Passarei agora a explicar o conhecível, o qual conhecendo, você irá saborear o eterno.
(Bhagavad Gita, 13,13)
Podemos considerar a prática do yoga como um processo educativo, cuja finalidade é o despertar da consciência para a espiritualidade.
Todos nós somos seres espirituais imersos na natureza material. É essa natureza material que nos causa a inquietação, uma das nossas principais características psicológicas.
A inquietação que nos assalta os pensamentos é a certeza de que estamos “buscando algo” que ainda não encontramos. E o que não encontramos ainda?
Tudo o que a natureza material nos oferece, não nos basta ou nos preenche plenamente. Esse sentimento de incompletude é o nosso mais fiel companheiro em nossas infindáveis jornadas terrenas.
O que não encontramos ainda é o caminho de regresso à paz interior. Pois esse caminho não é o mesmo que a natureza material nos oferece. A paz interior somente se alcança pelo caminho da espiritualidade.
A espiritualidade é uma qualidade intrínseca a todos os seres viventes. Trata-se da tendência humana em buscar um sentido para a existência. Viver deve significar algo mais do que o tangível, assim diz a nossa constante inquietação.
A espiritualidade é como uma semente. Todos, sem exceção, trazem em si, no mais íntimo do ser, a semente da espiritualidade. Mas se não houver ninguém para cultivar essa semente, ela não irá brotar.
É a espiritualidade que nos propicia transcender a natureza material. Logo, o desejo de transcender a natureza material é o que, cedo ou tarde, nos moverá na vida.
A espiritualidade, assim, é essa procura inquietante por uma conexão com algo maior que si mesmo, algo que, de fato, dê sentido a “tudo isso”.
A natureza material, pelos seus muitos encantos e seduções, nos mantém aprisionados em uma consciência individualista e ordinária. Ela nos afasta das reflexões sobre as questões da existência, limitando-nos o acesso ao conhecimento do “mundo interior” e dificultando a superação de nossas limitações psicológicas.
A natureza material, quando não compreendida em suas disposições, nos mantém cativos no sofrimento psíquico. É somente a espiritualidade que nos faz transcender todos os aspectos da natureza material.
Essa transcendência se dá por uma reconciliação entre as dualidades da natureza material. Ao acessar o “mundo interior”, nossa consciência se expande e aprofunda, e o conhecimento daquilo que é o “real imperecível”, se nos revela.
Esse “real imperecível” é o Absoluto, o Uno indivisível que está em toda diversidade. O “mundo exterior”, ao qual a natureza material se apresenta em miríades de pares de opostos, encobre-nos a visão dessa Suprema Unidade que habita o “mundo interior” de cada ser.
O “transcendente” é o princípio divino que, em sua absoluta perfeição e poder supremo, situa-se além da realidade sensível, e excede a natureza material. O “transcendente” é a própria “essência divina”, a espiritualidade latente em todos nós.
Ir além do certo / errado, do bom / mau, do claro / escuro, da vida / morte, do masculino / feminino, do belo / feio e de quaisquer outros aspectos duais da natureza material, é o processo do despertar da consciência para a espiritualidade.
A espiritualidade, portanto, nos revela o Espírito, essa energia cósmica que sustenta a vida. Conhecer o Espírito é sair da condição de uma consciência individualista e ordinária, para adentrar na Consciência Ilimitada, a verdadeira e única fonte da felicidade e da paz interior.
Yoga, assim como a vida, é um processo de transformação, de autorrenovação. É necessário sair da inércia se desejamos conhecer esse “algo mais” que dê sentido a “tudo isso”.
O yoga nos abre as “portas da percepção”, para que possamos ver além das aparências, além do engano, além as seduções da natureza material. Ela nos desperta para o real sentido do movimento da vida, e para o significado do impermanente e do transitório.
A nossa vida é calcada na rotina. A rotina é o movimento ordinário da vida, e serve para satisfazer nossas prioridades básicas. Para isso, temos que impor uma ordem ao cotidiano, estabelecer hábitos e costumes que nos atendam à satisfação das prioridades.
