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Foto do escritorMarcelo Augusti

O TREINAMENTO DA VELOCIDADE PARA AS CORRIDAS DE FUNDO: CONSIDERAÇÃO SOBRE O MÉTODO FARTLEK



Na preparação dos corredores de fundo de alto rendimento, a manutenção do ritmo competitivo e a velocidade de corrida é um atributo essencial para as pretensões de qualquer atleta, seja em relação às vitórias ou aos recordes pessoais.

Embora o atleta que apresente rendimento diferenciado esteja submetido a um volume de treinamento elevado – acima de 160 km semanais – é primordial a preparação em velocidade desde a primeira semana do ciclo inicial da periodização para a temporada competitiva.


Isso justifica-se pelo fato de o corredor de alto rendimento já apresentar as premissas fisiológicas necessárias para receber os estímulos provenientes de um ritmo de corrida mais intenso logo no início da preparação.

Os atributos apresentados pelos corredores de fundo de alto desempenho competitivo em sua modalidade e que constituem a base de sua formação atlética específica de longos anos são:

- Elevada taxa de consumo de oxigênio (VO2max);


- Alta capacidade para mobilizar ácidos graxos para a produção da energia para a ação muscular de longa duração;


- Maiores reservas musculares de glicogênio;


- Eficiência nas funções termorreguladoras do organismo;


- Menor acúmulo de lactato em ritmos de corrida mais elevados;


- Melhor padrão de recrutamento das fibras musculares para o desempenho de longa duração;


- Manutenção econômica de um elevado ritmo de corrida (menor gasto energético);

- Maior capacidade de suportar dor e tensão psicológica.


Essas características, já bem desenvolvidas e aprimoradas no atleta de alto desempenho, permitem que a velocidade de corrida seja treinada desde a primeira semana da preparação, pois o corredor encontra-se em uma situação tal que, caso isso não seja executado, a baixa intensidade dos estímulos (por um treinamento exclusivamente aeróbio de volume), irá proporcionar uma redução da sua capacidade de velocidade, pois os padrões de recrutamento muscular serão descaracterizados.


Como a quilometragem é um dos fatores relevantes para o sucesso nas corridas de longa duração no atletismo, a tarefa principal a ser considerada na elaboração da estrutura do planejamento da temporada competitiva é conciliar o aumento da quilometragem com a intensidade de corrida que seja compatível com a capacidade do atleta para manter o esforço. A abordagem desse processo nos conduz à utilização dos meios de preparação proporcionados pelos métodos contínuos variáveis.


Os métodos contínuos variáveis se caracterizam, principalmente, pela variação do ritmo de execução do exercício (variações na velocidade de deslocamento), onde os esforços são realizados numa intensidade de 70-95% do esforço máximo do corredor, sempre alternando fases de intensidade elevada com corridas de recuperação.


Se analisados em sua essência metodológica, ou seja, estímulo-recuperação, os métodos contínuos variáveis constituem uma forma de trabalho muito semelhante aos métodos de direção descontínua da carga, citando como exemplo o treinamento intervalado. Entretanto, ao lançarmos uma visão mais detalhada em sua forma de aplicação, serão reveladas as diferenças elementares sobre um e outro método, encerrando definitivamente qualquer semelhança entre os mesmos.


Apenas como exemplo, um treino pelo método contínuo variável seria percorrer 10 km, variando-se a velocidade de corrida em determinados trechos: 2 km trote, seguido de 3 x 1 km de aceleração livre, alternando com 500m de corrida lenta, passando a 2,5 km corrida em ritmo de competição e finalizando com 2 km trote. Pelo método intervalado, uma sessão típica seria, por exemplo, 10 x 400m, a 1’05”, recuperação de 45”.


A finalidade do emprego dos métodos contínuos variáveis é o aprimoramento da utilização dos sistemas energéticos aeróbio-anaeróbio, desenvolvendo a capacidade de tolerância ao esforço, e acelerar a capacidade de recuperação entre os diversos ritmos de esforços empregados na corrida. E também é um excelente método para o atleta avaliar suas reais condições em relação à sua capacidade de aumentar o ritmo em determinadas situações e distâncias, o que ocorre frequentemente nas disputas competitivas.

Dentre os meios de preparação mais difundidos pelos métodos contínuos variáveis, apresentamos o fartlek.


O Fartlek


Fartlek significa “jogo de velocidade”. Foi desenvolvido na Suécia, por Gosta Holmer, na década de 1930, como um método de treinamento que pudesse superar, na época, a supremacia dos corredores finlandeses, como Hannes Kolehmaine, Vilho Ritola e Paavo Nurmi, o nome mais expressivo de todos.


