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Foto do escritorMarcelo Augusti

O SILÊNCIO, O ESPAÇO E O TEMPO

Aparokshanubhuti e os portais para a conexão com o Divino






Aqui é exposto Aparokshanubhuti (Autorrealização) para a aquisição da libertação final. Somente os puros de coração devem meditar constantemente e com todo esforço na verdade aqui ensinada

(Adi Sankaracharya)




A tradição do yoga afirma, em suas escrituras mais relevantes, que a conexão com o Divino somente é possível quando os sentidos estão sob controle, a mente se aquieta, a concentração mantém-se no “mundo interior” e, então, a consciência individual (Atman) se unifica à Consciência Universal (Brahman).


Tal conexão, portanto, não ocorre por meio de uma experiência. Filosoficamente, uma experiência diz respeito a um conhecimento obtido por meio dos sentidos. Na tradição do yoga, a Realidade – o Absoluto, Brahman – se encontra além dos sentidos. Assim, para conhecer diretamente o Divino, apenas por meio da percepção intuitiva.


A percepção intuitiva é direta, clara e imediata.  Trata-se de uma qualidade natural ou adquirida, por meio da prática consistente, que diz respeito ao discernimento das coisas sem que, para isso, se necessite do raciocínio ao da análise lógica. É pela capacidade de percepção intuitiva que podemos investigar a natureza das coisas em sua dimensão metafísica. Ela nos revela o conhecimento da essência.


Um dos mais renomados professores da tradição do yoga em todos os tempos, o mestre Adi Sankara (788 a.C. – 820 a.C.), deixou-nos, como um de seus legados, a obra Aparoksha Anubhuti. Na literatura do yoga, esta obra é catalogada como Prakarana Grantha, isto é, um texto que, por suas características peculiares, trata de explicar com toda clareza a terminologia dos conceitos básicos dos Shastras (os tratados e compêndios do yoga).


Compreender os conceitos básicos da natureza e da relação Atman-Brahman é fundamental para a realização no yoga. É por meio dessa compreensão que a mente se purifica dos condicionamentos que embotam o discernimento. Aparoksha Anubhuti, portanto, é um texo introdutório à “filosofia” de Adi Sankara, o Advaita Vedanta. O Advaita advoga que “somente Brahman é real, o universo é uma expressão de Brahman e Atman também é uma manifestação de Brahman; logo, tudo e todos não são distintos de Brahman”. Este Brahman é a Consciência Universal, o Absoluto, o Imutável, Eterno, Infinito.


No Aparoksha Anubhuti, Adi Sankara descreve, dentre outros temas, várias técnicas de meditação para que o praticante possa alcançar a autorrealização espiritual. Tais técnicas diferem daquelas apregoadas por outras “filosofias”, como as do Yoga Sutras de Patanjali, que argumentam em favor do controle da mente (dhyana) como meio para a absorção no Divino (samadhi).


Para Sankara, a meditação vedanta ou Nididhyasana é um processo de auto-investigação em que o praticante busca a permanência no Atman, isto é, naquilo que é real e imperecível. Este estado de permanência no Atman – isto é, no Ser, a realização no Divino – também é buscado por Patanjali, porém, por outra via, como já dito.


Aparoksha é um termo que significa “conhecimento direto”. Trata-se de estabelecer a conexão direta com Atman para, assim, conhecermos a nossa essência, sem qualquer interferência dos sentidos ou outros meios de conhecimento, como o raciocínio lógico. Como já dito, a mente, o intelecto e os sentidos não podem alcançar o Absoluto, pois Brahman não se revela a eles. É necessário transcendê-los por meio da prática constante (abhyasa) da meditação que desenvolva a percepção intuitiva.


Anubhuti significa “tornar-se, ser continuamente”. Sankara nos adverte sobre a prática constante, pois a realização do Ser – a autorrealização espiritual – exige perseverança e dedicação, pois se trata de um processo contínuo e ininterrupto. Logo, para "tornar-se e ser continuamente", se faz necessário o esforço contínuo para despertar a consciência para o “pano de fundo” no qual se desenrola a vida.


