Cada estágio da história é um momento necessário da ideia do espírito do tempo.
(Georg W.F. Hegel)
Foi no século XVIII que o filósofo Johann Gottfried Herder introduziu o termo Zeitgeist no vocabulário dos filósofos do movimento Romântico na Alemanha. Zeitgeist é uma palavra que traduz o latim genius seculi ou “espírito guardião do século”.
Em essência, Zeitgeist significa “espírito do tempo”, ou seja, um conjunto de ideias e práticas que se disseminam em uma sociedade, caracterizando, genericamente, um determinado período do tempo histórico.
Trata-se, logo, de um consenso social que determina padrões de comportamento, estabelece valores a serem seguidos, seja de modo espontâneo ou coercivo, e que se impõe como a síntese do que é certo ou errado pensar ou fazer.
Embora Herder tenha cunhado o termo, foi outro filósofo alemão, Georg W. F. Hegel, quem o tornou mais conhecido. O “espírito do tempo” é o conceito que reforça a existência de um clima cultural e intelectual que paira dominante sobre a atmosfera global. Ele diz respeito sobre a época em que vivemos, o que buscamos, em que acreditamos, e porque fazemos o que fazemos.
Zeitgeist abrange não apenas uma pequena localidade, porém, todo o mundo, consistindo em um fenômeno global. Ou seja, o que se vive, se busca, se acredita e se faz em qualquer pequena cidade, também se vive, se busca, se acredita e se faz em qualquer metrópole do planeta. As características do “espírito do tempo” são genéricas, e a tudo e a todos envolve.
Como podemos constatar tal fenômeno? É simples. Basta observarmos o que ocorre na sociedade e identificar os seus sinais: dos livros mais vendidos às músicas mais tocadas, dos produtos que mais se vendem nas prateleiras dos mercados ao tipo de vestuário exposto nas vitrines das lojas, dos programas prevalecentes na TV aos temas predominantes abordados nas mídias virtuais, do modo de exercer a política ao modo como se transmite o conhecimento, do que prevalece na educação ao que predomina na religião. Eis os “sinais dos tempos” a proliferarem em toda parte, em todo lugar.
O “espírito do tempo” emerge a partir de um emaranhado de narrativas, atitudes e comportamentos. Narrativa é uma exposição de acontecimentos, mais ou menos encadeados, sejam reais ou imaginários, contados por meio de palavras ou imagens. Narrativas não necessitam de testemunhas, são apenas declarações, discursos, anúncios e manifestações. Para Hegel, a arte revelava o “espírito do tempo”, pois ela era capaz de capturá-lo em sua essência.
Hegel acreditava que o mundo podia ser conhecido em sua totalidade, pelo exercício da razão. Por meio da especulação filosófica, podemos, em algum momento, desvendar o mistério da vida. Mas a razão, conforme Hegel, não pode nos dar, de imediato, a verdade da realidade. Há, pois, um longo percurso a seguir, cujo jornada se inicia a partir da consciência de si mesmo e da consciência do seu mundo. Perceber-se como sujeito do mundo é o primeiro passo para perceber o mundo como objeto de conhecimento.
Entretanto, para Hegel, essa consciência é equivocada, pois considera como verdade tudo aquilo que se apresenta à percepção sensível. Ou seja, os sentidos nos enganam e, somente por meio da experiência no mundo é que a razão ampliará o seu conhecimento. Nos despojamos de antigas certezas quando exercitamos a nossa capacidade de reflexão. E esse se constitui o movimento da razão: da percepção sensível para a reflexão filosófica, destruindo e construindo a realidade, sucessivamente, numa dialética quase sem fim, até alcançarmos, no que nos for possível intelectualmente, a verdade e a realidade.
O “espírito do tempo”, que paira sobre nós atualmente, aponta que estamos nos entregando vorazmente aos vícios de uma realidade cada vez mais virtual. A tecnologia, que deveria ser um bem para a humanidade, está nos causando muitos males, pelos usos incorretos e abusos. Aquilo que nos proporciona conforto e conveniência, está ameaçando a vida no planeta. A saúde mental de milhões de pessoas está se deteriorando pela exposição exacerbada às tecnologias. O corpo físico se enfraquece e definha sob o império das realidades virtuais, pois crianças e adolescentes, hipnotizados em frente a uma tela, não sabem mais o que é atividade física.
Há tantas informações sobre tantas e diversas coisas, que muitos não conseguem distinguir entre fatos e fake news; milhões de pessoas se perdem nos labirintos infinitos da desinformação e da precariedade do discernimento. Tudo isso, simplesmente, porque não estamos agindo conscientemente; o “espírito do tempo” nos arrasta com ele, pois estamos agindo compulsivamente.
A compulsividade é um transtorno emocional, cuja característica, é a repetição constante de hábitos específicos (por exemplo, estar agarrado ao smartphone em tudo o que faz, para onde quer que vá). A pessoa compulsiva, não percebe o prejuízo que causa a si mesmo e àqueles que estão com ela. Recorrer excessivamente aos toques do WhatsApp, traz alívio à ansiedade, porém, gera ainda mais ansiedade quando a expectativa não é correspondida.
O mesmo “espírito do tempo”, entretanto, nos mostra outras coisas. Em meio à toda efervescência tecnológica, também são muitas as pessoas que despertaram para o perigo da compulsividade. Muitos estão buscando a espiritualidade e tentando retornar para uma vida mais simples e livre de tantas tecnologias; isso é um indício de que algo poderá mudar no futuro, talvez, no sentido de que aprenderemos a utilizar a tecnologia, sem que ela se aproprie de nós e destrua a nossa vida.
Se estivermos atentos ao Zeitgeist de nossa época, teremos uma oportunidade de escaparmos de seus efeitos deletérios sobre o corpo e a mente. O yoga nos ensina que podemos ir cada vez mais fundo na aquisição do conhecimento, na busca pela verdade e a realidade. Se o filósofo Hegel acreditava na razão e na reflexão filosófica como únicos aliados para o alcance do conhecimento da realidade, o yoga vai mais além.
No yoga, Svãdhyãya é a prática do estudo, da reflexão filosófica e da contemplação. Estudar o Bhagavad Gita, por exemplo, e estar receptivo, de “mente aberta” aos seus ensinamentos, é estar disposto a compreender a si mesmo e a própria existência em sua aparência e contradições; a consciência se eleva e se amplia. Porém, quando passamos da reflexão filosófica para a contemplação, a consciência se ilumina e se aprofunda, e a existência se revela em sua essência e totalidade: serenidade e harmonia.
Para quem tem “olhos de ver e ouvido de ouvir”, Zeitgeist está nos alertando para que sigamos pelo caminho do conhecimento e da espiritualidade. Mas, para os desavisados e distraídos, o “espírito do tempo” os arrastará por outras veredas.
Hari Om Tat Sat.
Assim como um cego de visão não pode ver o sol que ilumina o mundo inteiro, o cego de compreensão não pode perceber a Presença Suprema que cerca todo o universo (Uttara Gita)
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