Se a própria pessoa não encontrar os meios para a liberação de seu Eu, quem mais providenciará os meios favoráveis para esta liberação? (Kularnava Tantra 1:23)
A leitura da obra do antropólogo norueguês Fredrik Barth (1928-2016), O guru, o iniciador e outras variações antropológicas (2000), nos estimulou a uma reflexão sobre as características e o comportamento daqueles que ensinam o yoga.
O objetivo, aqui, não é fazer uma resenha da obra de Barth, porém, aproveitar alguns elementos de seu conceito de "grupo étnico" para escrever algo pertinente ao universo daqueles que professam o ensino do yoga. Trata-se mais de um “discorrer livremente”, do que uma análise rigorosa, propriamente dita, da obra de Barth.
De modo geral, um grupo étnico é caracterizado por compartilhar uma identidade em comum, pautada em valores, ideias, hábitos, costumes, origem geográfica, histórica, social, etc. Um grupo étnico é uma forma de organizar a interação entre indivíduos que se identificam culturalmente.
Um grupo ético, ao contrário do que se pensa geralmente, não é fechado em si mesmo, a não ser em casos de extremo identitarismo. Nas palavras de Barth, “certamente, um mesmo grupo de indivíduos, com suas próprias ideias e valores, posto diante das diferentes oportunidades oferecidas por diferentes meios, se veria obrigado a adotar diferentes padrões de existência e a institucionalizar diferentes formas de conduta".
Assim entendido, os critérios de reconhecimento de um grupo étnico podem se alterar com certa frequência, e até o próprio grupo pode se reinventar. Todavia, mesmo que isso aconteça, a distinção entre os que pertencem e os que não pertencem ao grupo, ainda permanecerá.
Logo, um grupo étnico, ainda que mantenha sua principal identidade e as características que consideram significativas, possibilita uma dinâmica do “acrescentar para complementar”.
Interessante notar que em tal dinâmica, não é o “conteúdo cultural” que se ajusta a uma nova realidade, porém, os “limites” de seu alcance é que podem ser negociados em determinados contextos específicos.
Portanto, ainda que a “fronteira étnica” possa se alterar, esta dinâmica de mudanças será sempre conforme aquilo que o grupo considera como conveniente ou inconveniente às suas necessidades de sobrevivência ou pretensão de penetração e expansão em outros contextos.
Vivemos em uma sociedade cuja política econômica é o capitalismo. O capitalismo tem como premissas básicas o livre mercado, o lucro e o consumismo. Neste sistema político-econômico-social, para que algo prospere, deve ser convertido em um “produto”, estar exposto nas “prateleiras” do mercado consumidor e ser largamente divulgado como “artigo de primeira”.
Considerando os nossos modos de vida capitalista e, ainda que indevidamente, mas apropriando-se do conceito de grupo étnico do antropólogo norueguês, e trazendo isso tudo para o universo dos que “ensinam yoga”, podemos afirmar que ser reconhecido publicamente ou não como alguém que “ensina yoga”, obviamente, acarretará em consequências socioeconômicas.
Necessário se faz, então, uma distinção entre aqueles que “ensinam yoga”, dividindo-os em três categorias, de acordo com o nosso entendimento: 1. O instrutor; 2. O professor; 3. O mestre espiritual. Nos três casos, deliberadamente, todos serão considerados gurus.
Guru é um termo sânscrito que significa “o que dissipa as trevas”. Trevas são os condicionamentos mentais que nos mantém aprisionados na ignorância de nossa essência espiritual. O guru, portanto, é aquele que conduz o discípulo / aluno / estudante (shishya) em direção ao “conhecimento de si mesmo” e, como consequência, à liberação dos condicionamentos.
A relação guru-shishya é ancestral, remontando por volta de 2000 a.C. Ela está baseada na transmissão oral dos ensinamentos do Vedanta. Upanisads é o termo sânscrito que define tal relação: upa "próximo", ni "chão" e şad "sentar”, ou seja, “sentar-se aos pés do guru” para ouvir-lhe os ensinamentos.
Afirma-se, em muitos tratados do yoga, que o guru é indispensável para qualquer prática espiritual. Ao guru se deve respeito, devoção, honra e proteção. Em troca, o guru preserva o bem-estar físico, mental e espiritual dos seus discípulos, e expande suas consciências em direção ao amor divino, à paz infinita e à felicidade suprema. Há quem afirme que o guru é a manifestação do Imanifesto.
Assim entendido, e como já dito, o instrutor, o professor e o mestre espiritual, aqui serão considerados gurus, porém, com importantes distinções, conforme o que lhes cabe como função primordial, e de acordo com o nosso entendimento.
O instrutor é aquele que possui o domínio da prática em si, ou seja, a tudo o que se refere às técnicas de execução de asanas e pranayamas. Ele ensina os alunos a fazerem adequadamente as posturas e a respiração correta, explicando seus efeitos e benefícios sobre o corpo.
O conhecimento do instrutor, todavia, em um contexto amplo do yoga, é restrito, pois sua função principal é ensinar as técnicas. Ele “abre” um caminho para uma vida mais saudável, materialmente e espiritualmente, o que para muitos é uma grande oportunidade para um primeiro contato com o yoga.
