O princípio do difícil / fácil
Treinar de modo intensivo todos os dias, ou seja, correr “forte” em todas as sessões de treinamento, não é a melhor opção a ser adotada por quem pretende ampliar a sua capacidade orgânica e obter novas marcas na corrida, seja qual for a distância ou o condicionamento atlético. A alternância de treinos que provocam desgastes com treinos regenerativos, sempre é a melhor prática a ser observada na preparação esportiva.
No início dos anos 70, Bill Bowerman, da Universidade de Oregon, um dos fundadores da Nike e técnico dos melhores corredores fundistas americanos na ocasião, entre eles Steve Prefontaine, já indicava que “após um dia de treino forte, deve-se fazer um treino fraco”, máxima que ficou conhecida como “princípio do difícil / fácil”.
Bowerman defendia a tese de que o corredor não deve realizar treinos intensos e / ou longos por dois dias consecutivos, pois estaria expondo o seu organismo aos riscos de lesões e a um desgaste físico e psicológico injustificado.
A proposta de Bowerman pode ser observada em inúmeros casos, tanto entre os corredores principiantes quanto aos de categoria superior, confirmando a necessidade da alternância entre os dias de treinos fortes e dias leves.
Assim, os corredores que insistem em manter uma rotina de treinos extenuantes, não prevendo dias ou períodos para uma adequada recuperação orgânica, não serão beneficiados pelo processo de preparação, deixando sua saúde exposta aos riscos dessas agressões provenientes do treinamento diário intenso, além de não obterem a melhora do condicionamento físico e, consequentemente, de melhores desempenhos nas competições.
A fadiga e a depleção do glicogênio muscular
A fadiga é um mecanismo de defesa do organismo, que não permite que o mesmo seja levado até a uma exaustão tal, que seja capaz de levá-lo à morte.
A fadiga, inicialmente, é representada pela sensação de cansaço e a redução do desempenho muscular. Nas corridas de longa duração, a depleção do glicogênio, ou seja, da energia que abastece os músculos, é um dos fatores principais do surgimento da fadiga.
De um modo geral, após três dias consecutivos de uma corrida de 16 km, em ritmo moderado / forte, as reservas de glicogênio muscular (carboidratos estocados nas fibras musculares), atingem o esgotamento quase completo, deixando o corredor sem energia para a continuação dos treinamentos.
O tempo para o organismo se recuperar de tamanho desgaste está compreendido entre 48-72 h ou mais, dependendo da capacidade de regeneração de cada corredor, sua idade e nível de preparação.
O glicogênio muscular é o principal combustível que determina a manutenção de um ritmo intenso e prolongado de corrida, sendo utilizado mais rapidamente no início do exercício do que no final do mesmo.
Observando o gráfico, vemos a depleção quase total do estoque de glicogênio em uma corrida de 3 h de duração em ritmo moderado.
Depleção do glicogênio no músculo gastrocnêmio (panturrilhas),
durante corrida na esteira a 70% do VO2max (Wilmore e Costill, 2001).
A percepção do esforço, ou seja, o modo como o corredor sente a aproximação e a instalação da fadiga, ocorre da seguinte maneira: até por volta de 1h30min, a sensação do esforço é “moderada”; ao aproximar-se de 2h30min, a sensação do esforço é “difícil”; daí em diante, os corredores passam a perceber o esforço como “muito difícil”.
Isso significa que, mesmo com a redução contínua do glicogênio, o corredor somente passa a perceber o esforço realizado como sendo “muito difícil” a partir do momento em que as reservas de glicogênio estão muito baixas.
Ou seja, a taxa de esforço (sensação de fadiga) que acompanha a depleção do glicogênio somente se eleva a partir do momento em que ocorre a redução drástica das reservas musculares. Não esqueçamos que o desgaste fisiológico, para além da fadiga, pode alcançar o patamar de exaustão, quando a depleção energética se alia a uma desidratação acentuada, que ocorre, principalmente, em dias quentes e úmidos. A exaustão, caso não considerada com seriedade, poderá até pôr em risco a vida do corredor.
O corredor que treina sempre em ritmo elevado (de moderado à forte), quase que diariamente, em poucos dias apresentará um quadro de fadiga tão profunda quanto duradoura, pagando um preço muito alto por tal insistência.
Obviamente, na preparação para competição, há sessões de treinos que irão exigir maior desempenho e, portanto, provocar fadiga. Mas esses treinos são planejados 1 ou 2 vezes na semana, seguidos de treinos moderados ou recuperativos e, até mesmo, descanso.
Independentemente do tipo de treinamento realizado, seja uma simples rodagem, um treino intervalado ou um longo para a maratona, o ritmo de corrida e a duração do treino devem estar de acordo com as possibilidades do corredor, no sentido de preservá-lo de um desgaste acentuado, tendo como consequência a instauração de um quadro de fadiga ou até mesmo sobretreinamento (“overtraining”), caso isso se repita continuamente.