Entreter-se com os cenários, as distrações e personagens da vida (tudo aquilo que é transitório e ilusório), e negligenciar o “pano de fundo” (aquilo que é real e imutável), nos leva à dor e sofrimento, se nos apegarmos ao que é irreal e impermanente. Aparoksha Anubhuti nos revela esse contexto, o “pano de fundo” que a tudo sustenta, que é o Espírito Supremo, conhecido como Brahman no Vedanta.


A constância da permanência no Ser, que é o objetivo da meditação proposta por Sankara, intensifica-se quando o pretendente à autorrealização espiritual, considera, em sua prática, alguns elementos fundamentais para a Realização da Verdade. São esses elementos ou “portais para a conexão com o Divino”, que propiciam o conhecimento direto do Ser Supremo e a unificação da consciência individual com a Consciência Universal.


Vejamos, agora, três desses portais, conforme inscritos no Aparoksha Anubhuti:


Verso 107, 108 e 109: No. 4: Maunam – Silêncio


Este mundo fenomenal pode ser descrito, porém, mesmo isso às vezes está além das palavras. Uma definição de SILÊNCIO é dada pelos sábios como “Aquilo que é o nosso estado natural”. Para os iniciantes, entretanto, “não falar” é ordenado pelos professores da Verdade.

 

 

O Silêncio pode ser entendido a partir de três perspectivas distintas:

 

1) A dos que alcançaram a Autorrealização: a experiência mais elevada que um indivíduo autorrealizado alcança é a experiência do Silêncio. É no Silêncio que se realiza a unidade com Brahman ou o a conexão com o Ser. Somente aquele que é capaz de permanecer naturalmente no Silêncio, mesmo em meio ao grande tumulto, alcança o Divino;


2) A da admiração muda: a revelação do Divino é algo tão maravilhoso que não se pode descrever em palavras, pois está além da mente, dos sentidos e do intelecto. Se alguém tenta explicar a conexão com o Ser por meio de palavras, o relato jamais será capaz de traduzir tal relação direta, sem interferências. Esta tentativa, inútil, apenas afastará o indivíduo daquilo que ele vivenciou em seu “mundo interior”. A admiração é tão intensa que o indivíduo não faz qualquer esforço para restringir a fala; de modo espontâneo, ele apenas permanece em êxtase e profundo silêncio devocional;


3) A dos iniciantes no yoga: para alcançar o estado natural de silêncio dos sábios e autorrealizados, é recomendado aos iniciantes permanecerem calados. Restringir a fala é barrar o som – a agitação – que surge das palavras faladas, o nível bruto da sonoridade. Aqui, a ausência do som é o silêncio. É este silêncio – ausência de discurso articulado – que, posto em prática, vai conduzir gradualmente o indivíduo em direção ao Ser. Tal prática é denominada Maunam que, ao ser dominada pelo iniciante, reduzirá e até mesmo eliminará o ruído que advém da tendência, quase incontrolável, em formar palavras na mente, antes que elas descambem pela boca e poluam o ambiente onde se realiza a disciplina espiritual (sadhana).

 

Verso 110: Nº 5: Deshah – Espaço Pessoal ou Solitude


No começo, fim e meio, o universo não existe nele (ou seja, no espaço); mas o espaço permeia o universo em todos os momentos – este ESPAÇO nos lembra a Solitude de Brahman.

 

Tudo o que existe, existe no espaço. Todos os elementos (ar, terra, fogo e água) se combinam no espaço para, nele, dar formas a infinitos universos. O espaço, portanto, a tudo permeia. Por isso, o espaço é comparado à Brahman, pois tudo que existe, existe somente em Brahman, que a tudo perpassa no vasto e infinito universo de nomes e formas.


Assim compreendido, o espaço, antes de ser preenchido, precisa ser criado primeiro que tudo. Mas o espaço, embora preenchido, é independente de tudo o que o preenche. Em si mesmo, o espaço permanece sempre em solitude, isto é, ele está só, mas não solitário. A independência do espaço e sua solitude, podem ser comparadas com o "tranquilo permanecer" de Brahman.


