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Foto do escritorMarcelo Augusti

POR QUE É DIFÍCIL CONHECER A SI MESMO?

Eu saúdo o Eu! Saudações a mim mesmo – a Consciência pura, indivisa, ilimitada e infinita, a joia de todos os mundos visíveis e invisíveis! Você foi realmente alcançado, conquistado, percebido e elevado acima de todos os tipos de deturpações: você é o que você é. Saudações a você, meu Eu, Shiva, Senhor dos senhores, o Eu Sou (Yoga Vashistha, v. 34)



Yoga é autoconhecimento; é conhecer a si mesmo. Mas conhecer a si mesmo é uma tarefa árdua, que somente é capaz de realizar aquele que, com muito esforço, se dedica e persevera, é constante no estudo e na prática.


É necessário, pois, muita energia psíquica para embrenhar-se na aventura do autoconhecimento. É também necessário muita disposição física, atitude e coragem. Conhecer a si mesmo é como olhar-se nas águas transparentes de um lago e ver a própria imagem refletida.


Porém, quando as águas do lago não estão límpidas e serenas, a imagem real não transparece. Se há agitação, a imagem é deturpada, distorcida, estremecida. Tampouco, em águas turvas, não conseguimos ver com clareza o reflexo da própria imagem.


Esta ‘imagem real’ é o Si Mesmo, a Consciência pura e ilimitada que somos; esta Consciência é a nossa essência, “aquilo que é”. Esta Consciência resplandece quando se revela como o Si Mesmo; é esta “luz eterna e infinita” que ilumina a mente, e nela reflete-se a ‘imagem real’ “daquilo que é”.


A mente, portanto, é o instrumento pelo qual se realiza o conhecimento de si mesmo. É a mente que é dotada das capacidades e qualidades fundamentais (percepção, discernimento, identificação) para o resplandecer da Consciência. A ‘mente iluminada’ é a mente onde brilha a insuperável luz da Consciência pura.


Mas, assim como as águas de um lago, a mente deve estar límpida e serena para que a imagem real “daquilo que é”, nela transpareça plenamente e com todo o seu esplendor. Uma mente agitada e turva, não está apta a ver a realidade, e não enxerga com precisão a “imagem real de si mesmo”, não percebe a essência.


O yoga nos ensina a tornar a mente límpida e serena, apta a refletir a “imagem real” daquilo que somos em nossa essência. A mente em seu estado natural é transparente e clara. Porém, torna-se facilmente agitada e turva, quando se encontra alterada pela presença de elementos estranhos.


Pensamentos, desejos e emoções, quando se estabelecem na mente, provocam flutuações no fluxo da consciência; tais flutuações ou perturbações na quietude da mente, são denominados vrittis. Qualquer objeto que entre em contato com os sentidos, produz esses vrittis, que são como ondas que se formam em um lago sereno e agitam suas águas, após nele atiramos uma pedra.


Todas as sensações captadas pelos sentidos passam pela mente, e deixam nela uma impressão. Quando uma experiência é repetida, essas impressões se fortalecem, provocando padrões de comportamentos característicos das marcas que ficaram impressas.


São essas impressões que alteram a natureza transparente da mente. São esses ‘elementos estranhos’ que agitam e turvam a mente. Quando a mente passa a se identificar com esses elementos, ela confunde tais identificações com sendo ela mesmo. Modifica-se, assim, a sua função primordial, que é resplandecer a luz da Consciência e discernir o falso do verdadeiro.


O Si Mesmo (“Eu Sou”) não se manifesta de imediato à mente; a realidade em si não se mostra à primeira vista. A “existência real” é diferente da aparência do real; o númeno (aquilo que existe per se, a realidade superior, a essência) é distinto do fenômeno (aquilo que se mostra, que aparece, que se apresenta aos sentidos).


Ao fenômeno, portanto, não se atribui a qualidade da concretude, isto é, da “existência real”. O fenômeno indica algo que não é ele, embora apenas se manifeste graças ao seu contrário, o númeno. O fenômeno, assim, é verdade e ilusão; pois a essência não se revela diretamente no fenômeno, porém, permite revelar-se apenas parcialmente no fenômeno e em circunstâncias específicas.


