Na primeira parte, falamos da apropriação do capital sobre o tempo e o quanto a sociedade e o trabalho, no que se pode chamar de “tempo histórico”, impactou em nossa relação pessoal com o “tempo da existência”. O “tempo histórico” promoveu o “tempo da existência” em algo impessoal, extirpando do indivíduo o direito natural ao tempo de sua própria vida. A vida pessoal submergiu nas profundezas dos imperativos do social.
Mas, por que, afinal, o capital apropriou-se do tempo do ser humano para transformá-lo em tempo de produção? Analisando por uma perspectiva sociológica, é no contexto religioso do calvinismo que podemos buscar uma resposta, mesmo que não seja a única ou definitiva, porém, um tanto convincente.
Teria sido pela igreja calvinista que o trabalho passou a ser visto como algo positivo, de valor, e não mais um fardo ou um castigo em resposta ao pecado original, conforme declarava a igreja romana. A partir de uma “ética protestante”, a compaixão e a devoção não seriam mais suficientes para conduzirem o indivíduo à salvação celestial; porém, era pelo trabalho e o quanto este pudesse levar à prosperidade, que o ser humano poderia livrar a alma do sofrimento eterno.
A ética protestante afirmava que, quanto mais um homem trabalhasse e prosperasse, quanto mais riqueza pudesse acumular pelo trabalho, maiores eram as suas chances de salvação. Um homem que, pelo trabalho, alcançasse riqueza material, era, pois, um homem destinado à salvação. Era essa crença na predestinação que levou muitos homens a dedicarem-se ao trabalho e ao acúmulo de riquezas, enquanto se afastavam de suas famílias, sacrificando sua saúde e o desenvolvimento pessoal.
Porém, não é possível viver apenas para trabalhar e acumular riqueza. Há algo no ser humano que pede mais. Tanto para aqueles que detinham o poder e a riqueza, os donos do capital, como para aqueles que vendiam sua existência por um salário, os trabalhadores, havia a necessidade de conceder um tempo livre das obrigações do trabalho. Um tempo que fosse destinado ao descanso e outras atividades que não estivessem associadas ao trabalho. Esse tempo foi denominado de lazer.
O lazer
O tempo livre foi acorrentado ao seu oposto (Theodor Adorno)
O lazer grosso modo é o tempo que sobra, em relação ao tempo do trabalho, para a realização de atividades prazerosas. Interessante notar a etimologia das palavras trabalho e lazer. Trabalho vem do latim tripalium, que designa um instrumento feito de três paus aguçados, com ou sem pontas de ferro, utilizado pelos camponeses para baterem o trigo, as espigas de milho e o linho, com a intenção de rasga-los e esfiapá-los. Uma tarefa que deveria ser árdua e cansativa.
Mas tripalium também era um instrumento de tortura, e a palavra se associa a outro termo, tripaliare, cujo significado é torturar. Sabemos que, na antiguidade, trabalhar era considerado algo vil e degradante, um fardo e um sacrifício, uma humilhação, algo servil e punitivo. O conceito de trabalho, todavia, passará a ter outros significados ao longo da história – que não o de uma tortura – porém, como algo que preenche a vida e transforma-se em condição necessária para a liberdade. Arbeit macht frei, “o trabalho liberta”, é uma expressão alemã, de 1873, para designar o trabalho como o caminho para a virtude. Infelizmente, essa frase foi colocada no portão de entrada de inúmeros campos de concentração nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.
Por outro lado, lazer, do latim licere, significa algo lícito, permitido. O lazer, portanto, é o momento onde, para aqueles que trabalham, se concede um tempo para ser apreciado. Lazer é o momento onde ao indivíduo se permite fazer o que lhe agrada, quando o mesmo se desembaraça das obrigações com o tempo da produção material, com a sociedade e com a família. Em épocas passadas, geralmente se dizia que no lazer, as pessoas aproveitavam para ter um hobby, ou seja, uma atividade livre, um passatempo, que poderia ser realizado individualmente ou coletivamente.
No contexto da sociedade industrial, o tempo da existência do indivíduo dividiu-se em dois: tempo de produção e tempo livre. O tempo de produção sempre mais valorizado socialmente; e o tempo livre consistindo no intervalo entre dois tempos de produção. O tempo livre, entretanto, tornou-se um problema para a sociedade industrial. A princípio, os trabalhadores aproveitavam o tempo livre da maneira como bem entendiam ou como as condições econômico-culturais permitiam.
