que se desloca pelo espaço. É o pensamento que se torna em algo concreto, visível aos olhos alheios e capaz de interagir.
O praticante que alcança o controle da respiração, alcança também o domínio do pensamento. Quem domina o pensamento, controla a mente; no controle da mente, temos o domínio e o controle da nossa vida, do que fazer, de onde estar. Faça esse exercício: concentre-se na sua respiração; mantenha-se consciente dela. Você consegue pensar enquanto está consciente da sua respiração? Esse é o estado mental onde sujeito-objeto se fundem, se tornam únicos. No yoga, o controle da respiração e mente ocorre pela constância no treinamento de pranayama, ou seja, do controle (yama) da energia vital (prana).
Como foi dito, ao praticante de lung gom pa, o anonimato é uma exigência básica. Além disso, se alguém o avista a “correr” pelos altiplanos do Himalaia, não é permitido falar ou tocar neles, pois isso interromperia o fluxo do estado meditativo e, como consequência, a imagem se dissiparia. Acredita-se que, se o fluxo mental for interrompido, o monge morrerá. Ao avistar um corredor lung gom pa, portanto, devemos apenas ser uma testemunha de uma habilidade psíquica notável.
Se, de fato, é assim que os monges lung gom pa realizam suas proezas, isso não é novidade para quem conhece um pouco do misticismo que acompanhou a vida dos santos católicos. Entre os santos católicos, um fenômeno psíquico denominado de bilocação era muito comum. São Severo, São Francisco de Assis, Santo Antônio de Pádua, São Francisco Xavier dentre outros, foram alguns que vivenciaram esse fenômeno. A bilocação nada mais é do que estar em dois lugares ao mesmo tempo. Trata-se, logo, de uma projeção astral, quando o corpo astral deixa o corpo físico. O corpo astral é o invólucro espiritual mais próximo do corpo físico, local onde ficam impressos nossos desejos, vontades, sentimentos e emoções.
Vejamos o fenômeno da bilocação, atribuído a Santo Antônio de Pádua:
No domingo de Páscoa enquanto pregava na Catedral, Santo Antônio lembrou-se de que fora designado para entoar a Aleluia, na Missa que se celebrava naquele momento na Igreja do Convento franciscano. Não querendo faltar com a obediência e não podendo descer do púlpito, parou um pouco, calou-se como se estivesse retomando a respiração e, nesse momento foi milagrosamente visto no Coro de seu convento, entoando a Aleluia. Esse prodigioso milagre de bilocação foi assistido e certificado por muitas testemunhas, espalhando-se a notícia em todos os locais.
No Brasil, a bilocação foi já testemunhada. Consta-se que Frei Galvão, o primeiro santo brasileiro, canonizado pelo papa Bento XVI em maio de 2007, foi visto por volta do ano de 1810, às margens do rio Tietê, no distrito de Potunduva, em Jaú/SP, deu assistência a um moribundo, Manuel Portes que, em desespero ante a morte, clamava pelo frade jesuíta por sua extrema-unção. Segundo as testemunhas, Frei Galvão apareceu ao longe, caminhando, se aproximou e ouviu a confissão do pobre coitado. Após dar-lhe a benção final, se afastou e foi embora. Porém, naquele mesmo instante, Frei Galvão encontrava-se em São Paulo, pregando; ele teria interrompido a pregação e pedido que os presentes rezassem uma Ave Maria por alguém que estava morrendo; em seguida, cobriu a cabeça com sua túnica e permaneceu em silêncio por alguns instantes.
Embora estejamos tratando de algo misterioso, até onde a ciência já chegou para afirmar que tais habilidades psíquicas são possíveis? Será mesmo possível que os monges lung gom pa, assim como alguns santos católicos, podem estar em dois lugares ao mesmo tempo, ou seja, enquanto seu corpo físico permanece em silêncio e quietude meditando sobre uma almofada, seu pensamento toma forma, ganha vida e viaja o mundo?
No mundo das partículas subatômicas, ou seja, no universo quântico, sim, já foi comprovado que um elétron pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Um objeto quântico, portanto, não está sujeito às leis da Física mecânica. Não temos como saber onde uma partícula vai estar e em que velocidade ela estará se deslocando, pois, realmente, ela pode estar em vários lugares ao mesmo tempo, e se move de um lugar para outro pelo simples fato de que, sua natureza é explorar, simultaneamente, o universo inteiro.
Um objeto quântico é, ao mesmo tempo, uma partícula (algo que toma forma quando observada e se limita no espaço) e uma onda (algo que viaja livremente pelo espaço, sem forma). Essa dualidade partícula-onda é inconcebível à mente humana, pois como a mesma coisa pode ser duas coisas diferentes ao mesmo tempo? É como estar quente e frio no mesmo instante; ou claro e escuro. Mas a dualidade partícula-onda, em realidade, não existe; pois os átomos não são partículas e tampouco ondas, mas apenas imagens que construímos a partir da nossa experiência cotidiana. É a consciência que cria os nossos mundos. Tal a nossa capacidade de criar imagens mentais, tal a variedade de coisas, objetos e seres distintos no mundo fenomênico. Na verdade, pouco sabemos da realidade. A ciência afirma que, aquilo que captamos com os nossos cinco sentidos, representam apenas 1% da realidade conhecida. Tem dúvidas? Então, veja esse vídeo:
Enfim. Mas qual a resposta ao título desse artigo? Podemos ou não correr como os monges tibetanos? Bem, afora os mistérios, talvez haja algo que possamos fazer, na prática, para melhorar a nossa corrida, aproveitando-nos da inspiração dos monges lung gom pa. Vejamos esse exercício, baseado em uma técnica semelhante àquelas praticas pelos monges:
1- Quando estiver correndo, concentre-se em um objeto à sua frente;
2- Controle a sua respiração, inspirando e expirando apenas quando o pé direito tocar o solo;
3- Sem perder a concentração no objeto, e consciente de sua respiração, repita, mentalmente, o mantra Om So Hum. Esse mantra representa o som natural da respiração, e remete a uma contemplação significativa do universo unificado (“eu sou isso”), conscientizando-nos da natureza interdependente de todos os fenômenos manifestados.
4- Agora, sincronize a corrida com o objeto observado, a respiração e a repetição mental do mantra. Se alcançar a sincronização, corredor e corrida se tornarão uma unidade perfeita. Não haverá mais distrações, cansaço, preocupações com tempo. Apenas a unidade perfeita a se deslocar perfeitamente pelo espaço. Pois, então, pratique e corra como os monges!
Quando a mente se torna estável, unificada e concentrada, ela se torna uma mente refinada, pois alcançou a serenidade completa. Nesse estado mental de plena tranquilidade, ao monge é possível dirigir a mente para onde queira. Se ele deseja: “Possa eu realizar os vários poderes espirituais: sendo um, que eu possa me tornar muitos; sendo muitos, que eu possa me tornar um; possa eu aparecer e desaparecer; possa eu atravessar uma parede, atravessar um muro; atravessar uma montanha como se atravessa o espaço vazio; andar sobre a água sem afundar; viajar pelo espaço enquanto eu estiver sentado, como se eu fosse uma ave”.
(Sidarta Gautama, o Buda)
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