O indivíduo com percepção suficiente para reconhecer suas limitações é aquele que mais se aproxima da perfeição
(Johann Wolfgang von Goethe)
A prática do yoga traz muitos benefícios à saúde do corpo e da mente. De modo geral, os benefícios corporais se relacionam ao aumento da força muscular, da flexibilidade e da melhora da mobilidade como um todo, além da atuação benéfica sobre os órgãos internos. No caso da saúde mental, o yoga ameniza o estresse rotineiro, aumenta a criatividade e a produtividade e proporciona um amplo estado de bem-estar psicológico, contribuindo para que o praticante se relacione socialmente de um modo mais saudável.
Muito mais que esses benefícios, o yoga expõe os conteúdos mentais que nos condicionam a reagir, inconscientemente, às situações da vida, sempre atuando no modo “comportamento automático”. A prática do yoga mostra-nos quais os obstáculos mentais se opõem à clara percepção da realidade. E ser capaz de perceber claramente a realidade é um indício de que não estamos interpretando os acontecimentos da vida, segundo o modo como eles nos afetam, nos agradando ou desagradando, mas como eles são em si mesmos.
O yoga, portanto, estimula as nossas faculdades cognitivas, deixando nosso cérebro ágil e nossa mente atenta, conduzindo-nos a um estado psicológico onde a consciência desperta, amplia-se e aprofunda-se no conhecimento do mundo e da vida. E, no contexto do conhecimento do mundo, a percepção correta da realidade social é um dos fatores mais importantes para o nosso bem-estar físico e emocional, para nossa segurança e felicidade. Se não tivermos um correto entendimento da dinâmica social em que vivemos, somos lançados de um lado para o outro, manipulados por forças coletivas invisíveis, porém, atuantes e determinantes. Podemos denominar essas “forças invisíveis” de tradições, costumes e hábitos que geram as nossas tendências e condicionamentos.
Sem nos aprofundarmos demais no tema, pois quem trata disso com maestria é a Psicologia Social, vejamos, então, como a nossa percepção da realidade social pode ser afetada negativamente, de modo a não termos o claro entendimento do contexto e das dinâmicas da sociedade ao qual estamos inseridos. Entendendo o mundo social como o espaço representativo da movimentação de indivíduos e grupos de indivíduos, temos que considerar que esse espaço é o domínio das normas de conduta, ou seja, o modo como devemos nos expressar e comportar na sociedade. Tais normas devem ser aprendidas e praticadas para que haja um significado coletivo em cada ação individual e, ao mesmo tempo, mantenha-se uma certa coesão social.
O aprendizado das normas de conduta se faz pela introjeção de crenças e valores sociais, que, implícitas nos comportamentos, conduzem os indivíduos a agirem como um todo coletivo. Muitas normas não são formalmente expressas, porém, seja por simples gesto de imitação ou por coação disfarçada, elas penetram e se alojam no inconsciente das pessoas e ecoam na mentalidade coletiva. Os indivíduos agem seguindo essas normas, ainda que inconscientemente, e dificilmente conseguem uma ruptura com os ditames sociais, pois buscam superioridade ou afirmação, fazendo valer todas as vantagens que lhe são concedidas ou possíveis dentro do esquema e conforme o sistema. A relevância do indivíduo, portanto, está no grupo ao qual pertence, e a força do grupo está na sua representatividade social.
Assim, renunciar às normas de conduta da sociedade é perder a identidade social, o que traz enorme prejuízo. Por isso, em tempos onde a opinião é mais importante que o discernimento, a identidade social se aferra aos comportamentos coletivos, seja de pequenos ou grandes grupos sociais, cada um com suas crenças e comportamentos típicos, onde o membro sente-se seguro e acolhido, podendo exercer a sua “liberdade de opinião” e afirmando a sua identidade. A percepção da realidade social, portanto, é fundamental para que não sejamos aprisionados, mentalmente, nas armadilhas dos constructos sociais.
