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Foto do escritorMarcelo Augusti

OS TRÊS NÍVEIS DA EXPERIÊNCIA E A CONSCIÊNCIA SUPREMA



Em todos os momentos, a divindade está igualmente presente em tudo. Essa divindade é o nosso verdadeiro Ser, a essência que subjaz à realidade. Podemos desistir de tudo que nos é extrínseco, mas nunca da essência da nossa existência. Todos, sem exceção, algum dia irão vivenciar, em seu interior, a presença desse Ser em infinito esplendor. Nisso consiste a realização Divina, a meta inevitável do humano (Swami Bhaskarananda)



Os escritos do Kaivalya Upanishad tratam da revelação da divindade que habita o “mundo interior” de cada indivíduo. Esta divindade é o Ser (atman), a essência espiritual de tudo o que existe; esta divindade é a Consciência Infinita (brahman), que permeia o Universo.


Este upanishad é assim chamado porque ensina os meios pelos quais o indivíduo, em sua consciência limitada pelos sentidos, pode emancipar-se completamente e se libertar da influência da matéria (gunas) e, por consequência, dos ciclos sem fim das transmigrações.


A raiz do sofrimento e das dualidades que aprisionam a mente e nos devastam a vida é a ignorância (avidya) acerca de nossa essência espiritual. É o autoconhecimento que nos liberta, removendo todas as ilusões da dualidade e dissipando o sofrimento.


A palavra upanishad tem o sentido exato disso: autoconhecimento. Segundo um renomado mestre dos nossos tempos, Swami Dayananda, upa significa “aquilo que está próximo”; ni, “aquilo que é exato”; e sad apresenta dois significados: “pôr um fim” (avasadanam) e “alcançar” (gamanam).


Upanishad ou autoconhecimento, portanto, é “alcançar, exatamente, aquilo que está próximo”. E o que está mais próximo de nós, exatamente, é a nossa essência, é atman; pois é esse atman que temos que “alcançar”, ou melhor, que se revelará por meio do estudo, da reflexão e da meditação.


Kaivalya significa “separar”, “libertar”. Nos Sutras, afirma Patanjali:  

 

Purusartha-sunyanam gunanam pratiprasavah kaivalyam svarupa-pratistha va citi-saktir iti

(Yoga Sutras, IV, 34)

 

O que podemos traduzir como: para além dos objetivos da vida terrena (Purusartha-sunyanam), separe-se (kaivalya) da natureza material e sua influência (gunanam pratiprasavah), e se estabeleça em sua natureza original (svarupa-pratistha), que é Consciência Ilimitada (citi-sakti).


Os escritos de Kaivalya Upanishad, nos ensinam, basicamente, que a meta maior da vida terrena é conhecer atman (Consciência Ilimitada, a nossa essência), superar as dualidades e, por consequência, nos libertarmos do apego à impermanência da vida e o medo da morte (abhinivesa, instinto de sobrevivência, principal causa do sofrimento).


Conhecer atman é a realização mais elevada que se pode alcançar na vida terrena, pois este é o conhecimento que conduz ao Divino. Este atman está envolto pelos invólucros dos corpos físico, mental e energético. Em tal condição, atman é o "indivíduo terreno" ou jiva-atman. Embora imutável, ilimitado e eterno, atman aguarda, serenamente, pela liberação da natureza material.


A natureza material age sobre o corpo, a mente e a energia, desgastando-os, deteriorando-os e, por fim, destruindo o corpo, extinguindo a mente e dissipando a energia. Assim, a vida de um indivíduo terreno chega ao termo derradeiro, ao cumprir seu destino.


O que permanece, após a vida material do jiva ("aquele que nasce e morre") chegar ao final, é atman, aquele que é sem início, meio e fim, “não manifesto aos sentidos, além de todo pensamento, infinito na forma; para sempre tranquilo, todo bem-aventurança, fonte de suprema sabedoria, a testemunha de tudo” (Kaivalya Upanishad).


Este atman, "espírito encarnado", está oculto na "matéria manifesta", devido à obscuridade do discernimento do jiva. Este jiva-atman, esquecido de sua natureza original, experiencia a realidade em três níveis de existência: a vigília (jagrat /vaisvanara), quando parece agir e desfrutar da vida “do mundo exterior” e sujeita-se às suas consequências; os sonhos (svapna / taijasa), quando experimenta alegrias, medos e tristezas em suas fantasias “do mundo interior”; e o sono profundo (susupta / prajña), quando nada sente, experimenta ou percebe, tanto do “mundo exterior” quando do “mundo interior”.