Geralmente, esse tempo era “gasto” com jogos de apostas, bebedeiras, brigas e confusões nas ruas. O tempo livre do trabalhador, um “problema social”, portanto, deveria ser controlado para que ele permanecesse no caminho da “retidão”. Vigiado pelos “olhos” do Estado, da Igreja e da Escola, a classe trabalhadora começou a ser enquadrada nas atividades de lazer, ou seja, naquilo que era permitido. As atividades esportivas e culturais faziam parte desse lazer, e eram organizadas em torno de valores éticos e morais que, para o “bem” da sociedade, serviam tanto para a restauração da energia física e distração, quanto como estímulos para a interiorização dos pressupostos das ideologias político-econômicas vigentes. As modalidades esportivas, principalmente, foram fundamentais nesse processo civilizador (ELIAS, 1992).
Um exemplo disso pode ser observado na organização do tempo livre dos trabalhadores nos antigos núcleos fabris. Entre os anos de 1940-60, na Companhia Melhoramentos, em Caieiras, município localizado na Grande São Paulo, o tempo livre dos trabalhadores e das famílias que habitavam esse núcleo fabril era ocupado por atividades esportivas (futebol), culturais (cinema, bailes, festas populares e jardinagem) e religiosas (missas), o que atendia às expectativas de controle social da época (JERONYMO, 2011).
Porém, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, assim versejava Camões no século XV. Uma nova era fazia sentir suas lufadas quando a sociedade de produtores cedia, com suas crises existenciais, o seu lugar a um fenômeno emergente e que a ela vai abarcando: o consumismo. O despotismo do consumo marcou presença ao exacerbar o individualismo e a valorizar o hedonismo como estilos de vida que se impuseram, implacáveis, na contemporaneidade.
O consumismo foi elevado ao principal meio para o alcance do sucesso e da felicidade, ainda que passageiros e destituídos de qualquer sentido transcendental. O imediatismo materialista fez sua bandeira tremular triunfante nos ares da economia de consumo. Nessa nova ordem econômico-social, ser um consumidor capacitado significa ter as portas abertas ao crédito e à aquisição incondicional de bens supérfluos. O descartável e o efêmero, o hedonismo experiencial e as atividades de lazer constituíram-se nos elementos marcantes de uma sociedade pós-industrial, então denominada de sociedade dos hiperconsumidores (LIPOVETSKY, 2007).
O tempo livre, nesse contexto, passou a ser mais valorizado, quase um momento “sagrado”. Com os antigos costumes e tradições derribados e com os agentes dos poderes públicos enfraquecidos, a liberdade individual ganhou espaço e significou poder de escolha. Essas escolhas individuais são aquelas que remetem, principalmente, à satisfação dos sentidos por meio das experiências corporais. Assim, as atividades corporais receberam outros significados além dos seus sentidos antropológicos. O “corpo que consome” tornou-se o meio para o alcance do sucesso e da felicidade. As celebridades entraram em cena, onde todos querem obter os seus “quinze minutos de fama” prometidos. A moda passou a ditar o ritmo alucinante das efemeridades, enquanto a indústria cultural e as mídias determinam as opções que a tirania do mercado impôs como padrões de consumo (LIPOVESTSKY, 2007).
A transformação da sociedade industrial para uma sociedade de consumidores foi apontada, quase que profeticamente, por Siegfried Kracauer na década de 1920 quando, em Berlim, ele observou que homens e mulheres eram estimulados, pelos anúncios publicitários, a permanecerem sempre jovens e bonitos. Assim, os estilos de vida urbanos que emergiram dessa sociedade e se impuseram como valores e padrões à massa da população, produziram seus efeitos pelo duplo aspecto da “rurbanização” dos ritmos de vida nas zonas periféricas da cidade e pela desvitalização e desestruturação contínua dos modos de vida das comunidades rurais (ORY, 2008).
No Brasil, esse fenômeno foi observado quando as pessoas que moravam em sítios, por força dos novos tempos, passaram a habitar as cidades, o que afetou todo o seu modo de vida tradicional e seus costumes. Na música sertaneja, moda de viola, muitas dessas mudanças radicais foram expressadas nas letras e melodias que descreviam os modos de vida, os hábitos e costumes do caipira e todo o sofrimento que os deixavam aflitos pelas transformações em seu tempo de existência. Deixo aqui duas referências para quem se interessar um pouco mais sobre esse tema. A primeira, um documentário sobre o Brasil caipira, baseado nos estudos do antropólogo Darcy Ribeiro, e que está disponível no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=Kv_jpWk4cok). E a segunda, a obra clássica de Antônio Cândido: Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação em seus meios de vida.