A percepção da realidade social passa pelo modo como formamos as nossas impressões e como fazemos inferências sobre as outras pessoas. A maioria das pessoas necessitam de confirmação social para se sentirem aprovadas e ficarem bem consigo mesmas. A comparação com outras pessoas serve de base para que o indivíduo avalie os seus pensamentos e comportamentos, o que faz das outras pessoas uma fonte de informações ao qual um indivíduo define a realidade social e nela se orienta, conforme a influência social dessas pessoas de referência.
A comparação social, entretanto, embora comum, não é o modo mais confiável para definir a realidade social e nela se orientar. Isso porque a maioria das pessoas são incapazes de uma percepção correta das condutas reais alheias, o que torna seus julgamentos imprecisos. Isso quer dizer que suas “intuições” são desprovidas de clareza mental, o que acaba por levar as pessoas a um processo tendencioso de julgamento da realidade social. Ao não perceber claramente a natureza do contexto social ao qual estão inseridas, e motivadas a confirmar suas crenças e comportamentos, as pessoas projetam, inconscientemente, nos outros as suas próprias crenças e comportamentos, atribuindo aos outros as suas próprias características.
Enquanto a comparação social motiva os indivíduos a olharem constantemente para o que os outros estão fazendo, elegendo os mais destacados como referências a serem replicadas, a projeção social, ao atribuir suas crenças e comportamentos àqueles que são suas referências comparativas, é a garantia de que seu modo de pensar e agir são legítimos e corretos. Porém, como dito, os indivíduos são pouco capazes de perceber “os fatos como eles são”, distorcendo o julgamento da realidade social, prejudicando a sua conduta pessoal e afetando a coletividade.
A busca pelo conhecimento é uma das vias do yoga. Conhecimento é o primeiro passo em direção à verdadeira liberdade. Mas o conhecimento deve ser buscado em fontes límpidas, ou seja, ele não se encontra em qualquer beco imundo. Informações, por si só, não se constituem conhecimento. Aliás, o excesso de informações que as tecnologias atuais propagam apenas embotam ainda mais a mente das pessoas. Infelizmente, muitas dessas informações são falácias; parece que há um “acordo” em que mentir e enganar são caminhos válidos para o sucesso. Deturpar, cancelar, denegrir – não importam os termos, pois uma nuvem muito escura paira sobre as nossas cabeças. Como poucas pessoas buscam a verdade das informações, a mentira, repetida reiteradamente, acaba por penetrar no inconsciente e torna-se uma “verdade”.
Essas “verdades” inculcadas se constituem em um atalho mental que se forma a partir dos padrões cognitivos originados de nossas experiências e percepções. Quando um padrão de comportamento se estabelece em nossa mente, não somos mais capazes de pensar: apenas fazemos escolhas de acordo com esse padrão, pois os atalhos mentais nos dão a resposta imediata para as nossas reações irracionais. Irracionais no sentido de que nossas escolhas não foram feitas a partir de respostas originadas de uma reflexão.
Essas tendências cognitivas distorcem a percepção da realidade, pois ocorrem erros no processamento das informações, que nos fazem interpretar o mundo ao nosso redor de um modo simplificado – é como se as “regras” de como entender o mundo e responder aos seus estímulos estivessem fixadas em nossa mente. Ou seja, nossas tomadas de decisões são afetadas por esse conjunto de normas e valores internos, estabelecidos pelas informações provenientes da qualidade das nossas experiências e do tipo de conhecimento que temos da vida como um todo. O impacto das tendências cognitivas alcança várias áreas da nossa vida, lançando uma sombra sobre elas, incluindo o nosso comportamento social, nosso modo de aprender, nossos interesses pessoais, nossa saúde, nossas escolhas financeiras, profissionais, políticas, afetivas, etc.
