Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro
(O Espelho, Machado de Assis)
Em 1882, no Rio de Janeiro, na edição de 8 de setembro do jornal Gazeta de Notícias, foi publicado um conto de relevante interesse ao yoga. O autor desse conto, intitulado O Espelho, foi Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), considerado como um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.
Não há registros históricos – pelo menos que seja do meu conhecimento – que o célebre escritor brasileiro tenha tido algum contato com os ensinamentos da tradição do yoga. Todavia, isso não é relevante; o que importa é sua perspicácia ao tratar de um tema – a crítica ao materialismo de sua época – por meio de uma obra ao mesmo tempo cômica, porém, de caráter metafísico, filosófico e de profunda reflexão.
Podemos dizer que O Espelho é uma obra clássica. Um clássico se caracteriza por tratar de uma questão que incomoda uma pessoa em particular; ao refletir sobre essa questão em seu íntimo e externalizar suas elucubrações a respeito, o autor leva ao conhecimento do público as suas considerações sobre o tema ao qual se debruçou intelectualmente.
O público, ao se deparar com as considerações particulares do autor, imediatamente se vê, se percebe, se encontra nelas. Assim, uma questão particular ganha o espaço, pois se trata, na verdade, de uma referência universal, onde pessoas de qualquer lugar ou época, ao entrar em contato com a obra, se reconhecem no tema ali tratado.
O Espelho, de Machado de Assis, tem essa característica. Uma particularidade que reflete uma universalidade e, por assim dizer, torna-se uma singularidade, isto é, algo que somente e tão somente o autor da obra seria capaz de produzir, e mais ninguém. O Espelho, portanto, é uma dessas obras clássicas, que além de ganhar o espaço, se eterniza no tempo histórico.
Mas, afinal, qual a trama desse conto e o que isso tem a ver com yoga? O enredo é narrado pela personagem principal, Jacobina, um sujeito obstinado, que participava de uma discussão com outros colegas, sobre questões de ordem metafísica. O turrão Jacobina não era dado a filosofar, pois considerava isso uma perda de tempo, coisa de gente provinciana.
A discussão seguia firme, enquanto Jacobina apenas permanecia calado, às vezes balbuciando algo, apático em seu canto. Até o momento em que os colegas exigiram dele um posicionamento a respeito dos assuntos ali discutidos. Eles queriam saber de Jacobina, o que ele tinha a dizer sobre a alma humana.
Jacobina, intransigente como era, disse que daria o seu parecer, desde que todos permanecessem em silêncio, apenas ouvindo o que ele teria a dizer. Ele, então, inicia seu discurso, dizendo que não temos uma alma, mas duas: uma alma interior e uma alma exterior. Essa alma exterior, para Jacobina, é suscetível às mudanças, conforme nossos gostos e tendências se modificam.
A alma exterior pode ser qualquer coisa: um objeto, uma pessoa, uma circunstância, um livro, a pátria, a família, a liberdade, um animal de estimação, um par de sapatos, um botão de camisa, uma música, enfim, qualquer coisa mesmo; trata-se de coisas que são exteriores à pessoa e às quais ela deposita seu apego. Jacobina afirma que essa alma exterior complementa, de algum modo, a alma interior, transmitindo vida ao indivíduo; é como uma laranja partida ao meio: cada metade representa uma alma e perder uma delas é perder, naturalmente, metade da existência.
Continuando seu discurso, Jacobina diz que, em muitos casos, ao se perder a alma exterior, a pessoa perde toda a sua existência. Em seu entendimento, esta alma exterior confere algum sentido e significado à existência individual, ainda que superficial, e cita, como exemplo, Shylock, o judeu comerciante, personagem da obra de William Shakespeare, O mercador de Veneza (1598). Ao perder seus ducados (moeda corrente da época), ele diz: “Nunca mais verei o meu ouro... é como um punhal enterrado em meu coração”. A perda de seu dinheiro representava para Shylock a própria morte.
A alma exterior, como dito por Jacobina, é mutável, sofre variações conforme os ventos de nossos interesses momentâneos sopram daqui pra lá ou de lá para cá. Todavia, quando o apego a essa alma exterior é demasiado, a vida da pessoa se transforma a tal ponto que ela apenas se reconhece na imagem dessa alma exterior. Jacobina diz que essa transformação anula a alma interior, desequilibrando a natureza do ser humano.
Jacobina cita o seu próprio exemplo: ele tornara-se um alferes e, esse fato, dotou-o de tamanha distinção entre seus familiares e amigos, que todos os elogiavam efusivamente. De repetente, tornou-se uma pessoa bonita, importante, afamado, bem-visto pela sociedade. Se apegou a tal ponto a essa alma exterior – sua condição de alferes – que ele afirma que o “alferes eliminou o homem”. Ou seja, a sua alma exterior relegou sua essência – sua alma interior – a uma parte mínima e praticamente insignificante.
Ele continua dizendo que, antes, sua alma exterior era “o sol, o ar, o campo, as flores, os olhos das moças” e que, agora, eram a cortesia, as lisonjas e tudo o que dizia respeito ao seu posto de alferes, nada do que lhe dizia respeito à sua essência; o que lhe restara de humanidade estava associado ao exercício de sua patente militar; a alma interior, havia se dispersado no ar, e jazia esquecida no passado.