Seguindo com o texto. Estabeleceu-se, pois, um padrão de consumo hegemônico que se manifestou por meio de estilos de vida ordinários, ou seja, que estão na ordem do dia. O tratamento de beleza tornou-se especialidade de profissionais com as novas noções de proteção, purificação e revitalização do corpo, onde a pele “é o que há de mais profundo” e, na luta contra o envelhecimento, tudo era válido para eliminar, atenuar ou retardar rugas, manchas ou qualquer outro sinal que indicasse a decrepitude. Os hábitos emergentes de perpetuação da beleza e juventude propagaram-se pelo mundo. Estimulados por uma política econômica que sistematizava a compra e venda de produtos como a própria razão da existência, os indivíduos ficaram reféns das disposições e caprichos do mercado – das tendências da moda – fator indispensável para a sua sobrevivência. Ao Estado cabia facilitar ou pelo menos não atrapalhar o processo de comercialização dos bens de consumo, e aqui se incluem os próprios indivíduos, a cultura, os lugares e a natureza, que devem apresentar-se impecáveis aos consumidores, que é a condição fundamental para seduzi-los (BAUMAN, 2007).
O ciclo histórico dessa nova era do capitalismo começou a se consolidar a partir dos anos de 1950, que ficaram conhecidos como “anos dourados”. Essa década caracterizou-se pelos avanços científicos, tecnológicos e mudanças de comportamento e rupturas culturais significativas. Foi a década em que começaram as transmissões de televisão, provocando mudança nos meios de comunicação e nas mídias que abalaram os estilos de vida tradicionais. Também foi uma época de efervescência política internacional, com os Estados Unidos e a União Soviética buscando impor às demais nações as suas ideologias socioeconômicas (capitalismo e socialismo, respectivamente).
A expansão da economia e a elevação da produtividade alcançaram índices excepcionais nos “anos dourados”. O poder de aquisição dos consumidores aumentou consideravelmente como nunca até então havia ocorrido. Alteraram-se os níveis e as estruturas do consumo que afetaram de modo definitivo o caráter do processo de compra e venda. Estabelecia-se, assim, a “sociedade da abundância”, cujas rupturas culturais marcantes nos anos de 1960 e 1970 foram o resultado de uma “sociedade do consumo de massa” (LIPOVETSKY, 2007).
A “era da prosperidade”, período compreendido entre 1946-1975, marcou a recuperação econômica dos países da Europa Ocidental, arrasados pelas Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945) e o impressionante crescimento econômico do período Pós-Guerra, que gerou riqueza e benefícios à população em geral, como melhorias com nutrição, habitação, assistência médica, estabilidade no emprego e energia elétrica. Como consequência disso, a redução da taxa de mortalidade e a elevação da taxa de fertilidade proporcionou aumento demográfico considerável e possibilidades de modos de vida até então, materialmente, impensáveis (JUDT, 2008).
Mais pessoas, mais produtos e serviços à disposição, maior consumo. O lazer, o tempo livre, vai ganhando cada vez mais espaço na sociedade. Interessante notar que, ao longo da história da humanidade, comprar era algo raro. O boom econômico e produtivo trouxe consigo a novidade da compra. A maioria das pessoas, anteriores a esse período de fartura e abundância material, possuíam apenas quatro tipos de bens: 1) os herdados; 2) os fabricados por si mesmo; 3) os trocados com outros; 4) os comprados, muito raramente, de pessoas conhecidas. No mais, a grande maioria das pessoas não consumia – conforme hoje compreendemos esse termo – e, quando comprava, o fazia para a sua subsistência (JUDT, 2008). As pessoas, portanto, somente compravam algo quando, realmente, necessitavam. O supérfluo era desconhecido para a maioria das pessoas.
