Rejeitar a crueldade é a maior Lei do mundo. Seguir o dharma gera sempre bons frutos. A mente não causa sofrimento quando controlada. A união com a bondade não pode ser quebrada (Mahabarata)
Conta-se, no Mahabarata, a narrativa épica espiritual mais importante da humanidade, que Yudhishtira, governante de Indraprastha, Reino de Kuru, em sua jornada final para a ascensão ao Céu, foi testado ao limite em sua firmeza no Dharma.
Após o final da batalha de Kuruksetra, Yudhishtira renunciou à vida material e, juntamente com seus irmãos e esposa, parte numa última peregrinação ao Himalaia. Durante o longo e difícil percurso nas montanhas, todos vão tombando mortos, um a um. Apenas Yudhishtira e um cachorro, que passou a acompanha-lo em algum ponto do trajeto, alcançaram o cume da montanha.
Ao chegarem lá, Indra, rei dos Devas, o deus do Céu, surgiu reluzente em sua quadriga dourada puxada por seus corcéis resplandecentes. Indra parabeniza Yudhishtira por sua vida correta e justa, e lhe promete a imortalidade e a divindade. Para isso, bastava entrar em sua carruagem magnífica e ascender ao Céu.
Porém, Yudhishtira, responde que não deseja a imortalidade ou a divindade, diante do fato de não poder abandonar os irmãos e a esposa mortos que ficaram pelo caminho. Ao que Indra lhe diz que essa questão não era problema, pois que Yudhishtira encontraria com eles no Paraíso, onde todos aguardavam ansiosos pela sua chegada. Indra, então, lhe convida a subir na carruagem celeste. Nesse momento, Yudhishtira toma o cão para colocá-lo na quadriga, ao qual Indra, boquiaberto diante da cena, imediatamente, em tom severo, diz: O quê? O cachorro não! O cão fica. É proibido a um homem entrar no Céu com um cachorro!
Yudhishtira, porém, se nega a seguir com Indra; afirma, convicto, de que o voto que fez de nunca abandonar alguém que nele tomasse refúgio ou que necessitasse de sua ajuda, jamais poderia ser quebrado. E esse era o caso do cachorro, que o acompanhara na maior parte de sua jornada até o topo da montanha. O cão, devotado que foi a Yudhishtira, sem ter para onde ir, não poderia ser abandonado, deixado à sua própria sorte, para morrer naquele lugar inóspito.
Indra tenta argumentar que o Paraíso não é lugar para os cães e, não seria possível que o cão subisse na carruagem e ascendesse ao Céu. No mais, o cão era considerado animal impuro, e isso eliminaria todos os méritos arduamente conquistados por Yudhishtira durante a sua vida. Indra ainda afirma para Yudhishtira que ele poderia abandonar o cachorro, pois isso não seria lhe imputado como uma imoralidade; não haveria problema algum nisso. Disse-lhe Indra: Por que estás tão entorpecido? Tu renunciaste a tudo. Por que não renuncias a esse cão?
Mas Yudhishtira estava firme em sua fé: jamais quebraria seu voto ao dharma. Inabalável em sua decisão, preferiria morrer ali, junto com aquele pobre cachorro, o companheiro fiel de sua última jornada, mesmo que isso lhe custasse a entrada no Paraíso, a imortalidade, a divindade e o reencontro com seus amados parentes. Não que Yudhishtira desprezasse o Céu, mas que não podia abandonar seu voto de bondade e compaixão por nenhum tipo de benefício próprio.
Nesse momento, o cachorro toma sua forma verdadeira: o próprio Dharma, a divindade da Justiça, se apresenta diante de Yudhishtira. O deus da virtude parabeniza Yudhishtira pela sua firme convicção aos princípios mais elevados da ética e da moral.
Disse-lhe Dharma: Você é um bom homem, demonstrou lealdade aos fiéis e compaixão por todas as criaturas. Foi capaz de renunciar ao Céu ao invés de abandonar esse humilde cão que foi seu devotado e inseparável companheiro. Por isso, Yudhishtira, você será honrado no Céu, pois não há nada mais elevado na Terra do que a bondade e a compaixão para com os humildes e necessitados.
Foi assim que Yudhishtira, o Dharmaraja (rei do dharma), subindo no veículo celeste de Indra, adentrou no Paraíso e lá encontrou-se com seus irmãos e esposa para desfrutarem da infinita e eterna bem-aventurança divina.
Na mitologia hindu, os cães são considerados animais que devem ser evitados, pois seriam filhos de Krodhavasha, uma classe de asuras (demônios), ferozes e de dentes afiados. São animais desprezíveis. Qualquer sacrifício (yagna) realizado diante do fogo sagrado (agni), e que um cão porventura esteja presente, poderá ser inútil, pois todas as oferendas poderão ser roubadas pelos caninos, e o ritual não cumprirá seu objetivo. Dos párias se diz “comedores de cães”, dada a sua repugnância pela sociedade. Mesmo diante disso, Yudhishtira não abandonou o cachorro que lhe serviu de guarda ao longo do caminho até o cume da montanha.