O que nos é possível conhecer é aquilo que aparece na mente, e como a mente o percebe, interpreta, qualifica e categoriza; mas o “real absoluto” não se dá a conhecer, de imediato, como “é em si mesmo”. Ele não se manifesta à mente, pois ele é incognoscível. Porém, basta um vislumbre desse “real imperecível” para transcender a ilusão do fenômeno e estabelecer-se na verdade da “realidade última”.


Vamos entender um pouco dessa questão do conhecimento de si mesmo, a partir de outra perspectiva, ou seja, dos estudos da neurociência sobre a cognição. A neurociência, como se sabe, é o estudo do sistema nervoso e suas funcionalidades, e também da análise do comportamento e das emoções humanas.


Além de explicar as reações do corpo (os processos voluntários e involuntários), a neurociência se dedica aos estudos dos fenômenos da mente. A neurociência, portanto, é um campo científico que busca descobrir e compreender as bases biológicas, psicológicas e pedagógicas da cognição e da aprendizagem, pesquisando as estruturas, os processos de desenvolvimento e as alterações que possam ocorrer nosso cérebro e no sistema nervoso em geral, ao longo da vida.


A neurociência é um complemento interessante aos estudos do yoga, e nos auxilia no entendimento da difícil tarefa de conhecer a si mesmo, o “real absoluto”. Para início, a palavra cognição tem origens antigas, sendo uma delas do latim cognoscere – “conhecer”. Refere-se, portanto, a tudo o que está relacionado à aprendizagem e à experiência.


O ato de conhecer depende de um conjunto de processos psicológicos e neurobiológicos, onde se incluem a percepção, a memória e os pensamentos. É a cognição que nos possibilita interagir adequadamente com o ambiente em que vivemos, tanto em relação à nossa sobrevivência, quanto à “sensação de identidade” durante a nossa vida.


Essa sensação de identidade ou ego é o que nos faz acreditar que somos os “senhores da nossa conduta”; é esse ego, que parece consciente e uma unidade separada do todo, que nos leva a crer que somos livres. Entretanto, para a neurociência, assim como para o yoga, estamos sujeitos aos condicionamentos, hábitos e processos muito sutis de sugestionamentos, que influenciam e determinam o nosso comportamento. E não temos consciência disso.


A percepção, a memória e os pensamentos são os processos cognitivos que mais escapam à nossa atenção e consciência, e que determinam nossos comportamentos e hábitos. As percepções que temos da realidade são construções elaboradas a partir das sensações advindas dos sentidos que, como já sabido, muitas vezes nos iludem. As ilusões de ótica, por exemplo, fazem com que “aquilo que vemos” esteja mais associado às nossas experiências prévias e ao contexto cultural em que vivemos, do que com a realidade em si. A antropologia dos sentidos nos revela muito sobre isso.


As percepções, assim, são formadas por automatismos nervosos, pois o cérebro elabora suas hipóteses a partir das informações que recebe dos sentidos (que não são confiáveis), gerando um conhecimento que, na maioria das vezes, não corresponde à realidade.


A questão da percepção é tão séria, em relação ao comportamento, que há estudos que indicam que nos restaurantes onde copos e pratos maiores estão à vista, somos automaticamente sugestionados a consumir mais alimentos. Tais estímulos, que nos influenciam sem termos deles consciência, são denominados subliminares, e nos afetam não apenas o comportamento, mas os nossos pensamentos e decisões.


Esses estímulos subliminares funcionam como pré-ativações, gatilhos psíquicos, que induzem a nossa percepção, o nosso sentimento e a nossa conduta, e sequer desconfiamos que somos manipulados pelos próprios processos mentais. Quem se aproveita disso, para nos ludibriar, é a propaganda, o marketing digital e os políticos.


A própria memória não é confiável. Acreditamos que temos “bem guardado” tudo o que vivemos, e nossas experiências estão intactas em nossa lembrança. Que terrível engano. Os registros que ficam na memória podem, de fato, ser resgatados, como uma imagem ou vídeo. Entretanto, a memória se faz a partir de fragmentos da realidade, onde cada informação foi armazenada em locais diferentes no cérebro.


Assim, todas as vezes que recordamos algo, o cérebro precisa reconstituir a lembrança do episódio, juntar os fragmentos. Logo, todas as reconstituições são inconsistentes, pois sofrem inúmeras variações ao longo do tempo, seja devido ao nosso estado mental ou até mesmo pela influência de outras informações que nada tinham a ver com a memória original. Nossas lembranças, portanto, são como colchas de retalhos.


