Quando pensamos na vida, pensamos no tempo. No tempo que vivemos em nossa infância, em nossa juventude, nas coisas que temos que fazer e no tempo que ainda virá. Raramente pensamos no tempo que ainda nos resta nessa vida. Geralmente, só damos valor ao tempo quando não há mais tempo. Falar do tempo é falar de muitas coisas. Nesse post, abordaremos a questão do tempo a partir de uma perspectiva histórica, que tem a ver com as mudanças na ordem social e econômica que ocorreram em séculos passados e impactaram os modos de ser e fazer do ser humano, e a sua própria percepção do tempo. O tempo se desfigurou e nessa desfiguração, nos perdemos.
Alertamos aos nossos leitores que qualquer referência nesse artigo não tem nenhuma conotação político-partidária, seja a favor ou contra quem quer que seja. Tampouco, é a favor ou contra algum viés político-ideológico particular. Trata-se apenas de discorrer sobre o quanto estamos desconectados do tempo da existência, e o quanto submergimos no tempo histórico. As razões que nos afastaram do tempo natural e que nos exilou do tempo da existência, e do tempo que nos subjuga e nos submete a uma ordem social implacável, é o que pretendemos discorrer nos próximos posts.
O tempo na conjuntura do capital
O capital se impõe sobre os indivíduos e a sociedade e sua presença se faz sentir em todos os lugares, de modo que não é possível pensar em nenhum aspecto da vida cotidiana que não seja controlado pelos seus pressupostos (István Mészáros)
O debate acerca do tempo (livre, disponível, da existência, do trabalho, da produção), na sociedade contemporânea é perpassado pelo capital. O tempo é o maior aliado do sistema (‘tempo é dinheiro’, essa é máxima capitalista) e o seu controle é fundamentalmente necessário para o aumento da produção e sucesso nos negócios. A tirania do tempo do capital se abate inapelavelmente sobre os indivíduos e deturpa as relações sociais com as suas determinações objetivas, acarretando um fardo à vida cotidiana. O tempo do capital deve se autorreproduzir em larga escala, abarcando todas as dimensões do tempo da existência dos indivíduos.
Se outrora o tempo era medido pelos ciclos da natureza, todavia, com a consolidação do sistema de produção capitalista o significado do tempo é o “tempo histórico da humanidade” que transcende o tempo da existência do indivíduo (MÉSZÁROS, 2007). Assim, restrito à mera sobrevivência em um sistema socioeconômico controlador e perverso, nega-se ao indivíduo o poder de fazer escolhas genuínas, e a este, condenado pelas contradições do sistema e pela exacerbação dos antagonismos sociais, resta-lhe apenas a labuta cotidiana – ainda que isso signifique destituir-se de valores, de tradições e de sua cultura e obrigar-se a sujeição aos modos de vida para ele determinado pelo sistema.
Para o capital, portanto, o tempo livre é desprovido de qualquer valor, a menos que seja convertido em tempo disponível ao lazer e explorado pelo imperativo da lucratividade. O uso desse tempo disponível deve submeter-se aos interesses do consumismo, unicamente, sem qualquer consideração sobre a interação sustentável entre o ser humano e a natureza, pois a alocação dos recursos naturais é subvertida pela ordem econômica. Logo, as necessidades naturais do ser humano são substituídas pelas necessidades historicamente criadas (produção, lazer, turismo) e esse processo insano de expansão da riqueza material ilimitado, para manter o seu domínio, deve ser capaz de criar novas necessidades a cada dia, tornando a necessidade de hoje potencialmente desnecessária. Desse modo, o capital, ao expropriar a riqueza e o conhecimento acumulado pelo trabalho, atribui legitimidade apenas àquilo que possa ser passível de lucro imediato. De modo arbitrário, escolhe pessoas, lugares e culturas, eleva-os à condição ideal de consumo (popular ou de elite) e não se importa com a destruição parcial ou total dos recursos naturais ou da própria vida humana.