Como podemos saber se um padrão de comportamento foi fixado em nossa mente? Vejamos alguns sinais dessas tendências cognitivas:
apenas nos interessamos por informações que confirmem a nossa opinião sobre um assunto que já está estabelecido em nossos pensamentos; ou seja, não nos interessamos por nada que nos faça pensar, mas apenas por aquilo que reforça os pensamentos que temos;
responsabilizamos sempre os fatores externos quando as coisas não acontecem do modo que queríamos; ou seja, não conseguimos avaliar se as nossas reações e comportamentos foram a causa de não termos alcançado o que queríamos, mas apenas lançamos a culpa aos outros e às circunstâncias;
acreditamos, sem nenhuma dúvida, de que todos à nossa volta acreditam nas mesmas coisas que acreditamos; ou seja, quando um padrão se estabelece, a tendência inevitável é acreditar que todos compartilham das mesmas crenças e opiniões que nós, e quando nos deparamos com pessoas que se mostram abertamente contrárias, um confronto se estabelece, podendo descambar em conflitos trágicos; é como se um “alerta” fosse acionado pela mente, para defendermos “quem somos, legitimamente”;
dizemos que os outros alcançam o sucesso porque têm sorte, foram ajudados ou até se corromperam; ao contrário de nossas realizações, que são legítimas, acima de qualquer suspeita, originadas do nosso esforço pessoal, nossa coragem, inteligência e até auxílio divino – afinal, somos pessoas “do bem” e merecemos que “alguém lá em cima” esteja olhando por nós;
lemos algumas linhas e aprendemos algo superficial sobre algum tema e, automaticamente, já nos consideramos experts no assunto, e não há mais nada para saber, a não ser o que está escrito, preferencialmente, nos encaminhamentos do WhatsApp...
Enfim, esses foram alguns exemplos de como nosso comportamento está viciado. Acreditamos, piamente, que nossas escolhas são objetivas, frutos da excelência da nossa racionalidade inconteste, e que somos capazes de dar conta de todas as informações que nos abarrotam diariamente. Porém, tudo não passa de uma ilusão, pois a nossa capacidade de discernimento foi abolida da nossa mente. Somente temos pensamentos e sentimentos, mas não mais a habilidade de pensar ou sentir. Tudo foi congelado, tudo está estagnado: pensamentos e sentimentos foram cristalizados e transformados em enrijecidos comportamentos típicos.
O fato é que essas tendências são tão graves que chegam ao ponto de que ignoramos que somos ignorantes. Ou seja, é difícil para uma pessoa incompetente reconhecer a própria incompetência, pois a falta de competência é acompanhada da ignorância dessa falta. Essas inclinações comportamentais ou disposições mentais, se manifestam em tudo o que fazemos, tornando-se em erros sistemáticos, pois se trata de uma falha em nosso sistema operacional de processar informações, provocada pela “ingestão de alimentos” não saudáveis.
Entendamos isso: as informações, para a mente, são como os alimentos que ingerimos para o nosso corpo. Se nos alimentamos mal, nosso corpo padece; o mesmo é válido para a mente: nem todas as informações são saudáveis. Por isso a fonte do conhecimento deve ser cristalina. O que nos faz ser quem somos, é a qualidade do que entra e como é processado; o que sai, é apenas o resultado, o produto final.
A percepção da realidade social, portanto, é afetada drasticamente quando os modos operacionais dos indivíduos foram comprometidos pelas falhas no sistema de processamento. O efeito do falso consenso é um fenômeno comum que afeta as pessoas. Muitas pessoas acreditam que a população, em geral, tem as mesmas opiniões e crenças que elas, quando, em realidade, as opiniões e crenças são muito divergentes. No caso da coletividade, uma ignorância pluralística se faz perceber quando todos concordam com uma opinião ou norma publicamente, porém, em particular, não aprovam.
