Artigo escrito por Vanice Jeronymo e Marcelo Augusti, publicado na Revista Restauro
O que a impermanência e a transitoriedade têm a ver com as questões relativas ao patrimônio material edificado? Esta é a reflexão que se pretende neste artigo, a partir da explanação de diferenças filosóficas entre o Ocidente e o Oriente no que diz respeito às práticas e formas de compreender a matéria e a necessidade de preservá-la ou não. Assim, iniciamos o debate com um breve comparativo entre o entendimento da tradição filosófica ocidental e a perspectiva budista sobre a natureza da realidade. Estes se constituem nos indícios que nos levarão às particularidades entre o Ocidente e o Oriente na questão dos desejos, necessidades e angústias para lidar com a perda ou com a preservação da matéria. Para ilustração da questão, será utilizada como exemplo ocidental, ainda que sem aprofundamento teórico, a condição material de alguns remanescentes da arquitetura ferroviária e industrial do interior paulista.
O impermanente e o transitório: diferenças filosóficas entre o ocidente e o oriente
Vento alto não dura a manhã toda. Nem chuva repentina dura o dia todo. Céu e Terra não estão preparados para fazer coisas que durem para sempre. Assim, como é possível para o homem?
[Provérbio Taoísta].
Os termos impermanência e transitoriedade parecem não pertencer às questões filosóficas do mundo ocidental moderno. Uma busca em um dos mais conceituados dicionários de filosofia da atualidade não constatou referências a tais conceitos. Dentre tantas as definições para a filosofia, em Francis Bacon (1561-1626) talvez se encontre a razão pela qual os ocidentais, de um modo geral, não incluem em suas reflexões e contemplações a questão da impermanência e da transitoriedade. Para Bacon, “a filosofia é o conhecimento das coisas pelos seus princípios imutáveis (grifo nosso), e não pelos seus fenômenos transitórios” (grifo nosso).
Bem se entende que a filosofia ocidental moderna parece ter se dedicado às coisas imutáveis da natureza (considerada como as causas de suas formas), deixando de lado tudo o que é transitório. Assim, as leis da natureza (suas causas) são entendidas como a essência da própria natureza e dispostas ao conhecimento objetivo pelo ser humano. Esse conhecimento, então, é algo mais que a experiência humana pode comprovar subjetivamente, pois é possível de ser averiguado pela observação das leis da natureza e, principalmente, passível de ser traduzido em linguagem conceitual e, assim, tornar-se inteligível e universal. Seria esta, portanto, a finalidade da filosofia ocidental moderna, ou seja: investigar a natureza em sua permanente imutabilidade (suas leis objetivas), desprezando tudo que é exposto à mudança e se dissipa no tempo e espaço, para dela extrair o conhecimento universal que a tudo abarca.
Para a filosofia ocidental moderna, logo, a essência imutável constitui-se das leis físicas da natureza. Porém, o que é a natureza? Seria, ao contrário dessa imutabilidade essencial, o mundo dos “fenômenos transitórios”, ou seja, o tempo / espaço onde tudo surge e se dissipa, onde miríades de coisas nascem, crescem, permanecem por determinado período e desfalecem? Como disse, no século XVIII, o filósofo luso-brasileiro, Matias Aires,
(…) a cada passo que damos no decurso da vida, vamos nascendo de novo, porque a cada passo vamos deixando o que fomos, e começamos a ser outros. Cada dia nascemos, porque cada dia mudamos, e quanto mais nascemos deste modo, tanto mais nos fica perto o fim que nos espera.
É certo, todavia, que a filosofia ocidental da Antiguidade Clássica já havia tratado da questão da impermanência a partir do conceito de devir. Em Heráclito de Éfeso (540 – 470 a.C.), “o pensador da mudança”, “o Obscuro”, encontram-se as referências primeiras sobre a questão da realidade da natureza, a mudança que se perpetua ao longo do tempo que, longe de seguir uma lógica constante, preza pela inconstância, pois tudo muda, inclusive a própria mudança. Este ‘vir-a-ser’ que, a todo o momento, transforma a natureza, não permite que qualquer mudança possa ser apreendida pelo ser humano, pois no ato da mudança já se encontra em curso outro processo de mudança. Como diria o poeta, “a firmeza somente na inconstância”.
