A perda de tempo é uma abominação para o espírito (Ptaotepe, 2.500 a.C.)
O ócio
Ócio origina-se do grego scholé, que significa “tempo livre para se dedicar à busca pelo conhecimento”. Para Aristóteles (Séc. IV a. C.), o ócio era o princípio das boas ações. Para os antigos gregos, somente era possível aprender algo quem tivesse tempo livre para observar e estudar a natureza. Portanto, o ócio constitui-se no tempo destinado a aprendizagem que, em sua essência, deveria ser algo de interesse genuíno, e que levasse à descoberta de um aprender a ser, a sentir, a fazer, e que culminasse em um saber-fazer-acontecer que propiciasse uma vida melhor, não apenas para o indivíduo, mas, principalmente, para toda a comunidade. O ócio é o tempo para contemplar a vida, aprender com ela; é no ócio que encontramos as respostas para o sentido da vida e o significado da existência.
O ócio não tem qualquer relação com ‘matar o tempo’, ficar de papo-para-o-ar, entreter-se em distrações ou alienar-se em qualquer tipo de divertimento. Preguiça ou vadiagem estão associados ao trabalho, como o seu reverso. A falta de compromisso no trabalho remete a uma noção de indolência, moleza ou inatividade. Essa ociosidade malévola não tem nada a ver com o ócio. Embora o ócio, opondo-se ao trabalho, remeta a um “não fazer nada”, isso não significa que, no ócio, “não há nada a fazer”. Pelo contrário.
Há muito o que fazer no ócio. O ócio é o tempo consagrado à sabedoria, pois somente no ócio é que podemos refletir sobre a realidade em que estamos inseridos. O trabalho nos aliena, pois toma de assalto o tempo da nossa existência; o ócio nos liberta, pois nos devolve o tempo da nossa vida. Somente no ócio é que surgem respostas profundas às nossas mais variadas dúvidas sobre quem somos, o que estamos fazendo aqui e porque estamos fazendo o que fazemos do jeito que fazemos. O ócio é o momento da expansão da consciência e do aflorar da sabedoria. O ócio é o tempo, por excelência, destinado à criatividade.
A respeito desse ócio criativo, vejamos o que disse um renomado historiador:
Estamos imersos numa situação que eu chamarei de "tarefeira", apagando um incêndio aqui e outro ali, nós cada vez mais perdemos a noção deste ócio que faz criar; que é diferente de não fazer nada. (...) O ócio criativo é a capacidade de eu me entregar a uma música, a uma atividade lúdica, a um filme, a uma peça de teatro, uma situação afetiva em família, e dali extrair ideias, pensar e me entregar a uma criação que pressupõe maior estabilidade, inclusive emocional. O ócio criativo é fundamental para eu poder trabalhar. Nós estamos cada vez mais workaholics ou worklovers, cada vez mais imersos em atividades que exigem nossa atenção imediata, prática, cronológica. Isso nos torna pessoas cada vez menos produtivas. É preciso o ócio criativo no sentido da capacidade de pensar, ter ideias, estabelecer estratégias e dar passos seguintes, o que é diferente de eu viver imerso nesse oceano de ações cotidianas
(Leandro Karnal)
Esse ócio, logo, é o tempo da oportunidade. Oportunidade de evoluirmos enquanto seres humanos. Ele não é cronológico. Ele é cairológico. Trata-se de um tempo que não se pode determinar ou medir; é a ocasião certa para se fazer o que é certo, na perspectiva de uma busca por conhecimento para além do proveito próprio. Enquanto o tempo cronológico nos devora com a sua quantificação insuportável, nos apavora com os ponteiros dos segundos que nunca cessam de girar, o tempo cairológico é qualificado; não tem a ver com a quantidade de coisas que fazemos ‘durante um tempo’, mas, sim, da qualidade daquilo que vivenciamos ao ‘longo de um tempo’. O tempo cairológico, portanto, é o tempo do ócio criativo, a ocasião de um acontecimento especial, qualificado, significativo. É quando nos sentimos plenamente vivos.