Jacobina afirma que a consciência de si mesmo – de sua alma interior – se apagara; dores e alegrias humanas já não lhe tocavam mais. Ele era, definitivamente, outra pessoa; uma pessoa apossada pela alma exterior. Ele era, definitiva e exclusivamente, não mais um ser humano, mas um alferes!
Quando foi que Jacobina percebeu essa transformação radical em sua personalidade? Em uma certa circunstância, ele ficou sozinho na fazenda onde morava. Seus parentes tiveram que passar um tempo fora para resolver questões particulares. Os escravos, então, aproveitaram para fugir. Eis que Jacobina, sem ninguém para bajulá-lo, sentiu a pressão das quatro paredes se agigantando contra ele. Parecia estar em um cárcere.
Sozinho, sem os bajuladores e toda a afeição que lhe devotavam, ele percebeu que sua alma exterior se apequenava dia-a-dia. O alferes o dominava, ainda que sem a mesma intensidade de antes, o que lhe perturbava a consciência: a alma exterior parecia fugir de si.
Certo dia, diante do espelho, não conseguiu se enxergar; via apenas contornos embaçados de si mesmo. Foi quando, subitamente, teve a ideia de vestir a farda de alferes: Voilà! A alma exterior, quase perdida, estava de volta, com todo vigor, pompa e circunstância! Jacobina, em estágio egóico avançado, apenas era capaz de se reconhecer no espelho com sua farda de alferes, onde podia exaltar a imagem exterior de si mesmo.
Ao analisarmos o comportamento de Jacobina pela perspectiva sociológica, tendo como referência a obra de Erwin Goffman, A representação do Eu na vida cotidiana (1959), nos convida a refletir sobre as interações face a face e como vida social se desenrola em cenários e gestuais típicos de um teatro. Assim, podemos dizer que, à luz da teoria de Goffman, o papel social exercido pela personagem levou-o à uma percepção errada dele mesmo, isto é, confundindo sua aparência, exterior e fugaz, com a sua natureza mais íntima, sua essência, sua "alma interior". Assim, ele tornara-se alferes em tempo integral!
É como se uma função social qualquer – médico, advogado, policial, pai, mãe, político, professor, etc. – se apossasse da alma do indivíduo e ele passasse, então, a representar vinte e quatro horas por dia, o papel social designado pela sociedade. Sem perceber, ele estaria desorientado entre aquilo que ele representa socialmente, com aquilo que ele é, em sua essência.
O papel social pode impactar de tal modo a consciência do indivíduo que ele acredita ser a função social que apenas deve cumprir com dignidade; há casos onde a alma exterior corrompe o "mundo interior" e, a depender das circunstâncias, o indivíduo e sua persona tentam tirar proveito próprio disso; e esta alma exterior grita tão alto suas exigências a ponto de quase anular, por completo, a alma interior.
Outra análise pode ser feita a partir de teorias mais recentes sobre o narcisismo, como as descritas em obras como A cultura do narcisismo (1979), de Christopher Lasch, e Narcisismo e transformação do caráter (1982), de Nathan Schwartz-Salant, podemos falar de uma personalidade histriônica, que se reflete em comportamentos teatrais, levando o indivíduo se perder no labirinto de suas fábulas, invencionices e personagens.
Apartado de sua essência, quando um indivíduo se olha no espelho ele apenas consegue se reconhecer em sua própria representação teatral. O atual aparato das tecnologias da informação contribuem, e muito, para que ele não entre em desespero: é nas redes sociais, no mundo virtual, que ele inventa o seu perfil – sua alma exterior – e a ela dedica o máximo de seu tempo e atenção. Em suma, tudo não passa de expansão do ego, de um “falso eu” que domina, coage, subjuga e, por fim, é destituído e levado pela morte.
Machado de Assis, com O Espelho, se aproxima muito das questões mais relevantes do yoga. Na tradição dos ensinamentos do Vedanta, inscritos nos Upanishads, no Bhagavad Gita, no Brahma Sutras, o ser humano é uma configuração, assim podemos dizer, de uma alma interior – imutável, real, verdadeira, sua própria essência divina – e um aspecto material, que podemos associar a essa alma exterior – tudo aquilo que é mutável, que se transforma pelo nossos desejos e interesses do ego, que não perdura no tempo, algo que não tem realidade em si mesmo, uma ilusão.
Quem persegue as ilusões da vida, quem se entrega e dedica o precioso tempo aos caprichos e anseios dessa alma exterior e sua imensa variedade e multiplicidade de interesses, formas e nomes, se perde no mundo da matéria, pois sua consciência se aferra ao “mundo exterior” e todas às suas dualidades que causam sofrimento psíquico e dor física.
O yoga nos exorta a voltar a consciência àquilo que somos, em nosso mais íntimo. É no “mundo interior” que encontramos tudo aquilo que buscamos fora. A alma interior é plena em si mesmo, pois ela é o reflexo da luz divina que emana do Ser Supremo, iluminando toda a nossa existência; essa alma interior, eterna e imortal, quando desperta, é a própria Consciência Universal, plena de harmonia, paz, amor e bem-aventuranças infinitas.
Em suma, o que o yoga nos ensina (e Machado de Assis!), é que essa alma interior é a voz do silêncio que nos conduz em segurança pelo caminho da bem-aventurança; e a alma exterior é o ruído agitado que nos arrasta cada vez mais longe da paz, do amor, da harmonia e da felicidade. Jacobina que nos diga!
Hari Om Tat Sat.
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