Mas em Heráclito, a beleza e perfeição da natureza estão, exatamente, em seus opostos: dia e noite, calor e frio, água e fogo etc. É esse jogo incessante dos contrários, esse enigma proposto pela natureza que, paradoxalmente, permite que alguém atravesse um rio (um nome, um conceito) inúmeras vezes, porém, nunca sobre as mesmas águas que fluem na inconstância das estações (a realidade da natureza, o devir). É deste modo que, em Heráclito, o devir e seu contrário, isto é, a permanência, possibilitam que as transformações se perpetuem, sendo isto a essência da realidade.
Heráclito parece ter bebido da fonte da sabedoria oriental. Na tradição filosófica inaugurada por Sidarta Gautama, o Buda (Séc. VI a. C.), os fenômenos da natureza, incluindo todos os seres vivos e tudo o mais que constitui o Universo, não se originam independentemente; porém, sua gênese é dependente, isto é, tudo segue o princípio da causa, condição e efeito. Se algo existe, algo preexistiu anteriormente e assim, sucessivamente. Portanto, nada existe no mundo por si mesmo; os fenômenos, a natureza, logo, não possuem uma essência imutável, mas, impermanecem na transitoriedade. Se há uma imutabilidade, esta é a própria impermanência das coisas. Deste modo, se tudo surge devido a causas e condições, tudo também se dissipa pela mesma razão: se as causas e condições que sustentam um fenômeno forem removidas, o fenômeno cessa de existir. Pois é na interação das causas e condições que o mundo, a natureza, ora se sustentam, ora se dissipam.
Para a compreensão da gênese condicionada a questão da impermanência é fundamental. No mundo da existência material, “todos os fenômenos interagem constantemente uns com os outros, sempre se influenciando mutuamente e todo o tempo levando a mudanças” [8]. Tudo que existe no mundo fenomênico, portanto, segue o processo inexorável do surgimento, da permanência temporária e da dissipação. Na visão budista, não apenas a matéria sofre transformações, mas a impermanência se dá, inclusive, com as percepções mentais, que se alteram de um momento para outro, afirmando que os pensamentos e emoções fluem incessantemente, sucedendo-se ininterruptamente, alternando-se do agradável para o desagradável até a indiferença. Para a filosofia budista, “os fenômenos não apenas passam de um estado para outro, mas realmente se transformam sem cessar, a tal ponto que, depois de longos períodos de tempo, nenhum de seus aspectos terá permanecido o mesmo”.
Em linhas gerais, tecemos as considerações sobre o impermanente e o transitório e as diferenças filosóficas entre ocidente e oriente. Que tudo muda, que tudo se transforma, parece não ser difícil perceber. A impermanência – o movimento, o transitório – parece ser a única lei imutável que à realidade se aplica. Assim,
Vimos ao mundo a mostrar-nos, a fazer parte da diversidade dele; parece que as coisas nos vão fugindo, até que nos vimos a desaparecer também. Somos formados de inclinações opostas entre si, e temos em nós uma propensão oculta que, sob a aparência de buscar os objetos, só procura neles a mudança. A inconstância nos serve de alívio, e nos desoprime, porque a firmeza é como um peso que não podemos suportar sempre, por mais que seja leve: e, com efeito, como podem as nossas ideias ser fixas, e sempre as mesmas, se nós sempre vamos sendo outros?
Tudo o que existe, portanto, carrega em si a marca do devir, do impermanente. A existência, pois, é movimento, um fluxo incessante de vir-a-ser e desaparecer. Tal fluxo, contudo, é imprevisível, ora proporcionado pela própria natureza, ora pelas inclinações e a inconstância dos seres humanos, sempre se modificando no processo do existir. Mas o que a impermanência e a transitoriedade tem a ver com as questões relativas ao patrimônio material edificado, é o tema a ser desenvolvido a seguir.
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