O ócio é o que nos permite vivenciar os momentos mais sublimes da nossa existência. Ele proclama o ritmo da naturalidade, onde tudo acontece a seu tempo, sem que necessitamos calcular nada, pois tudo ocorre naturalmente. Na natureza tudo se sucede em harmonia. Tudo se dispõe conforme o contexto se apresenta; e todo contexto se dispõe de acordo com o que a natureza apresenta. Pois tudo o que acontece, acontece em seu próprio tempo. Mas esse tempo não corresponde à lógica do relógio, que apenas avança, avança, avança. O tempo da natureza não é linear: é cíclico e se faz numa espiral, cujo enigma parece que estamos longe de decifrar.
Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz
(Eclesiastes, 3:1-8).
O tempo cronológico nos induz ao passado e ao futuro. As preocupações com o que temos que fazer e com o que deveria ter sido feito, mas não foi, sempre nos ronda e ameaça a nossa integridade emocional. Quanto mais contamos esse tempo, mais a sensação do fim se aproxima. Por isso ele nos devora, nos abate, nos consome em sua linearidade absurda. É um tempo que vem não sabemos de onde, e que nos leva para não sabemos onde. O que restará desse tempo, serão apenas nomes e datas em uma lápide e algumas poucas recordações do que fizemos, enquanto alguma memória restar de nós naqueles que nos conheceram, antes de evaporarem no tempo... O tempo cronológico é o tempo da condição humana em sua vida terrena. Tem início e fim. É o tempo do fator biológico e não está em nosso domínio ou controle; simplesmente nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. Seguimos o curso inapelável do estranho destino que se reserva a todo ser vivente. E não há nada que possamos fazer sobre isso.
Já o tempo cairológico, o tempo do ócio, é o tempo do Divino. Se o Divino está em tudo, e tudo é o Divino, então todo o propósito debaixo do céu está em conformidade com o Divino. Por isso, tudo acontece a seu tempo, no tempo do Divino. Por isso, o tempo do Divino é o tempo da sabedoria. Entrar em harmonia com a natureza é o modo ancestral de expressar a nossa espiritualidade mais profunda e reverenciar o Divino. É na prática do silêncio e da quietude, contemplando a natureza, que algo mais elevado nos é revelado; uma Presença se faz sentir e perceber, em sua abrangência e intensidade, quando estamos atentos, simplesmente, à nossa respiração. Fazer-se presente naquilo que se faz é estar em conformidade com o tempo do Divino, pois o Divino sempre está presente.
Sem nada que lhe dê alguma referência de tempo, relaxe e entre numa zona atemporal: sem destino, sem nada para fazer, livre de compromissos e horas marcadas, livre de pensamentos, memórias do passado e planos para o futuro. Simplesmente por estar presente e atento, você estará cultivando a consciência do agora. A primazia do momento é uma das primeiras coisas que você descobre quando se livra do tempo artificial. Nunca é cedo ou tarde, ontem ou amanhã. Mas sempre é agora. E podemos viver nesse momento presente independente de onde estivermos, sempre que quisermos
(Lama Surya Das)
O budismo nos legou uma importante contribuição sobre a questão do tempo. É na prática do Dharma que o ensinamento budista sobre o tempo pode ser verificado. Dharma é o caminho que temos que seguir para alcançarmos a compreensão da existência em toda a sua plenitude e, assim, vivermos uma vida com sentido e significado. Dharma é o modo de nos engajarmos na vida de maneira equilibrada, equânime; viver o Dharma é permanecer em um estado mental sereno e alegre, independente daquilo que vivenciamos, seja considerado algo agradável ou desagradável. Tudo o que fazemos, na prática, para o bem-estar pessoal e coletivo, e que nos traga benefícios duradouros e um sentimento genuíno de felicidade, mesmo durante as vicissitudes da vida, isso é seguir o Dharma.
A prática do Dharma, portanto, é a nossa jornada espiritual. O êxito dessa jornada, todavia, depende de avaliarmos constantemente as premissas que sustentam a própria prática. Os budistas denominam de preliminares, os pontos básicos da existência humana que devemos sempre examinar em nossa jornada espiritual. Essas preliminares são meditações discursivas, e que não necessitam de nenhuma postura específica para serem realizadas. Tratam-se de reflexões profundas sobre um determinado tema e que podem ser realizadas em qualquer momento do dia. E a primeira dessas preliminares é, justamente, referente a rara e preciosa vida humana de tempo livre e oportunidade.