As falsas associações que são elaboradas a partir das reconstituições de nossas lembranças, criam memórias inexatas tão convincentes, que somos facilmente induzidos a acreditar que fizemos algo que não fizemos ou estivemos presentes em algum lugar que, sequer, chegamos perto em sonhos. Ou seja, lembramos de um fato que nunca ocorreu ou que nunca vivemos, e acreditamos nisso com toda a convicção. Afinal, que poderia duvidar das próprias memórias?


Os nossos pensamentos também nos traem. A maioria dos pensamentos que povoam a nossa mente surgem automaticamente. Isso tem a ver, em parte, com o que se denomina de heurística, isto é, um procedimento mental inconsciente que busca simplificar as nossas escolhas e facilitar a nossa conduta cotidiana. A heurística pode nos dar respostas rápidas, simples, porém, por vezes, em sua maioria, inadequadas.


A heurística é responsável pela formação daquilo que se denomina como “viés cognitivo”. Um viés cognitivo é como um atalho, que se forma a partir de circunstâncias e experiências que se repetem cotidianamente. Como são autônomos, eles são eficientes para questões simples e específicas; porém, para algo mais abrangente e complexo, contradizem os procedimentos racionais e nos desviam da realidade.


A crença é um viés cognitivo. Aceitamos como verdade tudo o que nos parece razoável, conforme aquilo que acreditamos previamente. E não há nenhuma preocupação em verificar a informação, sua fonte ou procedência. Afinal, se o que chega até nós não contraria o que acreditamos previamente, por que devemos nos preocupar?


Temos a tendência de dar atenção a tudo aquilo que já está conforme às nossas crenças e valores preexistentes. Logo, iremos acreditar em tudo aquilo que confirme o nosso conhecimento, desprezando ou ignorando tudo o que é contrário. As fakes news fazem tanto sucesso no mundo virtual pois nos pegam pelos nossos “vieses cognitivos”.


E ainda tem a questão da mentalidade coletiva, que é uma característica do fenômeno denominado tribalismo, isto é, a identificação exacerbada com um grupo social (o pertencimento, que gera uma forte ligação psicológica com os membros e ideais compartilhados), ao qual replicamos, automaticamente, tudo o que o grupo acredita ser verdade.


Esses são alguns pontos interessantes da neurociência, e que nos mostra o quão difícil é a conquista do “conhecer a si mesmo”. A mente, assim embotada por tantos condicionamentos, hábitos e sugestionamentos, de fato, está muito distante de ser o instrumento ideal para o alcance do autoconhecimento. Para vislumbrar o “Eu Sou”, portanto, a mente tem que ser restituída ao seu estado natural de transparência, serenidade e discernimento.


O yoga nos possibilita a purificação da mente, ou seja, remover o véu (os obstáculos mentais) que encobrem o “Eu Sou”. O conhecimento distorcido ou viparyaya, a imaginação ou vikalpa e a memória ou smriti, são obstáculos ao autoconhecimento. A realização “daquilo que é” somente pode ser conquistada pelo conhecimento correto, pelo “ver claramente” ou pramana. Testemunhar o “Eu Sou” é a realização direta do conhecimento do si mesmo, que nos ensinamentos do yoga denomina-se pratyaksha-pramana.


É no estado meditativo (dhyana) que podemos ver claramente o “si mesmo”, “aquilo que é”, o “Eu Sou”, a essência, a realidade última. A tarefa é árdua, pois muitos são os obstáculos a serem removidos da mente, para que ela se torne serena, límpida e transparente.


Esteja atento, seja consciente. Estude, pratique, seja estável e constante.


Hari Om Tat Sat.

               

        

           Somente esse Eu deve ser procurado e contemplado. Ele se revela a si mesmo, pois está acessível no próprio corpo a quem deseja encontrá-lo, permanecendo na mais plena tranquilidade no coração de cada ser. Quando ele é visto, tudo é visto, pois o mundo existe porque ele existe. Quando o Si Mesmo se revela, tudo o que vale à pena conhecer, já foi conhecido. Tudo o que é passado é passado e todas as tristezas e ansiedades que te consumiam, já não existem mais. Hoje você é o soberano dessa cidade conhecida como ‘corpo’. Nenhum mal ou sofrimento pode te tocar, pois agora você é o mestre de seus sentidos e de sua mente: desfrute a vida plena (Yoga Vashistha, v. 35,37)

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