
Se não há um nós é porque talvez haja muitos “nós” (Kavi Manish)
Dentre outras, há uma questão em nossa vida, ao qual deveríamos nos atentar seriamente, pois é da maior importância ao nosso bem-estar. Esta questão é: queremos ter paz ou estar com a razão?
Tal questão está diretamente associada ao nosso comportamento diante dos contatos que fazemos e dos vínculos que estabelecemos com as pessoas e as circunstâncias ao longo de nossa vida.
Para compreendermos melhor essa questão, faremos, inicialmente, uma breve explanação sobre o significado de dois termos que são fundamentais para essa compreensão. São eles: relação e relacionamento.
Sem maiores aprofundamentos em estudos linguísticos, em termos gerais, relação e relacionamento são aspectos básicos da vida comum em sociedade, e que possuem significados distintos.
O verbo ‘relacionar’, entre outros, significa “estabelecer uma conexão entre”. Relacionar é vincular algo entre pessoas, fatos, coisas. O sufixo “ção”, da palavra derivada ‘relação’, indica uma ação ou o resultado da ação.
Podemos considerar que uma relação implica em uma ação de aproximar pessoas, fatos ou coisas da vida, e o consequente resultado, no sentido de agregar ou unir as partes para um entendimento comum ou para uma colaboração mútua entre os envolvidos.
Quando nos referimos a uma relação social, significa dizer que os envolvidos na relação se unem, a partir de uma causa externa, em prol de um interesse em comum. Exemplo disso, é quando pessoas de uma comunidade religiosa se reúnem para organizar e realizar uma festa junina. Ou a relação entre comerciante e cliente.
Uma relação social, portanto, é um vínculo estabelecido entre indivíduos ou grupos sociais. São esses vínculos que impulsionam a sociedade para esta ou aquela direção.
São as relações sociais que promove um conjunto de condições ou causas que geram efeitos e consequências mais ou menos duradouros nos indivíduos e na sociedade.
As relações entre pessoas ou grupos podem ser superficiais ou profundas, breves ou prolongadas. Tudo depende das circunstâncias, dos valores, das crenças, dos costumes e, sobretudo, dos interesses em comum.
Mas uma relação entre pessoas pode ir além de causas externas, embora, a princípio, tenha se estabelecido deste modo. A palavra “relacionamento” é o que define as relações que têm por base uma causa interna, isto é, que diz respeito, exclusivamente, ao sentimentos dos envolvidos.
A adjunção do sufixo ‘mento’, ao qual deriva o termo relacionamento, implica em situações que são a causa de outras situações; ou seja, elas implicam, necessariamente, em uma mudança de circunstâncias, onde as opções e preferências dos envolvidos atendam às suas aspirações mais profundas. Exemplo disso é o namoro, que pode levar ao noivado e este ao casamento.
De modo geral, portanto, a distinção entre relação e relacionamento, se encontra no modo como o vínculo é estabelecido: relação é algo necessário à boa convivência social, abrange inúmeros aspectos da vida em sociedade; trata-se de um vínculo mais superficial, e que se fundamenta na satisfação de necessidades do mundo exterior, isto é, das coisas da vida social comum.
O relacionamento, por sua vez, sugere um vínculo mais profundo; implica em um ‘importar-se genuinamente’ com o outro, de modo a permitir-se ser seduzido e envolvido por ele. Relacionamento, mais do que uma convivência, é uma cumplicidade; mais do que comunicação, é comunhão. É o relacionamento que satisfaz as necessidades da “alma”.
Tanto em uma relação quanto em um relacionamento, a reciprocidade é o fator crucial para tornar o vínculo saudável e duradouro. É a reciprocidade que me enriquece ou empobrece; que me engrandece ou envilece; que me rejuvenesce ou me envelhece; que me esclarece ou me obscurece.
Outra coisa importante a saber é que, tanto em uma relação quanto em um relacionamento, não pode haver um “eu” e “tu” sem que haja um “nós”. Pois nada se firma nas extremidades, porém, o equilíbrio se encontra sempre no centro.
Para relacionar-se de modo saudável, portanto, necessário se faz estabelecer uma base sólida afetiva, ética e moral entre as pessoas. E podemos estender isso para os vínculos com todos os seres vivos, plantas, animais, os rios, as montanhas, o ar e as florestas.
Quando o “nós” não emerge em sua mais pura naturalidade e simplicidade, a partir do apreço mútuo, é porque muitos ‘nós’ podem estar atando o vínculo de um modo prejudicial aos envolvidos.
Esses ‘nós’ são os enlaçamentos egoístas, de difícil extinção, e cujo intento é prender uma das partes envolvidas, seja para satisfação própria, para arruinar-lhe ou mesmo para usurpar-lhe o direito à felicidade.
A expressão “nó górdio" é, geralmente, utilizada como metáfora para uma questão complexa e que parece impossível de resolver, porém, que pode ser solucionada de forma simples e eficaz.
Nas relações e relacionamentos, o yoga nos proporciona a possibilidade de resolver as mais intrincadas situações de modo simples, direto e eficaz. O yoga desfaz o "nó górdio", e nos propicia tanto o “ter a paz” quanto o “estar com a razão”. Mas como isso é possível?
Quando se diz “ter paz”, significa que posso usufruir da paz. Mas paz não é algo a ser alcançado ou conquistado. O yoga afirma que “ter paz” é permitir que ela aflore naturalmente dentro de nós: pois nossa essência é harmonia e quietude, isto é, a própria paz.
