Seja flexível, sejamos flexíveis, física e mentalmente. Seja forte, sejamos fortes, física e mentalmente
(Abdallah Achour Junior)
Começo o presente texto com a lembrança de um episódio relativamente recente. Durante algum tempo utilizei pallets com almofadas na sala de estar ao invés dos tradicionais sofás. A altura do assento feito com os pallets se mostrava um pouco mais baixa que os sofás usuais. Rapidamente, percebi que boa parte das pessoas que me visitavam naquele período, quase todas ainda consideradas jovens, mostraram dificuldades para sentarem e levantarem dos pallets, algumas, inclusive, precisaram de ajuda.
Os móveis feitos com os pallets não atendiam às exigências relacionadas ao conforto que haviam sido estabelecidas inconscientemente pelos visitantes. O conforto pode ser uma faca de dois gumes, pois ele nos dá e nos tira. Ou seja, nos dá uma boa condição que exige menos esforço do nosso corpo, mas tira dele a capacidade natural de se adaptar e executar movimentos simples e primários.
Vamos lembrar das mudanças ocorridas nas casas das cidades europeias, entre os séculos XVII e XVIII, e que foram posteriormente incorporadas às nossas casas brasileiras. Os ambientes domésticos das casas dos negociantes se misturavam aos ambientes públicos destinados ao trabalho, às hospedagens de viajantes e comerciantes, à acomodação da criadagem, etc. Não havia naquele momento a compreensão do conceito lar tal como o entendemos hoje, ou seja, não havia noção de privacidade, tampouco de conforto. A casa era o local do trabalho, do ganha-pão, do preparo das refeições e das coisas necessárias para viver. A casa era o local onde as pessoas jogavam seus corpos para dormirem após exaustivos períodos de trabalho. Móveis eram poucos e os que apareciam nos interiores tinham funções muito específicas voltados à praticidade e economia.
Porém, as casas foram deixando de ser locais de trabalho e começavam a se modificar. Surgiam alterações como ambientes menores, separação entre moradia e trabalho e introdução de hábitos mais reservados, permitidos com a incorporação do conceito de privacidade. De locais públicos, elas assumiam caráteres reservados, e nelas se desenvolviam comportamentos mais pessoais e íntimos. O isolamento da família passou, gradativamente, ser a principal função da casa e esta foi assumindo feições do que se convencionou, posteriormente, denominar lar.
Nesse momento, começou a despontar de forma mais proeminente o conceito conforto. O termo, em si, já era utilizado, mas sofreu mudanças profundas em seus significados. Originalmente, a palavra confortável não estava associada ao prazer ou à satisfação. Sua raiz latina confortare, vincula-se ao termo fortalecer ou consolar, e nesse sentido foi sua utilização durante séculos, e ainda tem sido: confortar a alguém em momentos difíceis, consolar. Na teologia, em inglês, o Comforter era o Espírito Santo. No sentido jurídico, dizia-se na Inglaterra, durante o século XVI que o comforter seria aquele que havia sido cúmplice de um crime, com um sentido de parceria. A ideia de quantidade suficiente, ou tolerável, boa e sem exageros, de uma determinada condição ou qualidade passou a ser incorporada posteriormente. O sentido de conveniência e bem-estar físico foi atribuído ao termo a partir do século XVIII, assim como a associação do termo com as características térmicas de um local (RYBCZYNSKI, 1996).
Mas, quando mencionamos a palavra conforto, é comum fazermos a associação entre ela e as sensações obtidas quando estamos ou não estamos sentados de forma confortável. O hábito de sentar e as posturas a ele vinculadas se modificaram bastante ao longo dos séculos. Durante a idade média, não se via cadeiras no interior das casas e casebres. Quando elas apareciam, era para dar ares de importância a quem nelas estivesse sentado. E o sentar, ocorria sem que jamais o corpo estivesse reclinado. Reis utilizavam cadeiras.
Para Rudofsky (1980), escritor, design e arquiteto, as cadeiras, ou melhor, o hábito de nelas sentar, mostrou-se algo nocivo, extremamente prejudicial e deveria ser evitado, talvez banido ou substituído por outras alternativas, como redes e tablados, ou na melhor hipótese, pelo próprio chão. Para ele, sentar é um hábito adquirido, tal como fumar, e tão “saudável” quanto.