Para Sankara, o espaço pode ser um portal para o Divino, assim que aprendermos a compará-lo à tranquilidade perfeita de Brahman. Quando o praticante alcança a visão da independência do espaço em meio à multiplicidade infinita de nomes e formas que o preenchem, então, ele começa a compreender Brahman como a Consciência Universal, a pura existência que a tudo sustenta e abarca, sem que nada lhe afete a serenidade e a harmonia.


Com a percepção direta de que nomes e formas surgem e desaparecem, mas o espaço continua o mesmo de sempre – puro, infinito, sereno – alcança-se a sabedoria transcendental de que tudo aquilo que se manifesta no espaço é transitório; a vida, a morte, todos os seres, coisas e circunstâncias mais diversas, em tal concepção, são apenas elementos passageiros, surgindo e desaparecendo como num piscar de olhos.


Quando tudo deixa de existir, o que permanece é a infinitude e a solitude do espaço. Esta infinitude e solitude do espaço é Brahman. Pois o espaço existe antes de tudo, e continua a existir depois e apesar de tudo. Meditar no espaço e sua solitude, portanto, aproxima o praticante do Ser Supremo, a Consciência Universal que a tudo sustém.


Ter um espaço pessoal para exercitar a solitude é fundamental para a prática da meditação, conforme nos ensina o Aparoksha Anubhuti. Para se alcançar o estado de "solitude vedântica" - a Solitude de Brahman, que é um estado de consciência elevada - necessário se faz providenciar a solidão física. Reservar um momento longe de pessoas – um espaço pessoal – nos mantém em um estado maior de relaxamento, onde podemos nos desligar de possíveis distrações que geram apego ou aversão. O espaço pessoal, portanto, constitui-se em uma reserva de conforto e relaxamento para podermos meditar e alcançarmos o estado bramânico de “tranquilo permanecer”.

 

Verso 111: No. 6: Kaalah – Tempo


Num piscar de olhos, todos os seres, do mais baixo ao mais elevado, são evocados; pela palavra TEMPO é indicada a Bem-aventurança indivisível, a Verdade da unidade essencial da Existência.

 

O Tempo corresponde ao passado e ao futuro? O Tempo está chegando ou está partindo? O Tempo não é o passado e nem o futuro; ele não chega, tampouco parte. O Tempo é sempre presente. Tudo é o presente. O passado somente existe no presente; o futuro apenas acontece no presente. O presente é a testemunha do Tempo.


O Tempo Vedântico é o “agora”. Tudo acontece nesse instante, o “agora”. O “aqui e agora” é o corolário do Tempo. Pois somente pode haver o “aqui e o agora”, nada mais. Logo, a conexão com o Divino somente pode ser realizada nesse instante, nunca fora do presente. Não há passado, não há futuro, pois tudo acontece no presente. Por isso, o Tempo é um portal para alcançarmos o Brahman; o Tempo – o momento presente – não pode ser desperdiçado.


Quando o Tempo é assim compreendido, percebemos que Atman está livre do Tempo, assim como Brahman. Atman, assim como Brahman, é imutável; sempre constante, segundo a segundo, minuto a minuto, hora a hora, dia após dia, idade após idade, nascimento após nascimento.


Compreender o Tempo é livrar-se do sofrimento. Pois a paz, o amor e a felicidade estão no “aqui e agora”, não em outro tempo. Tudo pode ser desfrutado no momento presente, pois a conexão direta com o Divino nos revela a fonte ininterrupta da Bem-aventurança infinita, sem as mazelas do dualismo prazer e dor.


***


Esses são três portais (Silêncio, Espaço e Tempo) inscritos no Aparoksha Anubhuti, que, pela constância na meditação vedanta, desperta-nos a percepção intuitiva, proporcionando uma conexão com o Divino, de modo a nos revelar o conhecimento direto da Realidade Suprema e, assim, nos conduzir a um estado consciente de perfeita serenidade, contentamento e plena harmonia com a vida e tudo o que nela há.


Hari Om Tat Sat.

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