Quando se diz “estar com a razão”, significa que quero me apropriar de algo que julgo ser correto, algo que, entretanto, não me pertence, porém, que se coaduna aos meus interesses. Esse "estar com a razão" frequentemente me leva a entrincheirar-se no egoísmo.
Mas a “minha razão” é algo que facilmente pode ser desconstruída por argumentos alheios muito mais hábeis do que os meus. Enredar-se por esse território hostil do “estar com a razão”, é manter-se em permanente confronto a conflito contra aqueles que pensam ou querem algo diferente do que penso ou quero. Afinal, cada um terá as “suas próprias razões”a defender.
Na vida, portanto, temos que observar atentamente em que base se assentam as nossas relações e relacionamentos. Pois não é necessário abdicar da razão em nome da paz. Não é disso que se trata o “relacionar-se”.
Entre optar por “ter paz” ou “estar com a razão”, o yoga nos ensina que há algo sutil que, se soubermos aplicar corretamente em nossa vida, teremos paz e, ainda sim, estaremos com a razão.
No yoga, “estar com a razão” não diz respeito à “minha razão”, ou às “minhas verdades” e minhas particularidades egoístas; porém, se trata de algo mais elevado, sublime: é a razão que brota de uma sensibilidade compassiva e benevolente, e que emerge da leveza do espírito.
Esta sutileza que me permite, ao mesmo tempo, a paz e a razão, denomina-se equanimidade. A equanimidade (upeksha) é considerada uma virtude por excelência; ela expressa a perfeita serenidade diante das mais diversas circunstâncias da vida. Upeksha é a constância na lucidez, no discernimento e na sabedoria nas tomadas de decisões.
É certo que nas relações e nos relacionamentos, sempre temos que tomar alguma decisão. Algumas delas, conforme as condições que nos são impostas, até podem mudar o rumo dos acontecimentos. Decisões tomadas em momentos onde as emoções estão à ‘flor da pele’, sempre acabam mal, pois tiram-nos a paz e nos faz perder a razão.
Praticar upeksha implica em manter-se serenamente inabalável ou permanecer neutro diante das oito condições mundanas que nos aprisionam na matéria: perda e ganho, boa e má reputação, elogio e censura, tristeza e alegria.
As boas relações e relacionamentos, de certo, somente poderão dar seus frutos polpudos no solo sagrado da equanimidade. Logo, cultivar upeksha é manter a harmonia nos relacionamentos e a imparcialidade nas relações.
A equanimidade, como dito, é a perfeita serenidade. Porém, esta tranquilidade imperturbável leva muitas pessoas a confundirem equanimidade com indiferença. Equanimidade, entretanto, conduz à paz e harmonia; a indiferença, à injustiça.
Indiferente é ser desleixado, preguiçoso, negligente, pachorrento, indolente, desanimado. Injusto é ser parcial, autoritário, indevido, inexato, abusivo. Que tipo de vínculo poderá se manter saudável e duradouro diante da indiferença e da injustiça?
Mas a equanimidade nas relações e relacionamentos somente será alcançada quando adquirimos a visão correta da realidade. É a ‘visão da realidade’ que exerce influência decisiva na maneira como percebemos os outros e entendemos o mundo.
Pois é a ‘visão da realidade’ que determina o modo de ser e o comportamento de cada indivíduo nas suas relações e relacionamentos. Logo, há de se alcançar a ‘visão correta’, embora isso pareça algo abstrato. Afinal, o que é ter uma “visão correta da realidade”?
Quando a ‘visão da realidade’ é sobreposta pelos ‘meus interesses pessoais’, a realidade passa a ser vista de modo parcial e restrito àquilo que julgo ser correto e bom para mim.
Todavia, esse comportamento egóico apenas provoca frustração, pois, cedo ou tarde, a ‘minha visão particular e egoísta’ se confrontará, inapelavelmente, com a verdade da realidade universal.
Façamos uma breve reflexão: quantas vezes, por desconhecimento, tendências ou preferências, consideramos algo ou alguém, por is mesmo, como bom e desejável ou ruim e odioso?
Quantas vezes nos agarramos à “minha identidade, aos meus valores e crenças, ao meu corpo, à minha família, aos meus bens e propriedades, à minha profissão”, como se esses conceitos fossem, de fato, concretos e permanentes, como eles fossem a realidade em si?
Visão correta ou vipashyana é ser capaz de perceber claramente em que consiste o que denominamos por ‘realidade’. Vipashyana é visão correta pois é penetrante, esclarecedora e purificante.
É apenas quando a consciência encontra-se estável, quando emerge a “tranquilidade interior” (shamata), cultivada no yoga, é que, então, estaremos aptos a penetrar na verdade da realidade universal.
O “nó górdio” das relações e dos relacionamentos é o egoísmo. Com o yoga aprendemos que, ao invés de nos debatermos loucamente para saber "quem tem razão", basta, simplesmente, cortar o nó do egoísmo.
Corte os ‘nós’, esteja com a razão e desfrute a paz.
Hari Om Tat Sat.
A meditação no ensina a administrar os rompantes de raiva nociva ou de inveja, as ondas de desejo incontrolável e os medos irracionais. Ela nos liberta das imposições dos estados mentais que turvam nosso julgamento e que são fonte incessante de tormentos. Falamos em “toxinas mentais”, pois esses estados mentais realmente intoxicam a nossa vida e a dos outros (Matthieu Ricard)
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