O Ser está em toda parte. Aquele que vê todos os seres no Ser, e o Ser em todos os seres, não odeia ninguém. Pois, para quem vê o Uno em todos os lugares, como pode haver decepção ou tristeza?
(Isha Upanishad)
Na Chandogya Upanishad há o relato de um interessante diálogo entre Uddalaka e seu filho, Svetaketu, sobre a realidade e o Real. Após o filho ter retornado de seus estudos com um renomado mestre dos Vedas, onde permaneceu em sua presença por doze anos, Uddalaka percebeu uma certa arrogância em Svetaketu em relação aos conhecimentos espirituais a ele transmitidos pelo guru.
Certo de que essa “intoxicação intelectual” havia afastado Svetaketu da compaixão e da humildade, e que nada tinha a ver com a verdadeira sabedoria sobre a realidade e o Real, Uddalaka pergunta ao filho: “Sábio e instruído filho, durante seus estudos, chegou a perguntar por Aquilo que não pode ser ouvido, mas graças ao que a audição é possível? O que é Aquilo que não pode ser visto, mas que torna possível a visão? O que é Aquilo que não pode ser conhecido, mas torna possível o conhecimento?”
Svetaketu permaneceu em silêncio. E apenas respondeu: “Infelizmente, meu guru não me instruiu a esse respeito, pai. Você pode me ensinar, por favor?” Ao qual Uddalaka lhe diz: “Conhecendo um único fragmento de argila, todos os objetos feitos de argila podem ser conhecidos. A diferença entre dois objetos feitos de argila está apenas nos nomes e formas. Em verdade, todos os potes são apenas argila. Essa é a instrução.”
O ensinamento de Uddalaka a Svetaketu, inscrito na Chandogya Upanishad, revela-nos a essência do Advaita Vedanta, a visão não-dualista da existência, de acordo com o sábio Adi Sankara. Sankara, que teria vivido no século VIII, considerado o “pai” do Advaita, nos ensina que, por meio da atenta investigação da existência, chega-se, indubitavelmente, ao conhecimento da realidade e do Real.
Advaita não é uma filosofia, pois não se trata de pensar sobre a realidade; é uma visão, pois aquele que investiga atentamente a existência, certamente enxergará, pela clara percepção e por si só, que tudo que experienciamos no mundo com nossos sentidos, é apenas a diversidade infinita das manifestações de uma eterna unidade todo-abrangente. A realidade do mundo é relativa, pois somente o Absoluto é o existente. Este é o Ser, o Real que subjaz a toda realidade fenomênica, a divindade que habita o âmago de cada coisa existente no Universo.
O exemplo dado por Uddalaka a Svetaketu ilustra, assim, com muita sabedoria, a essência do Advaita: a unidade que subjaz a toda diversidade. O Vedanta nos ensina que o sentimento de separação em relação ao todo é um grande equívoco; simplesmente porque tudo o que existe, sem exceção, é expressão do Divino (Brahman). Dito de outro modo, em tudo o que existe no Universo, desde a mais ínfima partícula de matéria até a maior das galáxias, lá também estamos, assim como em cada célula do nosso corpo está contido todo o Universo.
Este Brahman é o Absoluto, Imutável, Único, Eterno e Infinito Autoexistente, e nada há além dele. A unidade que subjaz à diversidade é o ensinamento superior, Para Vidya, isto é, o conhecimento mais elevado, o aprendizado que nos conduz à bem-aventurança suprema (ananda), aquilo pelo qual, ao ser conhecido, todas as coisas se tornam conhecidas. Logo, conhecer Brahman é a Verdade Última, a sabedoria transcendental que assegura kaivalya (desapego da matéria) e conduz a moksha (libertação dos ciclos de renascimentos).
Portanto, Brahman - o Ser - é a essência do Universo, a essência de tudo o que existe; disso se afirma que “somos todos um” e, àquele que diz o contrário, que julga ser diferente e separado do Todo, a infelicidade imediatamente abate-lhe o espírito. Como a unidade é a realidade cósmica, a felicidade pertence a quem conhece esta verdade e se integra ao Todo.
Decerto, simplicidade, compaixão, generosidade, serenidade, contentamento, prosperidade e humildade acompanham a toda criatura que vive em harmonia com a realidade cósmica. O Vedanta nos adverte que amar uns aos outros é o dever supremo, pois o mal feito ao próximo é o mal feito a si mesmo.
A argila, em relação ao pote, é a essência do pote. O pote é apenas aparência, nama rupa (nome e forma). Se o pote for destruído, a argila permanece. Não importa o nome que se dê ao pote e a forma do pote feito de argila: tudo ainda será argila. A argila, pois, é a unidade que subjaz a diversidade de potes.
A argila, entretanto, em relação ao oleiro, é a matéria ao qual se poderá dar forma a muitos potes, os quais receberão diversos nomes. O oleiro, por meio de sua inteligência e imaginação, poderá criar muitos potes de argila, uma variedade deles, que receberão um nome distinto, de acordo com a aparência de cada um deles.
Assim como todos os potes feitos de argila são argila, independentemente do nome e forma, todos os potes criados por meio da argila surgiram da imaginação criativa e das habilidosas mãos do oleiro. Como a argila é a essência dos potes, o criador dos potes de argila “é aquele pelo qual todos as coisas se tornam conhecidas”.
Aquele, pois, que conhece o oleiro (o Real), conhecerá a argila e todos os potes (a realidade). Brahman - o Ser - é a causa e o efeito; ele é o oleiro, a argila e o pote.
Hari Om Tat Sat.
Toda a Criação é apenas Realidade. Essa Realidade é a Consciência. Essa Consciência é existência absoluta. O Ser é aquele Incomparável. Dele surgiu o Cosmos, e então ele entrou em cada ser vivente e objeto inanimado. Não existe nada que não derive da Consciência. Ela é a essência de tudo. Ela é a verdade, o Ser Puro. Tu és Isso” (Chandogya Upanishad).
Parabéns Marcelo! Lindo o texto! Muito profundo!