Certa vez, Rama, com um olhar arteiro, perguntou à Hanuman:
"Você é um homem ou um macaco?".
Com as mãos unidas e cheio de reverência, Hanuman respondeu:
"Senhor, quando eu não sei quem sou, eu sirvo a Ti.
Quando eu sei quem sou, eu e você somos Um."
O post de hoje é sobre uma das mais antigas e relevantes obras literárias da Índia: o Ramayana. Foi escrito pelo poeta Valmiki, entre 500 a 100 a.C. Trata-se de uma das narrativas épicas mais importantes do hinduísmo, equiparando-se ao Mahabharata. É um conto de amor entre o príncipe Rama e a princesa Sita. Porém, o Ramayana é muito mais do que isso.
As narrativas do Ramayana contém ensinamentos filosóficos e devocionais profundos, que causaram grande impacto na consciência cultural da Índia. Basicamente, trata-se da jornada do príncipe Rama em busca de Sita, sua esposa, que fora raptada pelos demônios. Rama e Sita eram exemplos de virtude, pureza e benevolência.
Não temos a pretensão de relatar o conto em seus pormenores. Apenas dar umas ligeiras pinceladas, para uma noção sobre a trama. Pois é em Hanuman, um dos personagens, considerado como o exemplo perfeito de conduta e ideal de ser humano, que iremos nos deter um pouco mais adiante.
Conforme a tradição mitológica hindu, quando as coisas na Terra ficam ameaçadas pela desordem, os deuses decidem vir até nós para restabelecer a harmonia. No caso, Ravana, o rei demônio de dez cabeças, estava incontrolável, atormentando a vida dos humanos, espalhando o terror e a miséria.
Então Vishnu (o mantenedor da harmonia), Shiva (o que restabelece a ordem) e Lakshmi (aquela que traz prosperidade e abundância), descem de suas moradas celestiais, trajados de seus respectivos avatares: Rama, Hanuman e Sita. Eles chegam para pôr fim às aflições causadas por Ravana.
Rama casa-se com a princesa Sita após uma disputa sobre quem conseguisse entortar o arco de Shiva. Os dois passam a viver na floresta, pois Rama, um fiel seguidor do dharma (a lei da justiça e harmonia), atacado pelo egoísmo e inveja alheia, aceita os desígnios da vida, e somente decide regressar à cidade de Ayodhya para se tornar rei quando o tempo destinado à sua estadia na floresta finalizasse.
Rama e Sita viviam na floresta como se estivessem no paraíso. Até que um dia surge Supanarka, irmã de Ravana, que se encanta com Rama. Porém, Rama lhe diz que é casado e vive muito bem com sua esposa.
Tomada pela frustração e ódio, Supanarka instiga Ravana a sequestrar Sita. Eis então que, atendendo ao pedido da irmã, Ravana e seus demônios, ousadamente, levam Sita para a ilha de Lanka, o reino de Ravana. E lá Sita permaneceu à espera do resgate de Rama.
Em sua jornada épica para salvar Sita, Rama conhece Hanuman, rei de Varana, o reino dos macacos. Hanuman, o deus-macaco de enorme compleição física e perito na arte de voar, vai até Lanka. Mas Sita se nega a partir sem que os demais escravos sejam libertos.
Orientados por Rama, Hanuman e seus súditos-macacos iniciam a construção de uma ponte de pedra para ligar a Índia até à ilha de Lanka. Dá-se, então, a batalha contra Ravana e seus demônios, até que, por fim, Rama vence Ravana e salva a sua amada Sita.
A narrativa do amor romântico de Rama e Sita nos ensina sobre sabedoria, retidão, paciência. Fala sobre aceitar os caminhos que a vida impõe, seja na abundância ou na simplicidade e, assim, viver com confiança e dignidade, com a certeza de que, se permanecermos firmes na senda do dharma, tudo terá um final feliz, por maiores que sejam os desafios a enfrentar.
Mas e quanto a Hanuman? Por que o deus-macaco simboliza o modelo ideal de ser humano e conduta correta? Como já dito, de acordo com o Ramayana, Hanuman é a encarnação de Shiva, que se manifestou na Terra durante o tempo de Rama – que era a encarnação de Vishnu – para acompanha-lo em sua jornada de resgate à princesa Sita, avatar de Lakshmi. Tudo com o objetivo de restabelecer a prosperidade e a harmonia na Terra.