Vejamos isso com mais atenção. A maioria das pessoas não dispõem de tempo livre, pois encontram-se em situação em que necessitam sobreviver. Embora isso não seja a nossa realidade atual, há milhões de pessoas que, diariamente, buscam por alimentos e água, precisam manter-se aquecidas, ou mesmo fugir de bombas e perseguições. Para quem vive em áreas onde a doença, a fome e a guerra fazem parte do cenário do cotidiano, esta circunstância é totalmente desfavorável à busca por algo mais elevado. Essas pessoas lutam bravamente pela sobrevivência física. Todo o seu tempo é ocupado por essa necessidade de sobreviver a todo custo. Elas não dispõem de tempo livre, sequer de oportunidades. Suas oportunidades dizem respeito apenas à sobrevivência. O tempo livre é um momento para respirar tranquilamente. Como respirar tranquilamente se as circunstâncias nos impelem a esquivar de doenças, bombas e perseguições?
Meditar sobre a preciosidade do tempo livre nos afasta de qualquer possibilidade de ficarmos à toa por aí, ‘matando o tempo’. Se refletirmos sobre o quanto desperdiçamos o nosso precioso tempo livre, enquanto outros lutam com bravura apenas para sobreviver, que pensamentos e sentimentos nos sobrevêm? Somente quando compreendermos que estamos ‘jogando fora’ o nosso precioso tempo livre com coisas que em nada acrescentarão à nossa vida, então, a nossa jornada espiritual irá alavancar. Talvez brote em nós a compaixão por aqueles que não foram agraciados pelas bençãos do tempo livre. Apreciaremos muitas coisas que antes pareciam não ter nenhum significado. Nosso propósito na vida, certamente terá um novo rumo.
O ócio, portanto, é a oportunidade que temos para descobrir nossas capacidades e desenvolver nossas habilidades para que possamos nos engajar na vida, sem que ela nos arraste em seu torvelinho. Tempo livre e oportunidade são coisas raras na vida da maioria dos seres humanos. Dispor de tempo livre e, ainda assim ter a oportunidade de elevar-se espiritualmente, é algo precioso na vida de qualquer pessoa. O ócio é a oportunidade rara e preciosa para encontrarmos circunstâncias apropriadas que nos propiciem a busca por algo mais elevado. Para os budistas, a combinação de tempo livre e oportunidade na vida de uma pessoa é considerado algo raro e, portanto, precioso. E essa combinação representa a chave que abre a porta para a felicidade genuína.
***
Chegamos ao final de nossas reflexões sobre o tempo. Façamos um apanhado geral.
O tempo da existência, quando subordinado ao tempo do capital, impede-nos de expressar a nossa liberdade. Temos que trabalhar. Não que isso seja algo prejudicial ou que deve ser evitado. O trabalho tem seu valor, é algo digno e pode nos trazer muito mais do que reconhecimento social ou conforto material. A questão é que o tempo destinado ao trabalho tem pouco valor ante os imperativos do capital. Vendemos o nosso tempo de existência por um preço muito baixo, quando sequer deveríamos vender nosso tempo, pois esse tempo não mais se recupera; é o tempo de nossa vida, destinado ao alcance de propósitos mais elevados do que a mera sobrevivência ou para enriquecer outros.
Quando um tempo livre do trabalho foi nos destinado, o lazer, esse foi aliciado pelos imperativos do capital. As atividades de lazer tornaram-se atividades de consumo, e o que consumimos, nessas atividades, é apenas aquilo que o mercado do turismo e o comércio do lazer nos destina. Esse tempo, que realmente deveria ser livre, ficou obscurecido pelas ofertas do lazer, condicionando, desse modo, as nossas escolhas. O lazer, nessa perspectiva, tornou-se mais uma área de nossa vida onde o tempo da existência ficou subordinado aos padrões sociais de consumo que ditam o que devemos fazer em nosso tempo livre. Assim, tanto no trabalho, quanto no lazer, ou seja, na ciranda do tempo histórico, o tempo da existência se esvai, sem que disso temos clara percepção.