Quando estabelecemos uma rotina, sentimos segurança e certeza de que estamos fazendo a coisa certa. Mas, ao estabelecer a ordem de prioridades, que a rotina nos assegura, passamos a temer a mudança.
É interessante observar, todavia, como precisamos mudar tanto, isto é, estabelecer sempre novas prioridades e cumprir metas, para continuarmos sendo sempre os mesmos. É difícil escapar desses procedimentos sempre semelhantes. Como um ponteiro de relógio, damos uma volta completa, retornando ao mesmo ponto de partida.
Expressões do tipo: ‘sempre fui assim, quem quiser me aceite como sou’, indicam apenas que estamos fechados em nosso próprio mundo; não compreendemos que a vida é uma dinâmica constante em direção ao “transcendente”, queiramos ou não, estejamos conscientes ou não do fato.
O yoga nos proporciona a dissolução dos laços dos velhos hábitos e costumes para uma mudança de atitude perante a vida. Quando compreendemos corretamente o processo educativo do yoga, abrimos as portas da percepção para a necessidade da mudança.
Porém, para tal compreensão ser alcançada, temos que observar atentamente os “valores do yoga”. Mas o que são valores e qual a importância deles em nossa vida?
Valores são normas de conduta aceitas ou mantidas pelas pessoas. Os valores de cada pessoa dizem muito sobre quem ela é, pois os valores conduzem o modo de agir e de se relacionar individualmente em sociedade.
Os valores são elementos adquiridos culturalmente. Como afirma o filósofo e teólogo Francesc Torralba, em sua obra O valor de ter valores (2015), os valores são entidades imateriais que assimilamos por meio de nossa consciência; eles são "fios invisíveis" que unem as pessoas que os compartilham.
Os valores conduzem-nos ao “viver bem”, mas desde que haja coerência entre os valores que confessamos ter e as nossas palavras e ações. Quando nossas decisões e atitudes são fiéis aos nossos valores, podemos encontrar o bem-estar, a alegria de viver e a paz interior.
O yoga nos convida a refletir sobre nossos valores, pois são eles que determinam as nossas escolhas. Escolhas, como sabemos, envolvem riscos, pois não podemos antever, com certeza, o que nos espera no futuro. Isso nos leva a indagar: os meus valores me conduzem a desfrutar apenas o prazer momentâneo ou a cultivar a vida em sua plenitude?
Quantas vezes o desejo ardente do desfrute momentâneo – que apenas expressa o medo da finitude da vida em sua brevidade – nos conduzem para um final patético ou um trágico desfecho?
Na obra O valor do amanhã: ensaio sobre a natureza dos juros (2005), o autor e economista Eduardo Gianetti, aponta para um interessante aspecto da aparente irracionalidade humana, ao afirmar que somos muito mais propensos a privilegiar recompensas menores e imediatas em detrimento de recompensas maiores no futuro.
Os valores, entretanto, como diretrizes individuais, podem ser contestados. Há, pois valores e “valores”. Por exemplo, há pessoas que têm, como valores, o dinheiro, o luxo, o sucesso, a fama e a riqueza. Tais pessoas, em sua maioria, apresentam um caráter individualista e consumista. Quando põe em prática esses valores, elas agem de modo egoísta, pensando apenas em satisfazer seus anseios materiais.
Portanto, ter valores apenas não basta, pois todos temos nossos valores ou “valores”. Necessário se faz ter princípios e exercer a virtude. Os princípios são pressupostos universais, incontestáveis, e que definem as regras e os modos de viver em uma sociedade civilizada.
Amor, liberdade, paz, solidariedade, justiça, igualdade e fraternidade são alguns princípios universais que, quando realizados, promovem harmonia à convivência social.
Uma pessoa, então, pode ter valores, porém, não ter princípios. Pois os valores dizem respeito ao caráter da pessoa e são mais fáceis de serem praticados, já que muitos desses “valores” estão na ordem do dia de uma sociedade que preza por valores duvidosos. Ao contrário, os princípios, que exigem-nos uma conduta irrepreensível, pois são profundos e amplos em seu alcance, acabam, muitas vezes, negligenciados.