Esses dois fenômenos impactam na percepção da realidade social. Vejamos um exemplo dessas duas situações: uma pessoa consome alguma droga ilícita, pois acredita que seus colegas também fazem o mesmo. Entretanto, na realidade, seus colegas preferem não consumir a droga, mesmo consumindo, porém, não expressam publicamente o seu desagrado por terem receio de serem ridicularizados. Ou seja, não apoio algo particularmente, porém, me comprometo publicamente a agir como os demais, pois acredito que esse comportamento é unânime e deve me proporcionar algo de bom. Assim, muitas pessoas se conformam com a norma consensual de um grupo social, ao invés de pensar e agir por si mesmos, de acordo com suas próprias perspectivas e vontade.
Por outro lado, uma pessoa acredita que seus colegas não consomem drogas ilícitas, mas, em realidade, eles consomem e falam abertamente que consomem. O fenômeno do falso consenso é importante para entendermos as interações sociais que ocorrem cotidianamente. Como dito, as pessoas tendem a acreditar que suas opiniões, crenças e julgamentos são compartilhados pela maioria. Quando isso se mostra como algo preciso, as pessoas sentem segurança em suas decisões e acreditam que estão do “lado certo”. As transações comerciais e as decisões políticas ou afetivas, por exemplo, são muito influenciadas pelo falso consenso.
Assim, para se convencer uma pessoa a fazer o que ela não quer, basta “quebrar” o que ela acredita que os outros pensam. Por exemplo, se uma pessoa tem dúvidas sobre qual carro deve comprar, que marca de produto deve utilizar ou qual candidato deve votar para presidente do país, essas dúvidas serão transformadas em certezas (“compre esse carro”, “use tal marca”, “vote nesse candidato”), apenas convencendo-a de que outras pessoas, “tão importantes quanto ela”, compraram tal carro, usam tal marca e votarão em tal candidato. O indivíduo, então, com a percepção da realidade social prejudicada, reage instintivamente, comportando-se conforme essas “certezas desse consenso”. Comprar o tal carro, usar a tal marca, votar em tal candidato – acreditando que todos compartilham da mesma opinião consensual – gera a sensação de confiança e nos faz crer que outros, em nosso lugar, tomaria as mesmas decisões que tomamos. E desconsideramos qualquer opinião que seja contrária.
O que o yoga pode fazer para nos livrar dessas imperfeições cognitivas que nos levam ao desvirtuamento da percepção da realidade social? O yoga nos conduz à clareza mental, restabelecendo o processamento das informações no cérebro a um nível salutar. Aprendemos, com a prática do yoga, a perceber claramente que pensamentos e sentimentos são distintos do pensar e do sentir. Pensamentos e sentimentos são energias estagnadas; pensar e sentir é o fluir natural da energia vitalizante. Pensamentos e sentimentos somente se sustêm quando nos identificamos com eles; quando isso acontece, eles nos enredam, nos arrastam.
O pensar e o sentir se fazem no momento presente; eles têm o sabor, o aroma e as cores vivas do presente. Os pensamentos e os sentimentos, cristalizados pelo tempo, perdem o seu colorido, o seu sabor, o seu aroma; tornam-se rançosos e nos impedem de avançar. Eles apenas poluem a nossa mente, embotam os sentidos, afetam as percepções. O que o yoga nos faz é purificar a mente desses agentes degradantes, que são os pensamentos e sentimentos que limitam nossas capacidades cognitivas e atrofiam nossas habilidades mentais.
O yoga nos restitui o pensar e o sentir espontâneos, tão importantes para a expressão da nossa individualidade. Afinal, quando o indivíduo percebe claramente onde ele está e porque faz o que está fazendo do modo como faz, a ruptura com a mentalidade coletiva é inevitável; ele deixa de ser manipulado pelas “forças invisíveis” que movem os grupos sociais, e fica livre das influências das gratificações sociais para seguir o seu caminho com alegria e confiança de que suas escolhas, de fato, são genuínas.
A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê. (William Blake)
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