O tempo da natureza, apresenta duas faces: uma delas é o tempo cronológico, aquele que define uma linearidade entre o início e o fim de tudo o que vive. Ele é implacável. Para o tempo cronológico, tudo surge, corre e cessa; tudo tem data de validade, sem direitos a prorrogações. Se nos deixarmos apenas levar por ele, ele nos devora, sem piedade. De certo, ele nos devorará a seu devido tempo. Mas não precisamos nos preocupar com ele, pois ele é o tempo de nossa existência. Não viveremos mais do que ele determina para nós. Por que se preocupar? Por que a pressa?
O relógio nos apressa. É o tempo medido. Ele nos lembra de que o ‘tempo passa’, que essa linearidade passa rápido, pois os ponteiros não cessam suas voltas infinitas. Quando olhamos para um relógio, os primeiros pensamentos que surgem são: ‘estou atrasado’ e ‘não tenho tempo’. Correr atrás, essa é máxima do relógio: só quem corre atrás, chega na frente. Coisa estranha de se pensar... Parece estratégia de corrida de 800m. Se nos entregarmos a esse tempo artificializado do relógio, ele nos consumirá ainda mais rapidamente. Por isso, temos que saber lidar com ele, para não sermos devorados antecipadamente.
Mas o tempo da natureza tem outra face: o tempo cairológico. Esse é o tempo em que as coisas se renovam. Não é marcado pela linearidade, mas pelo movimento cíclico e em espiral. Cíclico, pois no tempo cairológico nada se repete, tudo se refaz e revigora, mesmo que pareça se repetir; e seu movimento é uma espiral, pois sempre avança em direção a algo mais elevado. Enquanto o tempo cronológico nos aprisiona na natureza, dando a impressão de que dele jamais escaparemos, o tempo cairológico nos liberta da natureza, pois ele se apresenta como a oportunidade de experienciarmos a plenitude da existência.
O ócio é a expressão maior desse tempo cairológico. O ócio é o tempo livre por excelência. Livre não no sentido de que nos serve para fazer nada, mas que se apresenta como oportunidade preciosa para compreendermos o quanto o tempo de existência deve ser utilizado com sabedoria. Ele nos ensina que o ‘tempo passa’, sim, é um fato incontestável; mas também ensina que, se não aprendermos a nos apropriar desse ‘tempo que passa’, ele passará muito depressa e não perceberemos. Assim como o tempo se apropria de nós (o nosso prazo de validade), temos que nos apropriar do tempo (a nossa garantia de liberdade).
É a consciência do momento presente, no aqui e agora, que nos liberta da pressão do tempo que passa, inapelável. Portanto, respire, sorria, relaxe. Um dia de cada vez: é assim que se vive com sabedoria no tempo Humano; e é assim que habitamos o tempo Divino. Lembre-se: o tempo livre é sagrado, e a oportunidade é preciosa. Carpe diem quam minimum credula postero.
Botões de rosa
(Versão do poema To the virgins, to make much of time, Robert Herrick, 1591-1674)
Colham botões de rosas enquanto podem, O velho Tempo continua voando: E essa mesma flor que hoje lhes sorri, Amanhã estará expirando.
O glorioso sol, lume do céu, Quanto mais alto eleva-se a brilhar, Mais cedo encerrará sua jornada, E mais perto estará de se apagar.
Melhor idade não há que a primeira, Quando a juventude e o sangue pulsam quentes; Mas quando passa, piores são os tempos Que se sucedem e se arrastam inclementes.
Por isso, sem recato, usem o tempo, E enquanto podem, vivam a festejar, Pois depois de haver perdido os áureos anos, Terão o tempo inteiro para repousar.
Referências
DE MASI, Domenico. O ócio criativo.
LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça.
RUSSEL, Bertrand. O elogio do ócio.
SURYA DAS, Lama. O tempo do Buda.
WALLACE, Alan. Budismo com atitude.
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