O professor encontra-se em um estágio acima do instrutor. Ele, pelo estudo das obras clássicas, possui o domínio filosófico dos fundamentos das práticas espirituais do yoga. O professor é aquele, cujo conhecimento intelectual, aperfeiçoado no constante aprendizado e experiência, promove amplitude e coerência às práticas, principalmente, as meditativas. Ele “pavimenta” o caminho que foi “aberto” pelo instrutor.
O mestre espiritual é aquele que revela a sabedoria transcendental a todos os que o buscam com sinceridade de propósito. Ela dá profundidade ao conhecimento espiritual, libertando-nos dos rituais, hábitos, ideias e costumes que nos aprisionam em um labirinto de abstrações ou ações inúteis. Mais do que técnicas e filosofia, o mestre espiritual é um vasto reservatório do conhecimento esotérico e de bem-aventuranças.
O mestre espiritual nos "desperta" para o real e verdadeiro propósito da vida, e nos conduz para um relacionamento autêntico com o Divino. Seu caminho é único, sua sadhana é particular, pois é a prática de quem libertou-se de todos os condicionamentos, daquele que alcançou a autorrealização espiritual; ele tem o domínio de si mesmo (seu corpo, suas emoções, pensamentos, ações), é livre do egoísmo, do ódio e da vaidade, e expressa amor fraterno, serenidade e compaixão.
Há, entretanto, gurus e “gurus”. Como integrantes de um grupo étnico, que se movem conforme conveniências e inconveniências que lhes afetam no quesito socioeconômico, alguém que se intitula instrutor, professor ou mestre espiritual pode não ser um guru, em um sentido pleno do termo. E não importa se tenham certificados outorgados por instituições internacionalmente renomadas. O que não falta, nos tempos atuais, são os gurus falsificados ou gurus fakes.
Esses tipos, geralmente, são aqueles que se dizem “iniciáticos”. Ou seja, eles pretendem “introduzir” os alunos e seguidores nos “mistérios ocultos” do yoga, conduzindo-os por experiências “místicas, fantásticas, mágicas”, que os levem a "ascender" de um nível de existência para outro, mais elevado. Esses gurus fakes intitulam-se “autoridades máximas” quando o tema é iniciação espiritual.
Em suma, eles prometem “revelar” os “atalhos” que somente “eles conhecem” (aquele "segredo" que esconderam de você o tempo todo). Eles vendem o slogan “a iluminação é logo ali”, e basta seguir seus “métodos infalíveis”, extraídos de algum manual “achado” em uma caverna nas montanhas, “tão antigo quanto a humanidade”, e que somente eles tiveram acesso privilegiado durante um "sonho revelador".
Um guru fake pode ser um instrutor que se arroga a iniciar alguém na prática espiritual. Tal instrutor, por mais que detenha o saber técnico, apenas enredará os incautos pela infinidade de exercícios físicos e respiratórios, iludidos com sua performance corporal extraordinária e ensinamentos pseudo-espirituais.
Se o guru fake for um professor metido a iniciador, ele fragmentará o conhecimento conforme seus interesses, obscurecendo o caminho da espiritualidade pelo labirinto das filosofias e meditações.
E caso seja um mestre espiritual presunçoso de sua capacidade iniciática, o comportamento performático místico, muitas vezes carismático, aprisionará os seguidores em doutrinas, mistérios e rituais sem fim.
O que importa aos gurus fakes é a questão monetária. “Vender seu produto” para obter reconhecimento e, principalmente, lucro, e também para tornar-se uma “autoridade”, é o que lhe garantirá milhares de seguidores nas redes virtuais.
A monetização do yoga expandiu o “limite da fronteira", sem que o “conteúdo cultural” fosse alterado. Mas quais os benefícios dessas imposturas para o yoga?
Jiddu Krishnamurti (1895-1986), exortava-nos a livrarmos de todos os instrutores, professores e mestres espirituais. Em sua obra A educação e o significado da vida (1953), o filósofo hindu afirmava que o indivíduo ignorante não é aquele sem instrução, sem conhecimento técnico ou especializado; o ignorante é aquele que não conhece a si mesmo, e insensato é o intelectualmente culto que acredita que a “autoridade” é que lhe pode dar a compreensão da vida.
Na tradição do yoga, a compreensão da vida somente se alcança pelo autoconhecimento que, para Krishnamurti significava o conhecimento da totalidade de nossos processos psicológicos.
Assim entendido, “ensinar yoga”, em seu sentido mais genuíno, é incentivar o indivíduo, dispondo-lhe os recursos apropriados, para a compreensão de si mesmo, pois é dentro de cada um de nós que se encontra a totalidade da existência.
Portanto, o caminho da espiritualidade apregoado pelo yoga é aquele que nos conduz à compreensão do processo total da vida. Por melhor que seja o “saber fazer” técnico do instrutor, tal conhecimento não resolverá as nossas dúvidas e conflitos psicológicos; por mais erudito e versado na filosofia que seja o professor, tal conhecimento não nos conduzirá à paz interior, se não estiver comprometido com o “conhece-te a ti mesmo”.