Nesse tipo de treinamento, o atleta intercala corridas em alta velocidade com trotes para recuperação. O ideal do fartlek, segundo Holmer, era possibilitar que o atleta criasse, por si mesmo, uma sessão de treino que se ajustasse à sua individualidade. Ou seja, para Holmer, cada atleta deveria ser capaz de reconhecer seus recursos e desenvolver, na prática, sua determinação e vontade de vencer.


É no percurso em meio à natureza, com variações de piso, desníveis e até nas condições climáticas de cada dia, que o fartlek encontra os meios mais favoráveis à sua prática. No fartlek é o corredor que determina seus desafios e busca superá-los com sua criatividade, inclusive na escolha do percurso, sempre desafiador.


No fartlek, portanto, o corredor determina a velocidade e a distância dos estímulos, conforme a sua percepção de esforço e condição atlética, percorrendo percursos variados com aclives, declives e obstáculos naturais, em meio aos bosques e trilhas pelas florestas. Os estímulos fortes – as acelerações – são intercalados com pausas onde o corredor realiza uma corrida lenta ou até mesmo uma caminhada, para a sua recuperação. A freqüência cardíaca apresentará variações entre 140-180 batidas.


Para Holmer, um fartlek bem realizado, em 1h de treino, por exemplo, levaria o corredor a uma sensação de esforço intenso, porém, sem sentir-se esgotado ao final da sessão. O corredor ficaria com aquela sensação de que daria “uma série a mais” e com a vontade de retomar o treino no dia seguinte. Trata-se, logo, de algo subjetivo, que exige, de fato, conhecimento e consciência por parte do atleta.


Entre os anos 1940 e 1950, outro treinador sueco, Gosta Olander, transformou uma antiga estação de esqui na região de Valadalen, também na Suécia, em um centro de treinamento de corredores de alto nível. Valadalen (ou Volodalen), em pouco tempo, passou a ser uma referência internacional em questão de treinamento esportivo, com destaque para o método fartlek. Foi nos anos 40 que atletas como Gunder Hagg e Arne Andersson, treinando em Valadalen, revezaram-se em sucessivas quebras do recorde mundial da milha (3 vezes cada), que durou de 1 de julho de 1942 (4’06”1, Gunder Hagg) até 17 de julho de 1945 (4’01”3, Gunder Hagg). Esse último recorde somente foi desbancado pelo lendário inglês Roger Bannister, em 6 de maio de 1954, quando em Oxford, estabeleceu a marca histórica de 3’59”4 (naquela época acreditava-se que seria impossível correr a milha abaixo de 4 minutos...).


Olander acreditava que a condição atlética deveria ser construída a longo prazo, e que os atletas deveriam treinar em condições variadas de terrenos, alternando acelerações com movimentos suaves e relaxados, sempre em meio aos desafios que a natureza propiciava. Em Valadalen, as condições eram ideias: campos gramados, areias, terreno nevado no inverno, colinas, bosques e o ar puro da montanha, além de todas os extras como excelente alimentação e horas adequadas para repouso.


Valadalen, apresentava percursos que eram demarcados a cada 200 ou 400m, facilitando a tomada de ritmo dos corredores em suas investidas “fortes e fracas” (“forte / fraco” é o jeito brasileiro de referir-se ao fartlek). As características de Valadalen permitia que os corredores alcançassem sua melhor forma, respeitando sua individualidade, e pondo à prova seus recursos e vontade de vencer. O ideal do fartlek ganhou alma e vida em Valadalen.


Da Suécia para o mundo, o fartlek já foi utilizado por renomados treinadores e corredores de alto rendimento, que dele souberam tirar o melhor. Atualmente, há muitas variações de fartlek em relação à suas origens. Inserido no contexto do processo pedagógico de preparação nas corridas de fundo, ele deve ser empregado, preferencialmente após ou juntamente com a utilização dos métodos contínuos, porém, anteriormente aos métodos descontínuos (intervalados), estando isso em conformidade com as leis biológicas que permeiam a ciência do treinamento desportivo.


No planejamento da preparação do corredor fundista de alto rendimento, portanto, de um modo simplificado, a sequência metodológica ótima para o treinamento da velocidade durante os períodos da preparação ficaria assim:


- Preparação de Base: Contínuo de Ritmo Invariável (rodagens estáveis) + Contínuo Ritmo Variável (fartlek);

- Preparação Específica: Contínuo de Ritmo Progressivo (rodagens crescentes) + Descontínuo Ritmo Invariável (Intervalado)


Exemplo para uma semana de Preparação de Base para um corredor de 10 km, pensando apenas no exposto acima, poderia ser elaborada assim:


Seg - 12 km / confortável;

Ter - 10 km / fartlek;

Qua - 15 km / confortável;

Qui - 10 km / fartlek;

Sex - 8 km / regenerativo;

Sab - 25 km / confortável;

Dom - 10 km / confortável.