Quando Hanuman, o deus-macaco do hinduísmo, disfarçado de um monge mendicante, foi apresentado a Rama, dirigiu-se a ele com sabedoria, de modo discreto e cortês. Após ouvir o seu discurso, Rama imediatamente reconheceu que estava diante de alguém muito especial. O príncipe Rama, então, voltando-se a Lakshmana, seu irmão, companheiro de virtudes e guerreiro destemido, diz-lhe:
Esse é Hanuman, a quem eu procuro. Ele é eloquente e caloroso, subjugador de seus inimigos em termos corteses. Só alguém versado nos Vedas e familiarizado com seus ensinamentos, estaria habilitado a falar dessa maneira. Ele estudou gramática inteiramente, e embora ele tenha falado longamente, foi sem erros. Eu não vejo nada para ofender, seja em sua boca, seus olhos, testa, membros ou atitude. Sua fala não é carente de volume, profundidade, segurança ou distinção; sua voz emana de seu peito em tons claros modulados. Ele se expressa com felicidade admirável sem qualquer hesitação; seu tom é harmonioso e move o coração agradavelmente. Qual inimigo, tendo puxado sua espada, não seria desarmado pelo encanto dessa voz que enuncia cada sílaba tão perfeitamente? (Ramayana, Livro IV, p. 390)
Os atributos de Hanuman são destacados por Rama: estudioso, culto, hábil com as palavras, cortês, de atitude discreta, apresenta confiança sem arrogância, tom de voz tranquilo e de fácil compreensão, expressa-se com alegria e suavidade, move-se com harmonia. Eis o modelo ideal de ser humano!
A imagem representativa de Hanuman diz muito sobre a sua mitologia: o corpo humano, que representa a natureza material; a cabeça de macaco (uma referência à mente humana, irrequieta como um macaco); o semblante sereno, que simboliza o domínio dos sentidos; o olhar fixo, que é a concentração que vence a mente irrequieta; a mão apoiada no joelho, em atitude passiva, representa o autocontrole e a preservação da energia vital; a mão direita em abhaya mudra, simboliza coragem, segurança, proteção, paz e serenidade em tempos difíceis; a postura que expressa prontidão a servir, sem subserviência; e, por fim, a disposição para se elevar à natureza espiritual.
O yoga de Hanuman é o yoga da perfeita devoção. É a arte do serviço devocional; é a expressão da sabedoria da servir ao próximo, com amor e compaixão, com bondade e firmeza, sem sujeitar-se aos caprichos alheios. É a transcendência do egoísmo, rumo ao altruísmo; o triunfo da luz do conhecimento sobre as trevas da ignorância.
Para celebrar o Ramayana, há séculos comemora-se, anualmente, o Diwali ou Deepavali – o “festival das luzes”, em toda a Índia. O Diwali é celebrado no primeiro dia do mês lunar Kartika – durante a lua nova, quando as noites são mais escuras – que ocorre em outubro ou novembro. Os indianos iluminam suas casas e ruas, durante os cinco dias de festejos, celebrando, com as luzes, a bondade como superação da maldade dentro de cada um de nós.
Hari Om Tat Sat.
Esse épico concede boa fortuna e destrói toda transgressão. Seus versos devem ser recitados pelos sábios para aqueles que têm fé. Ao ouvi-lo, aquele que não tem filho obterá um filho, aquele que não tem fortuna se tornará rico; ler apenas uma linha desse poema livra-nos de todos os males. Aquele que recita o Ramayana prolonga a sua vida e será abençoado com seus filhos e netos nesse mundo e, depois da sua morte, no outro mundo
(Ramayana, Livro VII, p. 996)
Na tradição do hinduísmo, acredita-se que o Ramayana não seja apenas um conto mitológico, mas a narrativa de um evento real. Nesta imagem do Google Earth, em vermelho, está a passagem que liga o sul da Índia (à esquerda) ao Sri Lanka, conhecida como Ponte de Rama. Sua origem, conforme pesquisas realizadas em 2003, foi devido às mudanças na corrente oceânica, aproximadamente a 3500 anos atrás, ou seja, na época em que teria ocorrido a epopeia de Rama. Enfim, sedimentação natural ou uma construção ordenada por Rama e realizada pelos súditos-macacos de Hanuman?
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