Não há nenhuma nobreza em ser superior a outro homem, pois a verdadeira nobreza é ser superior ao próprio ego (Provérbio hindu)
O sistema hierárquico da antiga sociedade Védica (1500-600 a.C.), preconizava a existência de quatro varnas (qualidades predominantes) que, estabeleciam as funções e os deveres de cada indivíduo, conforme a camada socioprofissional ao qual pertencia, de acordo com a condição de seu nascimento (jati).
As camadas socioprofissionais hindus eram compostas pelos brâmanes, kshatriyas, vaishyas e shudras. Cada uma delas representava um varna. Logo, a cada indivíduo, em conformidade com a sua camada, correspondiam funções e deveres específicos.
Os varnas representam um princípio de pureza ritual, cuja origem corresponde a uma das partes do Ser Cósmico (Purusha). Conforme a filosofia Samkhya, essas partes estão relacionados aos varnas:
1. A boca, que equivale aos brâmanes, isto é, os sábios, sacerdotes e professores, e que se refere a tudo aquilo que é mais puro;
2. Os braços, que equivale aos kshatriyas, ou seja, os guerreiros e governantes;
3. As coxas, que equivale aos vaishyas, isto é, os agricultores e comerciantes;
4. Os pés, que equivalem aos shudras, ou seja, os serviçais.
Os dois primeiros varnas são considerados superiores aos dois últimos, pois se localizam acima do umbigo do Ser Cósmico. Havia, também, um quinto elemento, os párias, que eram os nascidos da terra, não tendo correspondência com nenhuma parte do Ser Cósmico; eram intocáveis, pois o contato com eles contaminava a pureza dos demais. A principal função dos párias era o trabalho nos crematórios, a lida diária com a morte e os cadáveres.
Para simplificar a questão das funções socias e deveres (svadharma), os brâmanes eram responsáveis pelas práticas espirituais e intelectuais: o estudo dos Vedas, a direção dos rituais de purificação e a disseminação do conhecimento. Cabia a eles a conexão entre o Divino e o Humano e o compromisso de servir à Verdade. As virtudes que deveriam expressar eram a serenidade, o discernimento, a fé, o autocontrole e o ascetismo. Como homens sábios, também eram conselheiros dos kshatriyas.
Os kshatriyas eram os responsáveis pela administração das cidades e dos reinos, cabendo a eles a manutenção da ordem pública, da proteção e segurança do reino e da vigilância pela justa distribuição das provisões para todo o povo. Suas virtudes deveriam expressar a coragem, a firmeza, a lealdade e a justiça.
Aos vaishyas cabia o controle da economia, da produção de bens materiais e alimentos e do comércio em geral. Moderação, honestidade e engenhosidade correspondem às suas virtudes. E quanto aos shudras, suas tarefas se resumiam em assegurar a realização de todos os serviços necessários ao bem da coletividade, empenhando-se em todo tipo de trabalho braçal para os vaishyas, e prestando todo tipo de apoio serviçal aos brâmanes e kshatriyas. Era pela dedicação, obediência e esforço que expressavam suas virtudes.
Cada varna sintetiza uma das quatro aspirações materiais da alma encarnada (jiva) ou os quatro estados de consciência que se relacionam às necessidades existenciais de cada indivíduo que habita o corpo físico e está no plano terreno caminhando pela senda da evolução espiritual.
Em correspondência aos quatro elementos constitutivos básicos da matéria (terra, água, ar e fogo), relacionam-se cada um dos varnas:
1. Os brâmanes, ou seja, aqueles que alcançaram a consciência mais elevada, correspondem ao elemento fogo, pois consumiram todas as suas identificações falsas, livraram-se de todas as ilusões materiais e estão firmemente estabelecidos no conhecimento da Verdade e no Real Imperecível; como o sol, eles irradiam a “luz do conhecimento” para todos os seres, iluminando as trevas da ignorância;
2. Os kshatriyas são aqueles que estão na busca pelo autoconhecimento, pela emancipação de toda a ilusão que condiciona a mente e as ações humanas; correspondem ao elemento ar, pois, quando, pela severa disciplina mental, aprendem a controlar o seu ego, desejos, apegos e aversões, alcançam o desprendimento dos frutos de suas conquistas e realizações, elevando a consciência para ideais humanitários e transcendentais; tornam-se, assim, firmes na paz e no amor, disponíveis para proteger aos fracos e necessitados;
3. Os vaishyas se relacionam ao elemento água, pois buscam a expansão, ambicionam riqueza e prestígio; são cheios de vitalidade para diferenciar-se por meio de uma identidade própria, que tem a ver com o seu nome, sua família, sua profissão; os vaishyas necessitam estar submetidos a uma conduta ética e moral rigorosa, caso contrário, sua natureza expansiva o levará a desenvolver tendências egoístas e a cometer injustiças contra a coletividade;
4. Os shudras são aqueles que necessitam de segurança básica no mundo material, como moradia e saciedade; correspondem ao elemento terra, pois sua natureza é passível – fácil de modelar, como a argila; mais instintivos do que racionais, os shudras precisam ser comandados ou a sua falta de discernimento e esforço disciplinado, os tornam presas fáceis das ilusões daqueles que utilizam-se deles como “matéria-prima” ou “massa de manobra” para sustentar a ganância alheia pelo poder.
O varnashrama, como é denominado essa estrutura social e a configuração que lhe permite a dinâmica funcional, concede aos indivíduos de todas as camadas socioprofissionais a autorrealização espiritual.
Na cosmovisão hindu, a sociedade é um corpo único que possibilita às pessoas que a compõem, a correta movimentação em direção ao purusharta, isto é, a realização dos quatro objetivos da existência: kama (prazer sensorial), artha (riqueza material), dharma (cumprimento dos deveres prescritos) e moksha (liberação das ilusões da matéria).