Em relação às suas variações, foram desenvolvidas novas configurações para o fartlek. Apresentamos abaixo três tipos de fartleks oriundos dessas tendências, além do tradicional, com as devidas considerações e exemplos práticos:


- Fartlek Tradicional, o corredor decide em que ritmos deve correr, quais as distâncias e / ou duração do estímulo e o tipo de terreno (de preferência, com muitas variações, ou seja, grama, terra, asfalto, areia, aclive, declives etc.), tudo conforme a disposição do momento. A duração do treino deve estar compreendida entre 40 min a 2 horas. Pode ser utilizado como recurso pedagógico para a quebra da rotina e para promover a recuperação do corredor após períodos de grande acúmulo de fadiga física ou mental, pois permite a execução do treino sem compromissos com tempo / distância;


- Fartlek Orientado, onde as variações de distância e ritmo são orientadas pelo treinador, sendo utilizado nas semanas iniciais da preparação do atleta. Exemplo: 2 km corrida lenta + 4 séries de 1000m x 800m x 600m x 400m x 200m em ritmo acelerado intercaladas com 200-400m de corrida lenta + 2 km de corrida lenta;


- Fartlek Especial, onde há uma combinação de corridas de diferentes distâncias e ritmos, com exercícios especiais (saltos, educativos, etc.). Exemplo: 3 km corrida lenta + exercícios educativos intercalados com 50m de corrida lenta + sequência de saltos intercalados com 50-100m de corrida lenta + acelerações de 100-200m intercaladas com 50-100m de corrida lenta + acelerações de 400m-800m intercaladas com 200m corrida lenta + exercícios para resistência de força muscular intercalados com 50-100m de corrida lenta + acelerações de 1000-2000m intercaladas com 400-800m corrida lenta + 3 km corrida lenta;


- Fartlek Líder, pela formação de grupos de corredores do mesmo nível de condicionamento, onde um deles será o responsável pelas acelerações intermediárias, sendo que os demais deverão ultrapassá-lo. O treinador deverá orientar em relação às distâncias utilizadas ou a duração do estímulo e aos momentos de aceleração. O objetivo é condicionar os corredores às acelerações intermediárias que ocorrem durante as competições esportivas. Exemplo: 3 km corrida lenta + 12 km intercalando 800-1200m corrida acelerada com simulações táticas com 400-800m corrida recuperativa + 3 km corrida lenta.


O fartlek não é um método exclusivo para atletas de alto rendimento, tampouco as orientações para a alternância entre ritmos fortes e fracos sejam apenas em relação à distância. Corredores de todos os níveis de performance podem ser beneficiados pelo método fartlek, e a alternância entre os estímulos podem ser por duração. Vejamos alguns exemplos para uma sessão de fartlek: 15 x 1' forte x 2' fraco; 12 x 1'30" forte x 1'30" fraco; 8 x 3' forte x 2' fraco; 4 séries de 1-2-3-2-1 min forte x 2' min fraco; 3 ou 4 séries de 4-3-2-1 min forte x 3-2-1-4 min fraco, etc. Além disso, os percursos podem ser realizados em pisos variados, até mesmo em uma mesma sessão: asfalto, "chão batido", areia, grama, e também com variações altimétricas. Enfim, o corredor fica livre para criar a sessão de treino que mais lhe atenda às necessidades do momento da preparação.


Podemos considerar o fartlek como um meio amplo e eficaz para o aprimoramento da capacidade atlética dos corredores de alto rendimento nas provas de fundo do atletismo, pois, além de assegurar a manutenção do volume adequado do treinamento, proporciona meios para o aperfeiçoamento da velocidade e ritmo de corrida. Treina-se a velocidade, porém, com quilometragem. Treina-se quantidade, porém, com qualidade.


Grupo de corredores em Valadalen, observados por Gosta Olander, anos 60.

Fonte: John Cobley (2014). https://www.racingpast.ca/john_contents.php?id=244.



Bibliografia recomendada:


FORTEZA, A. Treinamento Desportivo: Carga, Estrutura e Planejamento. 1ª edição brasileira. São Paulo: Phorte, 2001;

HEGEDUS, J. Estúdio de las Capacidades Físicas: la Resistência. Revista Digital: Educación Física y Deportes. Año 2, N° 7, Buenos Aires, Ouctubre, 1997;

MACHADO, M. Fartlek Total. Revista Spiridon, ano 25, nº 149, 22-27, Portugal, jul/ago, 2003;


Obs: esse artigo foi revisto e ampliado. O original foi publicado em 2004, no site da Confederação Brasileira de Atletismo, e está disponível em: http://www.cbat.org.br/treinamento/artigos_tecnicos/treinamento_corrida_fundo.asp

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