É justamente no contexto de uma sociedade de consumo que o indivíduo se encontra submetido à logica perversa do capital e se vê restrito à mera sobrevivência diante de um sistema econômico que torna a existência um sofrimento sem fim, negando aos seres humanos a possibilidade de um existir autêntico e condenando-os à posição degradante de “carcaça do tempo”. É assim que, na sociedade moderna, e ainda sentindo seus reflexos na contemporaneidade, “o tempo dos homens é o da vida pública, e sua utilização é ditada pelo ritmo dos negócios. Raros são os homens do mundo com tempo ocioso, que podem dispor dos seus dias como bem lhes apraz” (MARTIN-FUGIER, 1991, p. 201).
O estilo de vida da classe abastada da sociedade industrial do século XIX, e estendendo-se em boa parte do século XX, caracterizava-se, pois, pela organização do cotidiano em torno do ideal da felicidade familiar, pela separação da vida pública da vida privada (dos homens e dos negócios destinados ao lucro econômico e das mulheres e todos os cerimoniais do lar que obedeciam ao tic-tac das horas e que conferiam sentido às funções domésticas e sociais), o que, em resumo, significava a administração do tempo social e do dinheiro.
O “tempo livre”, logo, não era percebido como tal, pois o tempo em si (das horas do dia, do mundo cotidiano, do desenrolar do relógio) era todo ocupado com (1) os meios para se ganhar dinheiro, (2) os afazeres domésticos e (3) os deveres sociais, como visitas, serões, bailes e espetáculos – que eram as formas privilegiadas da sociabilidade burguesa e que garantiam a continuidade da dimensão de sua privacidade. Era pelo rígido controle do tempo que o sucesso nos empreendimentos do mundo e na vida particular era alcançado (MARTIN-FUGIER, 1991).
Mas o que é o tempo, afinal? Que entidade é esta que governa com mão de ferro a vida dos seres humanos, que os subjuga e determina suas ações? Por que ninguém escapa ao tempo? A noção do tempo é consequência direta daquilo que uma geração transmite à outra a partir das particularidades culturais vigentes na sociedade de sua época. A questão do tempo e do imperativo de sua atuação na existência social dos indivíduos é algo complexo e que, para a sua análise e interpretação, deve considerar as mudanças nos estilos de vida e nas experiências cotidianas dos seres humanos ao longo da história da humanidade (ELIAS, 1984).
O tempo – cronos, o que rege o mundo – é uma instituição que tem por finalidade organizar, de modo categórico, a vida social do ser humano. Esse “tempo social” é implacável e alienante, pois está apartado dos ciclos da natureza, ainda que deles decorrente nos primórdios de sua elaboração. Embora percebido como uma realidade objetiva e inexorável, ele é uma representação simbólica dos ciclos naturais (dia / noite, plantar / colher e a repetição sucessiva desses períodos e seus rituais específicos). Mas ele não é o “tempo da vida” (das percepções da existência, das experiências significativas), é o “tempo do mundo” (dos negócios, do consumo, do dinheiro).
Em épocas remotas a produção econômica baseava-se nos ciclos da natureza (primavera, verão, outono, inverno), e isso permeava toda a vida comunitária (não havia a necessidade de fixar e datar o tempo, algo quase sem sentido e poucas pessoas sabiam suas datas de nascimento ou mesmo a idade, pois as coisas do cotidiano, quando marcadas ou lembradas, eram por acontecimentos extraordinários da própria natureza). Contudo, com o advento da sociedade industrial capitalista e a consequente expansão urbana (adentrando, sem pedir licença, nas áreas rurais e nelas estabelecendo seus pressupostos técnicos e burocráticos), provocaram a dissonância entre a ordem social e o ritmo da natureza.