No caminho da espiritualidade, muitas vezes, o verdadeiro problema é o dito “mestre espiritual”. Os adeptos de uma prática espiritual podem se transformar em reféns da influência pessoal de um mestre, caso ele exerça sua autoridade como meio de impor-se, e se o conhecimento que ele detém representa para ele um modo de preencher sua ânsia de expansão do próprio ego.
Para compreendermos o caminho da espiritualidade e o significado da vida, com todos os seus conflitos e sofrimentos, necessário se faz estarmos livres da influência de qualquer autoridade. Como afirma Krishnamurti, “dogmas, mistérios e rituais não conduzem à vida espiritual”.
Temos que considerar seriamente que um Sadhguru, isto é, um mestre autorrealizado, é raro, tanto nos idos passados, quanto nos tempos atuais. Afirma-se no Bhagavad Gita: “Entre milhares de mortais, poucos se esforçam para atingir a perfeição, e entre os que conseguem atingi-la, poucos são os que Me conhecem em essência” (BG 7,3).
Por outro lado, também temos que considerar que o verdadeiro guru somente surge quando o discípulo está preparado. Será que estamos preparados para o encontro com um verdadeiro guru?
Talvez tenhamos que nos atentar, primeiramente, mais para as coisas do nosso cotidiano e para as nossas relações mais simples e comuns. É naquilo que é banal, ordinário, frequente, costumeiro e recorrente que podemos aprender algo sobre a espiritualidade, e que nos desperte, pelo menos a curiosidade, para refletirmos sobre a nossa essência.
É no cotidiano que podemos encontrar muitos upa-gurus (assistentes do guru), que podem estar disfarçados de pessoas, animais e qualquer coisa da natureza que nos aponte para o caminho correto. Um upa-guru tanto pode ser nosso animal de estimação, aquele sujeito irresponsável atrás de um volante ou um fenômeno da natureza.
Você já pensou naquele cãozinho adorável que te desafia e testa sua paciência o tempo todo, urinando pela casa inteira? Ou naquela árvore que insiste, diariamente, com o auxílio do vento, em espalhar centenas de folhas na calçada para você recolhê-las, num trabalho que parece inútil e sem fim?
Essas circunstâncias, ainda que não percebemos, são onde os upa-gurus atuam, em seus mais diversos disfarces, evidenciando nossas fraquezas, medos, egoísmo, apegos, frustrações, enfim, tudo aquilo que temos que estar atentos e que nos prejudicam em nossa jornada terrena e evolução espiritual.
Somente no autoconhecimento é que se encontra a verdadeira liberdade. Liberdade é estar inteiro nas mais diversas relações do cotidiano, livre de conceitos, preconceitos, ideias, ilusões, ideologias e abstrações. Quando compreendemos o processo total da existência, alcançamos a harmonia com o todo abrangente e uma nova vida floresce em nós.
Se aquilo que o instrutor, o professor e o mestre espiritual nos ensinam são meios para evitar ou camuflar a complexidade das questões existenciais que nos permeiam e geram angústia, medo e ansiedade, certamente, tais ensinamentos estão nos afastando do “conhece-te a si mesmo” e, ainda mais, levando-nos para longe da compaixão, da bondade, da humildade e da paz interior. Tais “gurus” são responsáveis por mais confusão e miséria espiritual no mundo.
As breves ponderações que aqui fizemos acerca dos que ensinam o yoga, nos levam a citar O Cântico de Ribhu, sexta parte do Shiva Rahasya, que nos traz ensinamentos valiosos sobre a essência do ser humano e como alcançar a compreensão espiritual suprema. Esta obra trata das instruções de Shiva, o Senhor do Yoga, a seu discípulo, Ribhu.
Em seu capítulo 16, o Ribhu Gita resume, em poucas palavras, o sentido mais amplo e profundo daquilo que conduz ao verdadeiro aprendizado espiritual, apregoado pelo genuíno ensino do yoga. Afirma-se no verso 42: “sentar-se em silêncio e permanecer em quietude, eis a prática espiritual mais elevada”.
Quando a percepção correta emergir deste silêncio e quietude, tal qual uma resplandecente “luz interior”, compreenderemos, finalmente, que a Consciência – plena e pura – é o único Guru que devemos reverenciar e seguir.
Então, teremos encontrado o verdadeiro e único caminho que conduz, em segurança, ao Si Mesmo.
Yoga: estude, pratique. Mas não deixe para depois!
Hari Om Tat Sat.
Empenhe-se na autoinvestigação e você chegará ao estado supremo de libertação. É pelo esforço pessoal na investigação do si mesmo que se alcança a perfeição no autoconhecimento. O “conhecer a si mesmo” é o meio principal para obter domínio sobre a mente, e a prática espiritual mais importante é a autoinvestigação. O que não se consegue realizar pelo completo autocontrole, não se realiza nem pela fé, nem pelas obras, nem pelos gurus (Yoga Vasishta)
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