O Mandukya Upanishad também descreve esses três níveis de experiência da existência. Mandukya significa “dificuldades que trazem angústia à existência”. Se tais dificuldades não forem superadas, pela correta compreensão de suas causas, o indivíduo terreno – jiva-atman – estará imerso em sofrimento. Portanto, compreender os três níveis de experiência da existência, é fundamental para libertar-se do sofrimento.


No estado de vigília, jiva-atman depende das impressões do “mundo exterior” que chegam, pelo corpo físico e seus sentidos sensoriais (sthula-sarira), à percepção mental para experienciar a existência. Ele é vaisvanara, isto é, o “ser cósmico manifestado” a vivenciar os fenômenos do mundo físico.


Este jagrat-vaisvanara é o nível de experiência onde o indivíduo acredita estar “acordado”. Entretanto, como os sentidos sensoriais (seus instrumentos para experienciar o mundo físico), não alcançam a “verdade da realidade”, jiva-atman vivencia apenas a “ilusão da realidade” (maya).


No estado de sonhos, jiva-atman experiencia o “mundo interior”, suas sutilezas e fenômenos. Nesse nível de experiência da existência, ele é taijasa, isto é, o “ser luminoso” que vivencia a realidade pela sua mente, que é seu “corpo de luz” ou corpo sutil (suksma-sarira).


A realidade experienciada por svapna-taijasa é o “universo onírico”, onde o indivíduo acredita estar “dormindo” e a mente, com todo o seu poder criativo, projeta seus próprios “mundos e realidades” a partir de fantasias ou memórias e impressões acumuladas do “mundo exterior”.


Esses dois níveis de experiência da existência provocam grande confusão no jiva-atman. Na vigília, a impressão de “estar acordado” lhe dá a falsa certeza de que “isto é real”, pois que tudo é muito concreto e palpável e lhe “pega na carne”. Nos sonhos, a impressão de “estar dormindo” lhe confere o equívoco de que “isto não é real”. Entretanto, nos sonhos, tudo também parece muito concreto, palpável e que “pega na carne”.


Tanto na vigília quanto nos sonhos, o que se vivencia é apenas nome e forma (namarupa); tanto vaisvanara quanto taijasa são estimulados pelas sensações do corpo e pela imaginação da mente, que não revelam a verdade da realidade ao jiva-atman. Assim, nesses dois níveis – jagrat e svapna – estar acordado ou dormindo, a experiência da realidade é a mesma: ilusão.


Prajña, o terceiro nível de experiência da realidade, é o refúgio do atman, o espaço sagrado onde todas as aflições se extinguem e a energia do jiva é renovada para o próximo dia. O sono profundo é o estado de “corpo inerte e mente desligada”, onde imperam o silêncio e a inação; é um estado inconsciente de total recolhimento em si mesmo, sem distrações internas ou externas.


Em susupta-prajña não há desejos ou aversões, não há nenhum objeto a ser experienciado, nenhuma circunstância a ser vivenciada, não há fantasias, ideias ou imaginação. Trata-se de uma experiência unificada e indiferenciada, a morada da bem-aventurança e da sabedoria; é o caminho que leva ao conhecimento dos outros dois níveis de experiência da realidade e suas ilusões, um estado sutil de existência física.


Sobre isto, diz a Chandogya Upanishad:

 

Aquele que está nas profundezas do sono, esse é o atman. Ele é o imortal, aquele que se encontra em estado de sono profundo, aquele que não tem experiência de qualquer tipo, não é afetado por nada, por nenhum sentimento. O estado de sono profundo é um estado de liberdade de todas as turbulências, tanto físicas quanto psíquicas que se experiencia nos estados de vigília e de sonho (Ch.Up. XI, 1).

 

Corpo e mente, vigília e sonho, são manifestações de um nível da realidade do atman. Corpo e mente são receptáculos transitórios do atman imortal. Atman manifesta sua existência por meio das funções do corpo e mente, e experiencia a “realidade mutável” – as dualidades da existência fenomênica – ao nível da vigília e do sonho.


Mas atman não é idêntico ao corpo e a mente, e às suas funções; tampouco se ele revela na vigília ou no sonho. Entretanto, corpo e mente são os veículos para jiva prosseguir em direção ao atman. Mas como alcançar atman no sono profundo? Como adentrar em seu refúgio sagrado? A experiência da “vida finita” do jiva é incompatível com a existência imortal do atman.


Para além desses três níveis de experiência da realidade, há algo mais. Denominado Turiya, é a única Realidade; é o que permeia todos os três níveis de experiência, é o substrato de tudo o que existe. Enquanto a vigília, o sonho e o sonho profundo são fenômenos passageiros, pois que estão interligados aos invólucros físico, mental e energético do jiva-atman, este turiya – a Consciência Infinita – é o próprio Ser, a Realidade ao qual tudo se assenta.