Os ocidentais foram aqueles que adotaram o sentar no alto, em cadeiras. Todos os outros se agacharam. Cada cultura encontrou conforto em uma postura que considerou adequada e manter-se fora dela é algo muito desconfortável. Alguns povos asiáticos fazem suas refeições próximos ao chão, sobre baixos tablados, sem problemas. Indianos preferem comer no chão sempre que possível, mesmo que tenham mesas de jantar em suas casas; tem os que gostam de ficar em cócoras como os indígenas e os matutos e os que não se veem de outra maneira que não seja no alto, em cadeiras, como os ocidentais, pois para eles, manter-se no chão, sem encosto para as costas, provoca formigamento das pernas, dores na coluna, mal-estar (RYBCZYNSKI, 1996).
As posturas diferentes, assim como os utensílios para comer (garfo e faca, pauzinhos ou as mãos, por exemplo), dividem o mundo tão profundamente quanto as fronteiras políticas.
(Witold Ribczynski)
Quando pensamos nos motivos que levaram uns a adotarem um determinado tipo de postura e não outro, fazemos a associação entre móveis e proteção do frio, pois a maior parte do mundo que se agacha está situada nos trópicos. Entretanto, foram os mesopotâmios, os egípcios e os gregos – todos advindos de lugares quentes - os inventores dos móveis para sentar. A teoria é logo desbancada quando lembramos dos japoneses e coreanos, que se sentavam sobre seus estrados aquecidos, e vivem em locais frios.
Para Braudel (1981) a justificativa poderia estar na impossibilidade de os pobres não possuírem móveis. De forma geral, tal teoria pode apresentar algum fundamento, mas é também desbancada. Sobre isso, Ribczynski (1986) diz:
Ela explica a escassez de móveis na Etiópia ou em Bangladesh – ambas culturas tradicionais e pobres – mas não em civilizações prósperas e dinâmicas como a Turquia otomana e a Pérsia imperial. E também não explica por que a Índia mongol, que era próspera o bastante, e que dominava a técnica necessária para construir o Taj Mahal, não tenha criado móveis para sentar. [...] japoneses do século VIII, que copiaram grande parte da tecnologia e da cultura chinesa, sabiamente ignoraram os móveis chineses (RIBCZYNSKI, 1996).
Nem mesmo as características físicas/biológicas dos povos justificariam a opção cultural. Japoneses, em geral, possuem menores estaturas do que os europeus. Entretanto, africanos que também se agacham, costumam ser maiores. Restaram ainda as explicações fundamentadas no gosto pessoal ou como afirmou Rudofsky (1980), na teimosia ocidental e na questão do natural e do artificial. Se o chão basta para se sentar, como defendia Rousseau, cadeiras e camas seriam desnecessárias e, portanto, artificiais e inferiores. Em tal pensamento, todo o natural, configura aquilo que não é artístico, e seria superior e mais genuíno. Então, portanto, toda a cultura humana é artificial. Bastaria comer sem grandes criações gastronômicas; ouvir vozes e sons, sem a criação da música; admirar as paisagens sem elaborar as pinturas; agachar e se sentar no chão. A questão é que a artificialidade dá vazão às criações artísticas, e essas nos dão prazer. Desenvolveram-se móveis, quadros, receitas e temos prazer com nossa artificialidade. Mas, se pensarmos no que nos é imprescindível para viver, nada disso estaria na lista. Sem dúvida, os artefatos, tornaram seus usuários deles dependentes e a vida se fez para eles, indiscutivelmente, mais difícil e infeliz em suas ausências.
Atualmente nos encontramos exageradamente distantes do chão. Temos dificuldades para lidar com ele, para agachar e pegar objetos, limpar embaixo dos móveis, e sobretudo, sentar diretamente, ou quase, sobre ele. Sentar no chão, é para a maioria dos adultos, algo extremamente desconfortável. Durante o desenvolvimento dos bebês, na fase chamada primeira infância, devemos estimular o movimento de engatinhar, e nem sempre o fazemos. Sair do calor do colo ou do berço e vencer o chão é uma conquista. Nem todos os bebês engatinham, alguns rastejam, rolam sobre o chão e passam diretamente para o andar. Mas, dar a eles a liberdade e possibilidade de explorar o chão é importante e saudável.
Para conseguir se locomover, é necessário, portanto, primeiro dominar a estabilidade do corpo, pois a locomoção se desenvolve com base nela. O rastejar e o rolar, é o que nos irá preparar para o domínio da estabilidade corporal. O rastejar é a primeira tentativa de locomoção, que ocorre com o apoio das mãos, com o peito e o abdômen no solo, e atingimos essa condição por volta do 6º mês de vida. Esse movimento vai se aprimorando com base no domínio da estabilidade e com o desenvolvimento do controle dos músculos da cabeça, pescoço e tronco (GALLAHUE et al, 2021).
