A chama da vela é o símbolo visível do interior de um ser, o símbolo de um poder secreto.
(Gaston Bachelard)
Na mitologia hindu, o fogo (agni) é considerado um dos “cinco grandes elementos” (Pancha Mahabhutas) que constituem a realidade física. Os outros quatro são a água (Jala), a terra (Prithvi), o ar (Vayu) e o espaço (Akasha).
O fogo é tão importante para a tradição hindu que ele conta com dois representantes na mitologia: Surya, a divindade do Sol, considerado como fonte da vida, aquele que fornece luz e calor para o universo; e Agni, a divindade do fogo, tido como o mensageiro dos deuses, imortal e eternamente jovem – pois reaceso diariamente. Agni é a testemunha e o guardião dos “rituais de sacrifício” (Yagna).
Uma das práticas de purificação (satkarma) descritas no Hatha Yoga Pradípiká, consiste em manter os olhos fixos na chama de uma vela. Esta prática denomina-se Trataka, que, em princípio, visa a limpar o canal lacrimal e a tonificar os nervos e músculos dos olhos; além disso, desenvolve a concentração e, principalmente, serve-nos como um ritual de contemplação.
Esse post não trata de descrever os procedimentos da prática de Trataka. O que faremos aqui é breve uma aproximação do yoga com a obra poético-filosófica A chama de uma vela, de Gaston Bachelard (1884-1962), publicada, originalmente, em 1961, na França. Logo no início de sua obra, Bachelard deixa claro o seu interesse pela chama da vela. Diz ele:
A chama, dentre os objetos do mundo que nos fazem sonhar, é um dos maiores operadores de imagens. Ela nos força a imaginar. Diante dela, desde o que se sonhe e o que se percebe, não é nada comparado ao que se imagina. (...) O que se chama Vida na criação é, em todas as formas e em todos os seres, um mesmo e único espírito, uma chama única.
Para Bachelard, há algo na chama de uma vela que nos remete a um passado longínquo; temos por ela uma admiração inata, e a sua imagem determina um acentuado prazer pelo ver, um ver mais além do sempre visto; a chama nos instiga ao sonho, às lembranças e memórias mais antigas, tão antigas quanto a nossa própria origem ancestral; a chama nos força a olhar e ver além de si, alçando-nos à universalidade.
Na contemplação da chama de uma vela, revela-se a sua verticalidade: a chama de uma vela queima para o alto, sempre mais alto, pois seu objetivo é dar-nos luz; sua verticalidade, assim contemplada, evoca-nos a elevação da consciência em direção à iluminação espiritual.
Ao contemplar a chama de uma vela, percebemos que o mais leve deslocamento de ar a desestabiliza; do mesmo modo quando um pensamento estranho surge durante a meditação, agitando a nossa mente. A chama de uma vela é a medida da tranquilidade da alma.
Apesar de não ser um corpo, a chama de uma vela é forte; assim como nossa alma que, em sua sublime sutileza – pura consciência – é mais forte do que o nosso corpo feito de carne e comida.
A chama de uma vela é a companheira dos sábios que, no resplendor de sua luz, meditam solitários sobre a existência. Respirando suavemente diante da chama tranquila de uma vela, o sábio sempre permanece em serenidade e harmonia.
Contemplar a chama de uma vela, nos remete ao fogo, como elemento tanto íntimo quanto universal; pois o fogo – a centelha divina – habita o nosso coração, nos ilumina a consciência e, ao mesmo tempo, vive no céu, levando vida e calor para todos, sem acepção de pessoas.
O yoga é como a chama de uma vela: purifica-nos, nos eleva para o alto, aquece e alegra o nosso coração, traz estabilidade à mente e nos revela a luz da sabedoria.
Contemple a chama de uma vela, deixe sua consciência fluir livremente nessa imagem instigante e encontre-se com o Ser, eterno e bem-aventurado, que habita seu coração.
Hari Om Tat Sat.
“Face à realidade, o que julgamos saber claramente ofusca aquilo que deveríamos saber”
(Gaston Bachelard)
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