Logo, para se ater aos princípios, necessários se faz agir com virtude. Virtude é a firme disposição do espírito para a prática constante do bem. Benevolência, sabedoria, humildade, compaixão, simplicidade e honestidade são algumas virtudes que emergem a partir do meio onde fomos criados. Elas surgem pela “força do hábito”, a partir de uma educação que tem no exemplo dos semelhantes, o seu poder de assimilação.
A convivência social pode tornar-se insuportável quando nos deparamos com indivíduos que atropelam os princípios universais em detrimento de seus valores pessoais.
Infelizmente, vivemos em uma sociedade onde as pessoas adotam, cada vez mais, valores que em nada têm a ver com a convivência pacífica. Obviamente, tais pessoas passam longe de demonstrar qualquer virtude em suas ações.
Os valores, portanto, são importantes em nossa vida, pois eles nos orientam na busca pelo caminho de regresso à nossa essência. Temos apenas que conhecer, adotar e agir conforme os valores corretos, que são aqueles que firmarão nossos passos na vereda da espiritualidade.
O capítulo 13 do Bhagavad Gita nos apresenta os valores do yoga. São eles:
Amanitvam, ausência de vaidade;
Adambhitvam, ausência de pretensão;
Ahimsa, não-violência;
Shanti, aceitação pacífica;
Arjavam, retidão;
Acharyopasanam, dedicação ao mestre espiritual;
Saucha, purificação do corpo e mente;
Sthairyam, firmeza de propósito;
Atma-vinigraha, domínio sobre os pensamentos;
Indriyartheshu vairāgyam, renúncia aos objetos sensoriais;
Ahankāra, ausência de egoísmo;
Janma mrtyu jara vyādhi duhkha dosha anudarshanam, percepção das limitações da condição de nascimento, morte, velhice e doença;
Asaktir anabhishvangah putra-dara-grihadishu, ausência de apego aos familiares e amigos;
Nityam cha sama-chittatvam ishtanishtopapattishu, equanimidade frente aos eventos agradáveis e desagradáveis;
Bhaktir avyabhicharini, devoção inabalável;
Vivikta-desha- sevitvam, apreço por lugares tranquilos;
Aratir jana-sansadi, apreço pela solitude;
Adhyatma-jnana-nityatvam, disposição contínua para o autoconhecimento;
Tattva-jnanartha-darshanam, busca filosófica pela verdade absoluta.
Assimilar os valores do yoga é estar consciente de que eles irão influenciar o nosso modo de ser. Essa prática de assimilação pode ser realizada por meio da reflexão diária de cada um desses valores, o quanto eles estão presentes ou não em nossa vida e a necessidade de mudar nosso comportamento equivocado sobre as questões da existência.
Os valores do yoga, assim, nos indicam uma direção a seguir. Certamente, é por meio deles que nossas escolhas e atitudes serão vistas claramente, e a mudança de vida se fará com mais discernimento e segurança, conforme os propósitos da espiritualidade.
Quando os valores do yoga atrelam-se às virtudes, que estão fundamentadas em princípios universais, então, tais valores são inegociáveis. Os valores do yoga, bem como a ética e a moral, ou você os possui, ou não.
Respondendo à pergunta que sustenta o título desse texto (para que serve o yoga?): o yoga é para nos manter caminhando, seguindo confiante pela senda da espiritualidade, para continuarmos firmes no caminho dessa incessante e inquietante busca pelo Transcendente.
Yoga: estude, pratique.
Hari Om Tat Sat.
A Verdade Suprema existe fora e dentro de todos os seres vivos móveis e imóveis. Porque é sutil, Ele está além do poder dos sentidos da natureza material ou do entendimento intelectual. Embora longe, muito longe, Ele também está perto, muito perto, de todos.
(Bhagavad Gita, 13,16)
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