Depois, por volta do 9º e do 11 º mês de vida, quando já dominamos o movimento do rastejar, passamos para a próxima etapa do desenvolvimento da locomoção que é o engatinhar. O movimento torna-se um pouco mais complexo do que o anterior e necessita de um controle da estabilidade mais desenvolvido, pois é realizado com 4 apoios (mãos e joelhos) e com alternância de movimentos. Quando passamos por estas etapas e desenvolvemos a estabilidade corporal e conseguimos ficar em pé sozinhos, iniciamos a locomoção ereta, geralmente entre o 10 º e o 15 º mês de vida (GALLAHUE et al, 2021).
Embora o chão ainda seja muito presente no cotidiano das crianças ocidentais, pois brincadeiras são feitas no chão, atividades escolares e esportivas, podemos considerar que a maioria delas chegará a idade adulta quase sem nenhuma intimidade com ele. Quando estiverem no ápice de suas atividades profissionais, passarão a maior parte de tempo de suas vidas sentados em cadeiras, sofás tradicionais ou dormindo em camas confortáveis. E explorar o chão será novamente um grande desafio!
Quando iniciamos atividades físicas em idade adulta, observamos o quanto o chão nos parece longe demais para alcançá-lo com a ponta dos dedos das mãos, duro demais para apoiar a base dos pés, retilíneo demais para reposar nossa coluna, desconfortável demais para acomodar nossos quadris. Na prática do Yoga também sentimos certo desconforto para execução dos ásanas (posturas corporais) sobre o chão e recorremos aos complementos como mat (tapetinho), bloquinho (peça retangular, semelhante a um tijolo, geralmente confeccionada em madeira ou material emborrachado) zafu (tipo de almofada), cadeira. E a diferença é bastante evidente quando se está tête-à-tête com o chão ou quando se tem um o amortecedor entre ele e nosso corpo. Não há nada de errado nisso e podemos praticar yoga por quanto tempos quisermos com os complementos, até mesmo para sempre. A técnica Iyengar, por exemplo, foi concebida para fazer as posturas com a utilização dos acessórios próprios para a praticá-la (cadeiras, cintos, cordas, blocos, etc), de modo a tornar acessível para toda e qualquer pessoa, independentemente de idade e condição física. Esse estudo, possibilita beneficiar-se das posturas e técnicas respiratórias de yoga, acomodados e acolhidos pelos acessórios.
Mas, em boa parte dos casos, a prática constante condiciona positivamente o corpo e em curto período é possível obter a condição para dispensá-los, com exceção do mat, que é usado também por razões higiênicas e já está incorporado à prática. Quando praticamos os ásanas não estamos preocupados em conseguir executar o impossível corporal, mas, simplesmente, preparar nosso corpo para que ele aguente firme e esteja confortável durante um largo período meditativo.
Por fim, após encerrar a leitura, os convido a deixarem a cadeira, o sofá ou o colchão e revisitarem o chão de suas casas. Sugiro removerem as meias e perceberem o apoio sob os pés. Depois, assim como fazem os bebês, os convido a rastejar, engatinhar ou simplesmente deitar. Para os que mantém uma prática regular de atividade física as dificuldades serão menores ou inexistentes. Os praticantes de Yoga perceberão que mantém intimidade com o solo. Os que ainda não o fazem, sentirão que poderão experimentá-lo e assim, levar os benefícios para corpo e para a mente.
Vejo vocês no próximo post, até lá!
Om Shanti.
* Nota: Agradecemos ao querido ilustrador Danillo ds que nos cedeu a imagem das casas que, sem essa pretensão, nos remeteu visualmente às vilas medievais.
Referências
ACHOUR JUNIOR, A. Exercícios de alongamento: anatomia e fisiologia. Barueri, SP: Manole, 2006.
BRAUDEL, F. The structures of everyday life, 1981.
GALLAHUE, D. L.; OZMUN, J. C.; GOODWAY, J. D. Compreendendo o desenvolvimento motor: bebês, crianças, adolescentes e adultos. Porto Alegre: AMGH, 2013.
RUDOFSKY, 1980; Now I Lay Me Down to Eat, Garden City, Nova York: Anchor Press/Doubleday, 1980.
RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma ideia. Rio de Janeiro: Record, 1996.
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