O processo de industrialização que se vigorou desde o século XIX, mudou toda a configuração das relações sociais e comerciais e, no caso, da Europa Pós-Guerra, proveu os europeus ocidentais de bens em abundância e dinheiro sobressalente para ser gasto. De refrigeradores, bicicletas e televisores às meias de náilon femininas e gêneros alimentícios em geral, a população urbana europeia regozijava-se ante o consumo de bens emblemáticos e simbólicos da nação norte-americana. Lembramos que, em julho de 1947, como parte das propostas oficiais de reestruturação da economia europeia, foi instituído o Plano Marshal, iniciativa do governo dos Estados Unidos que injetou cerca de US$ 13 bilhões em assistência tecnológica aos países europeus arrasados pela Segunda Guerra Mundial, alavancando o desenvolvimento econômico das nações beneficiadas, o que possibilitou a melhoria das condições materiais de existência como nunca anteriormente havia ocorrido na história do continente.
Todos os acessórios domésticos, roupas e alimentos – indicadores da prosperidade –, entretanto, são ainda pouco se comparados ao produto que causou maior impacto sociocultural e ambiental no cotidiano de países como França e Alemanha, e que revolucionou o lazer: o automóvel familiar. De objeto de luxo, o automóvel, a partir dos anos de 1950, provocou uma revolução nos hábitos cotidianos que culminou no surgimento de novos estilos de vida. Até então, era muito comum que as pessoas utilizassem o transporte público (trens, ônibus e bondes) e mesmo bicicletas e a caminhada para se deslocarem pela cidade e, muito raramente, empreendiam viagens longas como forma de lazer.
A expansão econômica sem precedentes promoveu a produção de uma maior quantidade de automóveis que, associado às demais melhorias nas condições materiais de existência, possibilitou que um maior número de indivíduos adquirisse seu veículo motorizado particular. O automóvel passou a ser considerado um bem indispensável na nova rotina dos grandes centros urbanos e os indivíduos dependiam cada vez mais dele para se deslocarem pelas cidades, que se expandiam cada vez mais, em direção aos hipermercados – outra novidade –, ao trabalho e para passeios no final de semana. Esse ‘fim de semana’ tornou-se um fenômeno social característico da vida urbana moderna que contrapôs, com as suas complexidades e racionalidades, o tempo da existência ao tempo da produção. O fim de semana adquiriu uma existência autêntica e importante, pois após uma semana de produção é concedido ao trabalhador o benefício de um intervalo para a realização de outras atividades (particulares) ou descanso. Logo, o fim de semana passou a regular o comportamento social e a criar a expectativa da sexta-feira (RYBZINSKI, 2000).
A sexta-feira, portanto, transformou-se no dia de fazer as malas para “passar o fim de semana” em lugares onde não se vive rotineiramente durante a semana. Tornou-se um hábito e um costume viajar no fim de semana, seja para as regiões montanhosas ou para a praia. É o tempo, por excelência, concedido aos citadinos para o lazer que envolve o descanso ou atividades recreativas como jogos, passatempos, esportes, atividades físicas, turismo. Tudo era válido para ‘sentir-se vivo’ e fugir da clausura dos escritórios, das tensões para ter sucesso no emprego e do tédio do trabalho burocrático ou mecanizado. O lazer, enfim, alcançou o mesmo valor social que era, então, concedido apenas ao trabalho.
O hábito das viagens de lazer nos finais de semana, feriados e férias, propiciou o advento do turismo em massa: empresas de ônibus e aviação – com ofertas de serviços nacionais e internacionais – aproveitaram para explorar os passeios anuais dos operários e agricultores ao litoral. Os resorts e o camping ganharam popularidade e os outrora tranquilos refúgios aristocráticos – como a Riviera Francesa – transformaram-se em novos cenários dos “prazeres do sol”. Além disso, o fim de semana e o turismo possibilitou que “outros locais (descobertos ou redescobertos), que ganhavam destaque em livretos vistosos e na mitologia popular” (JUDT, 2008, p. 349), se tornassem financeiramente acessíveis às camadas populares da sociedade.
O turismo trouxe consigo toda uma estrutura socioeconômica que se fazia necessário para atender às demandas dos estilos de vida emergentes. O entusiasmo para aproveitar o fim de semana ao “ar livre” estimulou a indústria, o comércio e os serviços especializados em atendimento ao público viajante. Todos os apetrechos inventados pela indústria para o consumo dos turistas acabaram por se tornar ícones da prosperidade, desde peças de vestuário (roupas e calçados esportivos, principalmente), até produtos eletrônicos (máquinas fotográficas, implementos utilizados em esportes radicais, etc.). Esse turismo em massa dos anos 1950-60, na Europa, caracterizou-se pela convergência de um número excessivo de pessoas e automóveis sempre para os mesmos locais (lugares da moda ou da tradição), geralmente nos mesmos dias ou épocas (feriados, fins de semana, férias). Isto provocava enormes filas de automóveis causando congestionamentos nas autoestradas estreitas e sem condições adequadas para receber tamanho fluxo de veículos, como nunca até então havia, e que pioravam a cada ano (JUDT, 2008).
