Possa aquele Vishnu, que é o existente, imperecível, Brahma, que é Íshvara, que é espírito; que com as três qualidades (sattva, rajas e tamas) é a causa da criação, preservação, e destruição; que é o pai da natureza, intelecto, e dos outros elementos do universo; seja para nós o concessor de entendimento, riqueza e emancipação final (Vishnu Purana)
O que é o mito? Originado do grego mythós, trata-se de uma narrativa fantástica que possui o objetivo de explicar a origem de tudo aquilo que existe. Além dessa importante função cosmogônica (de explicar a origem do universo), ao mito também é atribuído questões de ordem metafísica (de tudo que está além ou oculto na matéria), sociológica (de tudo o que se refere às relações entre as pessoas no ambiente coletivo) e psicológica (relacionado ao acervo inconsciente da coletividade).
Os mitos constituem as referências que sustentavam as crenças e a fé dos povos antigos, sendo as bases de seus modos de vida tradicionais. Provenientes de tempos imemoriais, os mitos tratam de temas que deram sustentação à vida humana através dos séculos; eles remetem aos nossos profundos problemas interiores, nossos medos e inseguranças mais primitivos e que nos acompanham e assombram, desde sempre, em nossa jornada terrena. Quem se recusa a compreender os sinais e os emblemas deixados pelos mitos, terá que produzir explicações sobre os “mistérios da existência” por sua própria conta. Pois os mitos apenas revelam o que todos os seres humanos têm em comum: o medo da morte e a busca pela felicidade eterna.
Os mitos, logo, são as tentativas de buscar a verdade, de prover um sentido à vida; são os mitos que nos conduzem ao nosso “mundo interior”, e que nos revelam as nossas potencialidades espirituais. Tudo o que podemos vivenciar em nosso interior, cabe ao mito, pois ele é o relato de uma experiência de vida. Porém, temos que compreender que o mito nada analisa, nada intelectualiza: ele apenas abre as portas da intuição para que cada um reflita sobre o seu significado.
O “pensamento científico”, que se fez prevalecer a partir dos séculos XVII e XVIII, tendo a frente nomes como Francis Bacon, Isaac Newton e René Descartes, dentre outros, no seu entendimento e necessidade de se impor como “portador da verdade”, se opôs à tudo que as antigas tradições traziam como legado de seu “pensamento mítico” e seus misticismos. A ciência, assim, tornou-se antagônica ao mito, "desencantando" o mundo, ao mesmo tempo em que o desintegrava em fragmentos de conhecimentos desencontrados. Pois, afinal, o mito, quando compreendido, concede harmonia à vida.
O mito nasce da sensibilidade e intuição humana em suas tentativas para desvendar os “mistérios da existência”. Como já foi dito, o mito é o sustentáculo das estruturas e funções que asseguram e dão sentido à sobrevivência coletiva dos seres humanos. É pelo mito que surgiram as religiões, que civilizações se ergueram e que os seres humanos avançaram em suas conquistas psicológicas e espirituais, desvendando ou buscando compreender os mistérios da Natureza e de seu próprio ser.
A ciência, todavia, imbuída pelo “espírito crítico”, e para se firmar como “referência ao conhecimento”, se apegou ao intelecto e ao “mundo da razão”, voltando-se contra a sensibilidade e ao “mundo dos sentidos”, que é o mundo que vemos, cheiramos, saboreamos e percebemos. Para a ciência, aferrada aos seus “métodos, testes, medições e análises” reproduzíveis objetivamente, o mundo sensorial passou a ser um mundo de ilusões; pois o mundo real, em uma perspectiva puramente científica, “é um mundo de propriedades matemáticas que só podem ser descobertas pelo intelecto e que estão em contradição total com o testemunho dos sentidos” (Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, 1978).
Certa vez, perguntaram ao Buda, qual o sentido de uma flor. O Iluminado, simplesmente colheu uma flor, e entregou a quem fez a pergunta, sem dizer qualquer palavra. O que o Venerável quis demonstrar com esse gesto? Afinal, na perspectiva da razão, isso não fazia sentido algum. Ora, era exatamente isso que o Buda quis mostrar: o sentido da flor está no fato de que ela, simplesmente, existe. É a existência, em si e por si, que é o sentido de tudo o que existe. Não é necessário pensar sobre o sentido da flor: basta senti-la em sua textura, absorvê-la em suas cores e odores ou, simplesmente, aprecia-la em sua forma e aparência.
Assim, seguindo as pegadas do Venerável Mestre, podemos fazer a mesma pergunta para muitas coisas: qual o sentido do universo? Qual o sentido de um pernilongo? Qual o sentido da morte? E a única resposta que realmente tem valor, é que o sentido de tudo o que existe se encontra em sua própria existência. Tentar racionalizar uma resposta é se perder em um labirinto infinito de questões que não levarão a lugar algum; buscar a “razão da existência” é matar a beleza da própria existência. Se nos colocarmos longe da vibração da vida, se nosso conhecimento intelectual nos afasta do “conhecimento da vida”, nos esqueceremos de que a única coisa que tem valor e autenticidade é a maravilha de estarmos vivos, e isso basta. Eis o sentido da vida!
O mito também nasce da curiosidade. Crianças são, por natureza, seres extremamente curiosos. A curiosidade é o que nos desperta ao conhecimento, nos instiga à busca pela verdade e a realidade. A curiosidade infantil é pura em seus questionamentos, e sua satisfação está em compreender, ainda que pouco a pouco, o mundo ao qual está envolta e a si mesmo. É essa curiosidade genuína que irá lhes revelar o seu grande potencial humano. Não é por nada que o Cristo disse “deixai vir a mim os pequeninos, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a eles” (Ma. 19:14).