Cães, independentemente das questões culturais, sociais e históricas que perpassam pela espécie em sua relação com os humanos, são animais que percebem, com muita facilidade, os sentimentos da pessoa que faz a tutela. O ser humano pode aprender muito com os cães.
Por meio de instintos apuradíssimos, o cachorro é capaz de decifrar o comportamento humano, por exemplo, se o tutor está de bom humor ou não. Expressões faciais de felicidade ou raiva são facilmente percebidas; não se pode esconder dos cães as emoções. O estado de espírito do tutor afeta o comportamento do cão, deixando-o mais agitado, tranquilo, assustado ou raivoso.
Alegria ou tristeza humana são perceptíveis aos cães, bem como muitas doenças. O olfato apurado dos cães é capaz de identificar graves enfermidades em seu tutor. Por exemplo, muitos tipos de degenerações celulares podem ser identificadas por cães treinados, pois o corpo da pessoa afetada pela doença produz compostos químicos que possuem odores específicos, liberados pelo suor, urina e fezes, e que são facilmente identificáveis pelos focinhos caninos.
Um estudo iniciado em 2020, em Campo Limpo Paulista, cidade do interior de São Paulo, treinou 14 cães de raças diversas para identificar a Covid-19. O projeto científico em questão foi liderado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), em parceria com a tradicional Escola Nacional de Veterinária de Alfort, na França, fundada em 1765 e considerada a mais antiga instituição médica destinada aos cuidados com os animais, tutelada pelo governo francês. Outro projeto, mais recente, é realizado em Piracicaba, pela Universidade Metodista (UNIMEP), com 8 cães, treinados para identificar mais de quarenta tipos de tumores malignos.
Geralmente, quando os cães percebem enfermidades e debilidades em seus tutores, eles costumam permanecer fielmente ao lado; às vezes, a depender da gravidade das circunstâncias, os cães ficam tão abatidos que podem adoecer também ou ficarem em estado de prostração.
O cachorro é um animal de extrema confiança. Seus instintos captam qualquer tipo de perigo que possa sobrevir ao seu tutor. Enquanto a situação de perigo permanece, eles mantém-se agitados, alertando seus tutores. Dos cães, diz-se que são capazes até de perceber a personalidade maldosa das pessoas. Quando um cão confia em alguém, ele sabe que nada de mal poderá lhe acontecer.
Os cachorros também são muito atentos. Raramente, um cão se distrai; qualquer movimento estranho, rapidamente ele se coloca em prontidão. Esta apurada habilidade de manter a atenção contínua, por exemplo, lhes permite identificar se o tratamento que recebem de seus tutores é diferente daquele que é conferido a outros cães ou animais de convivência. Se percebem que são diminuídos ou inferiorizados, tornam indiferentes aos seus tutores. A atenção dos cães está totalmente voltada ao momento presente, pois é assim que eles vivem: no aqui e agora, sem divagações entre o que já se foi ou aquilo que ainda poderá ser.
Em “O livro da grande jornada” (Mahaprasthanika Parva), o 17º e penúltimo capítulo do Mahabarata, Yudhishtira nos revela que o “mestre espiritual”, aquele que nos acompanha fielmente durante a nossa peregrinação pelo mundo das aparências, pode estar oculto na forma de um humilde e, muitas vezes, desprezível cachorro de rua.
Se olharmos com atenção, um simples vira-lata pode nos ensinar muito mais sobre nós mesmos e sobre a existência, do que um douto renomado nas escrituras sagradas. Um cão pode ser o nosso “mestre da paciência e da compaixão”, e testar nossos limites - como Dharma testou Yudhishtira - até que o nosso comportamento, condicionado por tantos preconceitos, seja purificado e, assim, estarmos aptos às infinitas e eternas bem-aventuranças divinas.
Hari Om Tat Sat.
É dito que o abandono de alguém que é devotado é infinitamente pecaminoso. Isso é igual ao pecado que alguém atrai sobre si por matar um brâmane. Por isso, ó grande Indra, eu não abandonarei esse cão hoje pelo desejo da minha felicidade. Exatamente este é meu voto seguido firmemente: isto é, que eu nunca abandonarei uma pessoa que está amedrontada, nem alguém que é devotado a mim, nem alguém que procura minha proteção, dizendo que está desamparado, nem alguém que está aflito, nem alguém que vem até mim, nem alguém que é fraco em se proteger, nem alguém que deseja viver. Eu nunca abandonarei tal pessoa até a minha própria vida estar no fim (Yudhishtira, Mahabarata).
Gostei muito