É no final do século XX que atividades como escalada, caminhada e equitação ganham uma nova roupagem e passam a integrar a agenda dos “esportes da natureza”, sem o necessário espírito competitivo, porém, remetendo a um passado romântico onde, o passeio a pé ou a cavalo, se constituía em momentos de prazer. A isso, juntou-se a bicicleta e o advento do cicloturismo, que fez expandir ainda mais as atividades turísticas nas áreas verdes e nos ambientes elevados à categoria de histórico-culturais. Aos poucos, portanto, se oficializava um espaço específico destinado ao não-trabalho, obrigando a uma organização dos lazeres de maneira que esse tempo disponível fosse financeiramente compensado àqueles que o instituíram. A partir daí, o tempo livre deixou de ser livre, pois, a diversão e o entretenimento tornaram-se os elementos principais do lazer, que, em si mesmo, tornou-se um negócio. O tempo livre era para ser destinado ao ócio, o que veremos na última parte desse artigo. Porém, banalização da vida e o surgimento de uma cultura urbano-capitalista de consumo, juntamente com a comercialização do tempo disponível, fez do lazer apenas uma representação da melhoria da qualidade de vida (JUDT, 2008).
Compreendendo o lazer a partir da ocupação do tempo livre para, de fato, ser um tempo livre, subentende-se que nesse espaço as atividades desenvolvidas não devem lembrar em nada as tensões e automatizações do trabalho. Entretanto, a divisão racional da existência social (trabalho / lazer) foi tão insistentemente inculcada que as pessoas não sabem mais dispor do tempo disponível a elas concedido, tempo esse que ficou subjugado às ofertas do negócio do lazer.
Vejamos o caso do camping, como exemplo do lazer que se transformou em negócio. O camping – o antigo movimento juvenil, de pessoas que gostavam de acampar – era um modo de protesto contra o tédio e o convencionalismo da sociedade capitalista dos anos 60. Os jovens acampavam porque, literalmente, queriam sair de casa para “passar-a-noite-a-céu-aberto”, escapar de casa e da família. Entretanto, quando o camping perdeu sua força de contestação entre os jovens, a indústria cultural se aproveitou disso para institucionalizar o camping, como uma atividade de lazer. Acampar é uma expressão de liberdade e, as pessoas, de um modo geral, anseiam por liberdade.
Em torno disso, foram desenvolvidos inúmeros produtos que estimulassem a uma demanda para as pessoas acamparem nos finais de semanas e feriados. Assim, a necessidade da liberdade tornou-se funcional e comercial. O que ocorre é que, até aquilo que as pessoas mais querem – liberdade – se torna uma imposição, pois as pessoas não percebem que a própria liberdade de escolha lhes foi subtraída.
O mesmo princípio é válido para o hobby. Todos devem ter um hobby, um passatempo. Porém, o mesmo já foi escolhido de acordo com a oferta do negócio do tempo livre. Trata-se de uma liberdade organizada que, em essência, é coercitiva. É como um fato social, que se impõe, uma convenção. Se você não tem um hobby, se o seu tempo livre não é ocupado por algo que a sociedade diz que é o certo ou ideal, então você é muito pretensioso ou antiquado (ADORNO, 2008).
Assim, por não perceberam mais o quanto não são livres, onde mais se sentem livres, as pessoas não o são. Quando a sociedade se apodera das práticas culturais para consumação, ela faz das coisas da vida as coisas do mundo, e o resultado é que o lazer e o turismo acabam substituindo aquilo que a humanidade fazia como expressão de sua criatividade e espontaneidade em sua relação com a vida (ADORNO, 2008).
Referências
ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria.
ELIAS, Norbert. A busca da excitação: desporto e lazer no processo civilizacional.
JERONYMO, Vanice. Caieiras: núcleo fabril e preservação.
JUDT, Tony. Pós-Guerra: história da Europa desde 1945.
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal.
ORY, Pascal. “O corpo ordinário”. História do corpo: as mutações do olhar. O século XX.
RIBZYNSKI, Witold. Esperando o fim-de-semana.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo (1905).
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