Assim, no contexto da sociedade capitalista, não é mais possível esperar que a natureza conceda seus frutos “naturalmente”: é necessário produzi-los, pelo engenho humano e, desse modo, com eles obter lucros. A demanda social cada vez mais exigente no controle do tempo – o tempo do trabalho, da produção – avança para o progresso e a ordem econômica prevalecente. Não mais pela observação da natureza e das percepções subjetivas da existência que os fenômenos são interpretados, o cotidiano é estruturado e o tempo das coisas determinado; porém, pela racionalização econômica e científico-tecnológica que subtraiu à cultura o seu saber-fazer que garantia certa coesão social. O tempo da existência foi ficando, cada vez mais, esquecido dos seres humanos, sobrepujado pelo tempo social.
Hoje o tempo está capitalizado em sua quase totalidade. No mundo contemporâneo com seus imperativos tecnológicos, o tempo social (do relógio) impõe-se como fator irreprimível para “coordenar e sincronizar o desenrolar das atividades humanas, tanto entre si quanto com o dos processos físicos externos ao homem” (ELIAS, 1984, p. 98). É esse tempo que proclama sobre os seres humanos a sua ordem, quase imperturbável, sem qualquer consideração que seja às singularidades humanas ou diversidades da natureza. E é nesse tempo, determinado economicamente e disponível ao ser humano, que ele deve realizar o sentido desse mundo: consumir.
Para os seres humanos, o tempo e o seu ‘passar’ é algo que indica a cronologia da aventura humana terrestre. Do nascimento à morte, transcorre-se o percurso fixado pelo tempo biológico determinado a cada indivíduo da espécie, ainda que o mesmo não seja capaz de prever quando lhe será concedido o último suspiro, embora todos estejam cientes de que esse dia não tardará. Contudo, mais do que um inimigo da humanidade, o tempo pode ser o seu maior aliado na vida e, talvez por isso mesmo, ele tenha sido capturado pelo sistema econômico, transformado e posto a serviço da produção, do mercado e do consumo. Tempo é algo muito valioso para ficar “solto” por aí.
Os indivíduos do mundo contemporâneo, expressão de uma racionalização cognitivo-instrumental, vivem no constante dilema do tempo histórico: se são donos do tempo da existência, podem fazer àquilo que bem entendem; todavia, para a maioria dos mortais, isso se torna um problema quase insuperável, pois ser dono da própria vida significa abdicar, ou pelo menos lutar, contra o mando do tempo social. Tensões emocionais e inúmeros conflitos se estabelecem entre aqueles que acreditam que o tempo lhes pertence (o tempo da existência, que não pode ser vendido por um salário) e que isso não é algo dado e definitivo (pois o tempo da existência é frágil e sua duração é breve), e entre os que desejam subjugá-los com os ditames da racionalidade produtiva (enquadrando a todos nos padrões do tempo histórico e social, da ordem econômica vigente).
Todas as atividades humanas, seja o que diz respeito ao trabalho ou lazer, foram aprisionadas pelo tempo histórico, restando aos indivíduos seguirem os padrões estabelecidos de conduta para não ficarem “fora” do tempo. Na ciranda do tempo histórico, o ser humano revive a barbárie, contudo, sofisticada e que penetra, imperceptivelmente, nos modos de pensar, de ser e fazer de cada indivíduo, de cada grupo social, de cada cultura e que vai perdendo, então, seus traços originais e submergindo diante do colapso das memórias, das tradições e das identidades que nos fizeram ser quem somos.
Referências
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida privada burguesa. In: PERROT, M. et al. História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. v.4. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
MÉSZAROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
Exatamente, vanvidigal! Muito boas suas colocações. Em breve publicaremos a segunda parte do texto. Fique atenta! Gratos por sua leitura e participação!
Tema bastante interessante: a passagem do tempo. O tempo se tornou um dos bens mais valiosos de nossa sociedade e, de forma incontestável, tem sido o fato gerador de angústia, ansiedade e outros males, diante da alegada "falta de tempo". Acho realmente que o tempo "se desfigurou" e que "nos perdemos", como diz o texto. Muito boa a argumentação, instigando a reflexão.