A totalidade, a perfeição, o ilimitado e a liberdade se enquadram na categoria do “já alcançado” e nenhuma ação ou esforço é necessário para alcançá-los (Adi Sankaracharya)
Tattva Bodha é um texto introdutório ao estudo do Atman, isto é, “aquilo que sou” em realidade. Foi escrito por Sankara, o mestre hindu que desvendou a sabedoria do Advaita Vedanta, ou seja, a compreensão da Unidade Primordial.
Os escritos do Vedanta são considerados “ensinamentos universais”, pois, embora tenha uma origem específica, na Índia, não se trata de uma filosofia ou religião em particular (de um indvíduo, lugar ou cultura), mas que são “verdades reveladas” diretamente do “mundo interior” de cada indivíduo.
A “verdade da realidade” é revelada apenas para pessoas que se dedicam com afinco ao conhecimento e sincera devoção ao Ser Supremo. Não há nada de pessoal em uma “revelação da verdade”, pois que os julgamentos e perspectivas do indivíduo se encontram suspensos no momento em que o mesmo, em plena absorção da consciência individual (samadhi), une-se ao Supremo Universal, abençoado com a manifestação do “autêntico resplandecer do Divino”.
Para que a “verdade revelada” seja aceita por aqueles que não tiveram o privilégio do samadhi (a união mística ou yoga), outros indivíduos – sábios e mestres autorrealizados na senda espiritual – poderão verificar, por si próprios, ao longo do tempo, o significado e o sentido das palavras e os ensinamentos da revelação mística.
Não há como transmitir, diretamente, uma verdade revelada a outrem; quem a recebeu, apenas a declara. Assim, cabe a cada pessoa, por si mesmo, a correta interpretação daquilo que foi revelado e declarado. Porém, há de se entender que, no Vedanta, não cabe “a minha verdade” ou “a sua verdade”, pois o conhecimento expresso e os ensinamentos de tais escrituras são unificados.
Mas como é possível descobrir, por si mesmo, o conhecimento revelado, considerando-se que o mesmo não pode ser transmitido diretamente de um mestre ao discípulo? O que o mestre faz é ensinar por meio de metáforas ou parábolas. Estudar as escrituras, compreender corretamente o seu sentido e interpretar corretamente o significado das metáforas ou parábolas do mestre, é uma questão de se qualificar para a vida espiritual.
Tattva Bodha é um texto direcionado àqueles em quem, em seu coração, brotou o desejo sincero sobre o conhecimento da verdade. É a firme convicção nesse propósito que tornará o indivíduo qualificado para a compreensão dos “mistérios da existência”, da vida e da morte, do céu e da terra, do sofrimento e da felicidade, do humano e do divino.
Assim, para o “buscador da verdade” – jijñasu – o sábio mestre Sankara estabeleceu alguns pré-requisitos, cuja presença constante, irão qualificar o indivíduo para o autoconhecimento (atma-vidya). São eles:
1. Discernimento (viveka), isto é, distinguir a verdade da mentira, o real do falso, o ego da consciência, o relativo do absoluto, o ilimitado daquilo que restringe, o que é terreno do que é espiritual, o que provoca sofrimento e o que leva à felicidade. Discernir a essência (espírito) da matéria (corpo e mente), é sair da ignorância primal e dar um passo decisivo em direção a ananda (a bem-aventurança infinita). Toda matéria tem início, duração e fim; menos a essência, que é eterna e infinita;
2. Desapego (vairagya), ou seja, desprender-se do desfrute das ações. Apenas quando se alcança o correto discernimento entre a essência e a matéria, surge o desapego. Renunciar ao efêmero (conquistas, prazeres e sofrimentos materiais) para, unicamente, beber diretamente na “fonte da suprema e infinita felicidade”, eis a compreensão correta de vairagya. Somente quando se alcança o desapego, não há mais o sentimento de perda ou ganho; mas, enquanto tal sentimento estiver presente, ainda que se expresse sutilmente, é porque falta algo a ser vivenciado pelo indivíduo no mundo terreno.
3. As seis virtudes: controle da mente (shama), o domínio dos sentidos (dama), cumprimento dos deveres (uparama), equanimidade (titiksha), confiança nos ensinamentos (sraddha) e fixar a mente na contemplação da essência (samadhama);
4. Desejo por liberação (moksha), isto é, uma ardente aspiração em libertar-se do sofrimento e da busca pela felicidade terrena. Moksha emerge com o autoconhecimento, ou seja, a percepção correta da vida terrena e a compreensão correta da existência. O desejo pela liberação do samsara (ciclo de nascimento, morte e renascimento), conforme afirma Patanjali, no Yoga Sutras, “está próximo para aqueles que estão motivados e convictos na prática diária” (I.22).
O estudo do Vedanta e a realização no yoga conduz à sabedoria transcendental. Mesmo no corpo físico, e cumprindo seus deveres alegremente no mundo terreno, a alma individual (jiva) alcança o estágio de libertação do sentimento de limitação (jivanmukta). Ao conhecer a essência, renunciando aos apegos e aversões, ela está livre para viver a vida em toda a sua plenitude.
Alcance o que você já conquistou
Cada ação que realizamos é para alcançar algo. Pelo esforço correto, pela perseverança e dedicação, até o que parece inatingível pode ser alcançado. Entretanto, nenhuma ação ou esforço é necessário para alcançar o que já foi alcançado.
Um dia um homem se voltou para o Ser Supremo pedindo uma cabeça sobre seus ombros e o Ser Supremo ficou surpreso. “Eu sou onipotente, mas não posso conceda-lhe o que você pede”, disse ele; “Eu posso te dar uma cabeça maior ou uma cabeça menor; posso torcê-lo como um pretzel ou achatá-lo como uma pizza, mas não posso colocar uma cabeça em seus ombros.” “E por que não?”, perguntou o homem, incrédulo. “Porque você já tem uma cabeça sobre os ombros”, respondeu o Ser Supremo.
O décimo homem
Um grupo de dez homens viajava pelo campo e chegou a um rio que teve que ser atravessado. Para ter certeza de que todos estavam presentes, assim que cruzaram o rio, o líder os alinhou e fez a contagem. Para sua surpresa e espanto, haviam apenas nove homens. Então, os membros do grupo começaram procurar, por toda parte, pela pessoa perdida. Entretanto, nenhum dos seus esforços foram suficientes para encontrar o décimo homem, o que os levou a uma profunda tristeza.
Nesse momento, um velho mestre se aproximou do local e, percebendo a angústia dos homens, indagou-os sobre a causa. O líder explicou a situação e o sábio ancião apenas sorriu. Disse ao líder: “Alinhe-se com o resto”. Então, o velho mestre os contou. “...oito, nove e dez!”, apontando para o líder, que havia esquecido de se incluir na contagem.
Nenhuma ação ou esforço encontrou o homem perdido. O ‘homem perdido’ foi encontrado quando o líder percebeu seu equívoco ao não se incluir na contagem. Na verdade, juntamente com os outros, ele não fez nada além de procurar por si mesmo, acreditando o tempo todo que estava procurando por alguém.
O Vedanta declara, inequivocamente (e as epifanias dos sábios autorrealizados confirmam), que a nossa natureza é plena e que nenhuma ação ou esforço de nossa parte ou de outra pessoa, é necessário para tornar completo o que já é completo.
Hari Om Tat Sat.
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