Turiya não é experiência da existência, nem externa e nem interna, tampouco espaço indiferenciado. Turiya é a Existência em si, não percebida, não relacionável com nada, incognoscível, inimaginável, indescritível. Turiya é a essência primordial, isto é, a Consciência Pura, sem forma, livre de aparência e dualidade; é paz infinita, bem-aventurança absoluta.


Turiya é o atman imanifesto – o Supremo Brahman – aquilo que deve ser realizado pelo mais elevado autoconhecimento. Esta Consciência Pura, se podemos comparar a algo, é como o ar: incorpórea, não se encontra em um lugar particular, mas está em todos os lugares, não se vincula a nada, circula livremente. Como escrito na Kaivalya Upanishad:

 

Nos três níveis da experiência, tudo o que aparece como objeto de desfrute, ou como o apreciador, ou como satisfação – Eu sou diferente deles; sou a testemunha (shaksin), a pura consciência, o eterno Bem-aventurado (Shiva). (Kaivalya Upanishad 18).

 

Quando se realiza o Ser, que é luminosidade suprema (param jyoti), os três níveis anteriores perdem a serventia. Imersos na vigília, nos sonhos e no sono profundo, não despertamos para a verdade de quem somos. Somos apenas como fantoches, vagando por aí, controlados por cordas que são manuseadas por “alguém” que, embora “sejamos nós mesmos”, não conseguimos compreender a existência.


Nos três níveis anteriores, portanto, permanecemos aprisionados ao samsara. A liberdade consiste em livrar-se das sujeições ao “mundo externo” e ao “mundo interno”, e das noções de corpo, mente, ego, vida, morte. O atman que se revela em turiya é impessoal e universal, é o Supremo Ser, aquele que transcende o perecível e o imperecível.


A “experiência da realidade” nos aprisiona pela necessidade que temos de “repetir o que satisfaz” ou de sempre ir em busca de experiências novas e melhores, e que engrandeçam o nosso ego. Acreditamos, equivocadamente, que o objetivo da vida é acumular experiências, de preferência, que sejam intensas e profundas. Esse ciclo torna-se sem fim, pois a “experiência da realidade” é inesgotável e, com toda certeza, serve muito bem para alimentar nosso Instagram.


É certo que experiências geram conhecimento; mas tal conhecimento não é aquele que desvenda a “realidade em si”; esse conhecimento é apenas parcial e transitório (não esquecer que a realidade dos mundos é impermanente, incerta e inconstante), e que não nos conduz à verdade da Realidade Absoluta.


O “despertar da experiência”, isto é, “libertar-se das ilusões dos mundos”, para “adentrar na consciência”, ou seja, “libertar-se do domínio das dualidades da experiência”, não significa a evasão dos “mundos da experiência”. Porém, é “estar íntegro” em cada experiência, para que esta seja harmonia, e a realidade, plenitude. Afinal, o significado da palavra atman é “indivisível, íntegro, inteiro”.


Estar “íntegro na experiência da realidade” é perceber, claramente, sem qualquer obstáculo, que na vigília, no sonho e no sono profundo, a Testemunha Imutável está sempre presente, em tudo e todos; pois ela é a Realidade Absoluta que subjaz a toda e qualquer “experiência da realidade”.


Estudo, reflexão e meditação são as vias para o autoconhecimento, a realização do yoga. Para alcançarmos atman em seu refúgio (susupta-prajña) e a revelação do Brahman Supremo, entretanto, estudo, reflexão e meditação não podem ser “mais uma experiência da realidade”, porém, um caminho que se percorre, convicto, do consciente ao inconsciente e, deste, para o transcendente turiya.


Somente pela realização do impessoal e universal atman-brahman é que despertamos, de fato, para a nossa plenitude, a essência infinita, imortal, livre e bem-aventurada. Ou, se preferirmos, podemos continuar aprisionados pelo “feitiço do tempo” e viver o “dia da marmota” indefinidamente.


Hari Om Tat Sat.

 

Quando ele morre, nasce novamente, e as circunstâncias da sua nova vida são determinadas pelas suas ações passadas e pelos hábitos que formou. Ele continua a viver nos três níveis de experiência da realidade. Enquanto continua nesses três níveis, ele é o Eu individual (jiva-atman), porém, como o Eu universal (brahman), é infinito, indivisível; ele é consciência, bem-aventurança. Dele nascem a mente, a vida e os sentidos; a terra, o ar, a água, o fogo e o éter. Ele é a realidade que está por trás de toda existência. Ele é o Brahman Supremo. Ele está em tudo, ele é a base de tudo. Ele é mais sutil do que o mais sutil. Ele é eterno. Vós sois ele! Vós sois ele! (Kaivalya Upanishad)

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