Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas (Jacques Rancière)
Conta-se que, em certa ocasião, o sábio Sankara, o mestre da filosofia Advaita, que afirma o princípio universal de que tudo o que existe é manifestação de uma mesma Consciência Ilimitada, ao retornar do banho nas águas do Rio Ganges, em Kashi, encaminhando-se ao templo de Shiva, deparou-se com um chandala, isto é, um indivíduo que, dada a sua condição de nascimento, era considerado socialmente um desclassificado, um sem casta.
A um chandala não lhe era dada qualquer dignidade e decência, pois sua condição o colocava em posição social inferior ao serviçal mais baixo da camada social mais baixa da sociedade tradicional da Índia. Como era costume na época de Sankara, por volta do século V a.C., o sábio mestre acenou rudemente duas vezes (“gaccha, gaccha”), para que aquela “criatura inferior” saísse de seu caminho, dando-lhe passagem. Afinal, tocar em um chandala seria o mesmo que expor-se a uma praga incurável.
Entretanto, o chandala, ao invés de se afastar, questionou o sábio Sankara, perguntando-lhe:
Ó grande entre os nascidos duas vezes! O que é que você quer afastar quando diz “Sai, sai”? Você quer que o corpo feito de comida se afaste de outro corpo feito de comida? Ou você quer que a consciência se afaste da consciência? Existe alguma diferença entre o reflexo do sol nas águas sagradas do Ganges ou o mesmo reflexo na água de uma vala lamacenta onde mora um pária? Que diferença há no interior de um sábio ou de um ignorante?
O questionamento do chandala, um indivíduo sem nenhuma vantagem social, considerado inculto e de hábitos selvagens, surpreendeu Sankara – o sábio, o mestre, o filósofo da não-discriminação. Este foi o teste ao qual o próprio Shiva impôs a Sankara, para verificar se, de fato, ele havia superado a dualidade discriminatória. Mas o comportamento de Sankara, mostrou que ainda havia um resquício de apego ao corpo (deha abhimana) e a tudo o que ele representa, inclusive a sua condição de sábio mestre.
Porém, Sankara era verdadeiramente um sábio, um mestre e um filósofo do Advaita. Ao ouvir as palavras do “ignorante” chandala, Sankara reconheceu, imediatamente, a sua própria estupidez – o quanto ele ainda se mantinha condicionado pelas regras sociais e os tabus de sua cultura. Ele reconheceu que aquele não era um indivíduo qualquer, mas alguém que estava ali para recordá-lo de sua própria sabedoria, ao qual Sankara havia se esquecido temporariamente. O chandala, afinal, não era um desclassificado, porém, um grande sábio disfarçado na multidão dos “ignorantes”.
Sankara, então, envergonhado, prostrou-se e tocou os pés do chandala (a parte do corpo mais inferior do indivíduo da casta mais inferior), em profundo respeito. A resposta de Sankara ao chandala, o reconhecendo como um sábio mestre, ficou conhecida como Manisha Panchakam (As cinco estrofes da convicção). Vejamos a primeira estrofe desse belo poema da filosofia Advaita:
Na vigília, no sonho e no sono, a Consciência brilha em todos os seres,
desde o Criador até a formiga, como a testemunha em todos e em tudo.
Sou essa Consciência e não um objeto: aquele que tiver essa visão,
seja sacerdote ou descastado, é o meu mestre. Esta é a minha firme convicção.
Os raios do sol, ao tocar as águas do Ganges, não se tornam mais sagrados; tampouco esses raios se mancham, ao tocar a água suja de uma vala de lama. Os raios do sol são imaculados, assim como o princípio universal consciente (Atma) que está presente em todos os seres. Isto quer dizer que, em termos absolutos, não somos diferentes ou limitados pela nossa aparência, condição social, profissão, etnia, crenças, gênero ou orientação sexual. Atma - a centelha divina - está presente em tudo e todos, sempre iluminado e imaculado.
O yoga nos ensina que somos, em essência, essa Consciência Ilimitada e, uma vez que alcançarmos esse conhecimento e nele tivermos “firme convicção” (manisha), não haverá mais discriminação e preconceito contra aqueles que, em aparência, condição ou categoria, são diferentes de nós nesse mundo fenomênico. Transcenderemos as dualidades e ilusões do nome e forma (namarupa) e consideraremos a todos – humanos, animais, plantas, tudo enfim, sem exceções – como manifestações do mesmo princípio criador universal – Brahman, cuja presença imaculada, Atma, ilumina cada um de nós.
Hari Om Tat Sat.
Eu sou pura Consciência, e todo o universo é apenas uma expansão de pura Consciência.
Fora desta ilusão (maya), tudo isso que vemos foi tramado pela imaginação.
Aquele cujo intelecto (buddhi) está firmemente estabelecido na Suprema Realidade, seja ele um chandala ou um brahmana, tal pessoa é digna de ser um sábio mestre. Esta é a minha firme convicção.
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