Tipos de piso / características do percurso
As variações no tipo de terreno também são importantes quando lidamos com o desgaste físico, pois a corrida realizada em aclives e declives acentuados ou terrenos arenosos, torna-se muito mais extenuante que um “trote” na grama em torno de um campo de futebol, por exemplo.
Os músculos da panturrilha (gastrocnêmio e sóleo), são os que mais sofrem com o desgaste provocado pelo treinamento, seja nas corridas “morro acima”, no plano reto ou nas descidas, principalmente. Portanto, são eles que estão mais propícios a apresentarem uma redução das reservas de glicogênio de modo acentuado.
Um bom plano de treinamento deve prever, além da variação do ritmo e a duração da corrida, treinos em diversos tipos de terreno, alternando locais planos com montanhas, em aclives e declives, gramados, “chão batido”, areia, asfalto.
Como já dito, a sensação de uma fadiga severa é percebida quando a concentração das reservas de glicogênio muscular está próxima do seu esgotamento, sendo esta uma das causas da “barreira dos 30 km”, fenômeno que ocorre com muitos maratonistas, que descrevem essa situação psicologicamente desagradável, como “bater contra a parede”, ou “um urso sentou nas costas”.
Lesões musculares após treinos longos
Após completar o percurso de uma maratona ou um treino de longa duração, os músculos dos corredores encontram-se em estado de alerta, independente do surgimento de dores ou não.
As pesquisas científicas indicam que as lesões que atingem os corredores de fundo provocam um “desalinhamento” na estrutura da fibra muscular, que pode ser acompanhado de dor, inchaço e inflamação.
A reparação do dano muscular causado pela corrida de longa duração leva, aproximadamente, 20 dias para se completar. Nesse período, recomenda-se apenas realizar treinos leves e de menor duração. O desempenho muscular nesse momento encontra-se prejudicado e qualquer tentativa do corredor em fazer treinos mais fortes somente irá ocasionar um atraso considerável na restauração das fibras musculares, adiando a sua volta aos treinos normais.
Para a melhora do condicionamento, o treinamento deve ser contínuo e as interrupções provocadas pelo surgimento de lesões, tira a possibilidade do corredor em alcançar o seu potencial máximo de rendimento, determinado pela sua genética.
Os treinos regenerativos após as competições
O corredor que se preza procura obter nas competições o seu melhor desempenho. Afinal, é para essa finalidade que se propõe o treinamento.
É na competição que ocorre a maior mobilização das reservas de energia e da capacidade orgânica do corredor, que está em busca de um desempenho máximo para aquele momento.
Após tamanho esforço, seja nos 10 km ou em uma maratona, os dias seguintes, como já dito, serão destinados para a regeneração muscular. Isso é de grande importância para promover uma adequada recuperação e posterior retorno aos treinos de maior intensidade e / ou quilometragem.
Os treinos regenerativos podem ser realizados de diversos modos, sendo que a principal característica desse trabalho é que o ritmo ou a intensidade do mesmo seja suave, sem muita exigência física ou psicológica ao corredor.
Além disso, o treino regenerativo proporciona a restauração orgânica sem que o corredor necessite parar de fato com as atividades, ou seja, ele faz um descanso ativo, ainda que devam ser previstos dias de descanso total.
Seguem alguns exemplos de treinos regenerativos:
- trotes realizados em terreno plano, sobre a grama, ritmo suave, com duração entre 30-45 min, seguido de exercícios de alongamentos leves;
- caminhadas pelo campo, sem muitas exigências orgânicas, com 1-2 horas de duração, seguido de alongamentos leves;
- atividades aquáticas, como a natação descontraída ou a hidroginástica, sempre realizadas em baixa intensidade, entre 30-45 min;
- ciclismo estacionário ou passeio de bike em percursos leves, marcha suave, entre 40-60 min.
Essas e outras atividades têm como propósito promover a restauração do organismo do corredor após as competições e / ou treinos intensos e longos.
Como regra geral, após uma competição de 10 km com a mobilização máxima da capacidade do corredor, pelo menos de 5-7 dias devem ser observados para a recuperação orgânica; no caso da maratona, entre 14-21 dias.
Além desses cuidados, o corredor, após um certo período de treinamento intenso e contínuo, e com muitas participações em competições, deverá programar uma etapa regenerativa entre 2-4 semanas, com as atividades acima mencionadas, incluindo exercícios para o fortalecimento muscular.
Essa etapa, conhecida como “período de transição”, é tão importante quanto o próprio treinamento, fazendo parte integrante da preparação do corredor de fundo.
Portanto, caso não sejam observados alguns cuidados em relação à recuperação, de nada adiantará o esforço do corredor em busca do seu melhor desempenho, pois um organismo debilitado não será capaz de enfrentar uma rotina séria de treinamento e estará exposto aos riscos de lesões e danos à saúde.
Aos corredores, a nossa última palavra sobre o tema: se tiverem que errar, errem para menos, pois as consequências não serão prejudiciais ao seu bem-estar.
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