É pela leitura dos mitos que podemos resgatar um pouco dessa curiosidade infantil e nos recolarmos nas veredas que nos conduzirão ao conhecimento da verdade e da realidade. O cotidiano, com todos os infindáveis problemas que impõe suas urgências, nos afasta do nosso “mundo interior”; quando a consciência não se volta para si mesma, nos perdemos no inconsciente,que nos assalta, e nos sentimos perdidos no “mundo exterior”. São os mitos que nos ensinam a nos voltarmos para dentro e, ao começarmos a entender o que eles têm a dizer, perceberemos que são muito mais do que simples narrativas fabulosas que servem para algum entretenimento em torno da uma fogueira.
Na tradição do hinduísmo, um dos mitos mais destacados diz respeito a Mãyã, o “véu dourado” que nos esconde a verdade e a realidade. Segundo a tradição hindu, Vishnu, o Ser Supremo, ao criar o mundo, nele também penetrou. Vishnu, significa “aquele que a tudo permeia, que está em tudo e toda parte”. Vishnu é purusha, o espírito incorporado na matéria (prakriti). É a potente e inesgotável energia de Vishnu que cria, sustenta e dissolve o universo. Essa energia é Mãyã.
Mãyã também é o poder mágico com o qual Vishnu mantém os seres humanos em um estado de profunda ilusão. Trata-se de uma poderosa força cósmica que cria a falsa percepção de que o mundo fenomênico (o mundo das aparências) é real. O poder de Mãyã se expressa pela ignorância do ser humano em não compreender a sua natureza espiritual e divina, e que sua consciência é ilimitada tal qual a consciência ilimitada que o originou. Assim, o ser humano confunde o seu ego empírico, limitado e finito como se fosse a sua própria natureza real.
Mãyã é o que causa o sofrimento, mas também a alegria; ela é prazer e dor, pois ao confundir o limitado e finito como sendo o “Si mesmo”, o indivíduo humano, por sentir grande satisfação nos prazeres dos sentido, se desespera com a certeza da morte de seu corpo físico, a dissolução do seu ego e o fim de sua persona. No turbilhão da existência, o indivíduo que não decifrou o segredo de Mãyã, torna-se um mero joguete das forças cósmicas – o poder de Vishnu – que o mantém preso na inconsciência de “Si mesmo”. Mas qual o segredo de Mãyã?
Um conto muito popular da mitologia da Índia, diz que o sábio Narada, símbolo da perfeita devoção (bhakti), ao cantar para o deus Vishnu, agradou-lhe tanto que o mesmo apareceu-lhe e disse: “Pede-me agora o que quiseres e te darei.” Então Narada respondeu: “Quero conhecer o segredo de Mãyã.” Porém, Vishnu disse: “O seu pedido é muito difícil de compreender. Pede-me qualquer outra coisa e te concederei.” Mas Narada insistiu muito e Vishnu acabou concordando. Eis, então, que ambos saem a pé por uma estrada e, após muito caminharem sob o sol escaldante, ao avistarem um pequeno povoado, Vishnu disse: “Vou sentar-me aqui, ao pé dessa árvore. Vá busca-me água e, quando retornares, te revelarei o segredo de Mãyã.”
Então Narada foi ao povoado e parou em frente à casa do administrador local. Quem lhe atendeu à porta foi uma belíssima moça, filha do principal da casa. Extasiado pela beleza sublime da donzela, ele se esqueceu de si mesmo e do que fora buscar. O pai da jovem moça apareceu e, como se conhecesse Narada há anos, cumprimentou-o afetuosamente e convidou-o a entrar. Recebido por todos da família com grande alegria, Narada se encantou com tudo e lá permaneceu em longas conversas animadas noite a adentro.
Já no dia seguinte, Narada foi convidado a conhecer o povoado, esquecido completamente da razão que o levou até aquele lugar. Passaram-se alguns dias e ele casou-se com a moça de divina beleza. Eles tiveram dois filhos maravilhosos e Narada, após um tempo, assumiu a administração do povoado. Tudo seguia em perfeita harmonia, prosperidade e felicidade.
Mas no décimo segundo ano após a sua chegada, as monções castigaram o povoado. Com tempestades mais fortes do que o habitual, o rio transbordou e inundou tudo. Narada, junto com sua família, tenta escapar da terrível inundação. Já tendo perdido todos os bens materiais pela poderosa tormenta, ele viu seus filhos e esposa serem engolidos pela cruel correnteza; ao bater a cabeça em um galho, ficou inconsciente e também foi levado pelas águas furiosas.
Quando recobrou a consciência, viu-se de novo diante da árvore onde havia deixado Vishnu. Vishnu, então, lhe perguntou: “Narada, meu amigo, onde está minha água? Estou esperando há meia hora.”
Hari Om Tat Sat.
O segredo de Mãyã é a identidade dos opostos. Mãyã é uma manifestação simultânea e sucessiva de energias conflitantes, de processos que se contradizem e se aniquilam reciprocamente: criação e destruição, evolução e dissolução, sonho da visão interior do deus e desolação do nada, terror do vazio, pavor infinito. O “e” que separa essas incompatibilidades, expressa o caráter fundamental do Ser Supremo, senhor e controlador de Mãyã e cuja energia é Mãyã. Os opostos têm fundamentalmente uma única essência: são dois aspectos do mesmo Vishnu (Heinrich Zimmer)
Commentaires