O princípio norteador da autorrealização espiritual está no dharma, ou seja, no fato de que cada indivíduo deve cumprir seus deveres socioprofissionais de modo correto, com dignidade e decência. Cumprir o dharma (a Lei Cósmica), significa que o indivíduo está restituindo ao Universo tudo o que lhe foi concedido, de acordo com o seu karma (suas ações passadas que condicionaram as circunstâncias do seu nascimento atual).
O varna, ou seja, as qualidades predominantes e determinadas a cada camada socioprofissional, é apenas a atualização e a continuidade, na vida presente, de um estado de consciência que movimenta-se em uma espiral, ora em ascensão, ora em descensão, onde as almas encarnadas, conforme suas ações no cumprimento dos deveres, elevam-se até moksha ou decaem e permanecem aprisionadas ao samsara, a existência ilusória. Enquanto a alma encarnada peregrinar pelas periferias, e não conseguir, pelo yoga, estabelecer-se no centro dessa espiral (o Ser imutável), o vir-a-ser nunca terá fim.
O varna, logo, constitui-se no tempo e espaço onde a alma, em sua jornada peregrina, pode expressar o seu potencial; é a alma e seu karma que se ajustam a um determinado varna. É nesse tempo/espaço social que cada indivíduo terá a possibilidade de revelar seus talentos e libertar-se de seus medos e condicionamentos.
O princípio da pureza ritual que caracteriza o varna não se encontra no sistema em si, porém, nas ações dos indivíduos e seus méritos. Isto significa que não é a hereditariedade (“ser filho deste ou daquele”, “ter nascido nesta ou naquela camada”) que determina a condição privilegiada ou de desprestígio do indivíduo em relação à sua posição social.
Embora o karma condiciona as circunstâncias do nascimento, o karma também é a condição da nossa liberdade, desde que se compreenda que nossos pensamentos, palavras e ações são os fios da rede que tecemos ao nosso redor, e nessa rede (de intrigas e prazeres, alegrias e sofrimentos), ou nos emaranhamos e nos perdemos, ou a rompemos e nos libertamos da precariedade das circunstâncias.
Assim, como bem disse o venerável Buda: “não é pelo nascimento que um ser humano se torna Brâmane, Kshatriya, Vaishya ou Shudra; mas é pelas suas ações que um ser humano se torna Brâmane, Kshatriya, Vaishya ou Shudra.” Quando compreendermos que a nobreza do ser humano está no fato de que ele se encontra num lugar justo à sua condição, e que neste lugar ele age corretamente, cumprindo seus deveres com exatidão, disposição de ânimo e alegria de espírito, conforme as exigências do varna ao qual ele se encontra, sem envolver-se nas questões alheias, então, de fato, teremos alcançados a integridade com a Ordem Cósmica.
Estamos, portanto, diante de uma lei natural e universal da evolução humana e o despertar da consciência. O varna corresponde ao svabhava, ou seja, à natureza específica de cada indivíduo, e indica precisamente o seu dever para com o Universo, aquilo que lhe foi atribuído para a contribuição da manutenção da harmonia e equilíbrio da vida. Cumprir com dignidade e decência os deveres socioprofissionais é o que se denomina karma-yoga, cujas orientações se encontram ampla e profundamente inscritas no Bhagavad Gita.
Quando um indivíduo atua de modo contraditório ao seu varna, misturando elementos de outro varna que em nada correspondem às exigências de sua conduta socioprofissional, diz-se que ocorre uma degeneração na orientação da conduta. Essa degeneração ou contaminação é denominada varna-bhassa, que indica que houve uma incompatibilidade de comportamentos, que pode se expressar por imitações, falsidades e perversões.
Os deveres de cada camada socioprofissional não se misturam. Independentemente do indivíduo gostar ou não do seu dever, qualquer adulteração ou negligência provocará desarmonia e desequilíbrio na ordem social. Por exemplo, quando um brâmane compartilha seu conhecimento espiritual com o público, sem nenhuma intenção de recompensa ou algum privilégio particular, mas faz por ser correto fazer, ele está agindo corretamente.
Se, pelo contrário, ele busca recompensas materiais e benefícios particulares (dinheiro, prestígio, liderança política, manipulação de seguidores e instituições), ele desvia-se do espírito bramânico, perverte sua ação, que torna-se incompatível com a sua função e atividade, corrompendo a sua conduta socioprofissional e contaminando todo o ambiente.
O Bhagavad Gita nos traz o relato do Arjuna, comandante dos exércitos, um kshatriya, que, nos instantes anteriores à batalha de Kuruksetra, tem uma crise de identidade. Nas fileiras adversárias, haviam muitos de seus familiares e amigos; Arjuna, então, refuga, e pretende desistir da batalha; sem nenhuma disposição de ânimo, considera que a compaixão seria melhor do que a luta. Entretanto, alertado por seu cocheiro, que na verdade era o próprio Ser Superior, Krishna, Arjuna recobre a consciência e vai à guerra, combatendo com bravura a todos os inimigos e saindo vencedor.
Krishna mostrou a Arjuna que a compaixão é incompatível com o guerreiro que está prestes a digladiar até a morte com o inimigo; ao guerreiro cabe coragem, firmeza e bravura indomável. A compaixão, nesse momento, mostra fraqueza de caráter, pois não corresponde ao dever prescrito ao guerreiro; afinal, ele está em uma posição em que a segurança e proteção do seu povo dependem de sua atuação correta e infalível para superar os inimigos e, assim, não sofrer as terríveis consequências que uma derrota acarretaria a todos.
A questão das profissões, do trabalho e das ocupações socioeconômicas apresenta-se, para a maioria das pessoas, como uma oportunidade nobre para o alcance da liberação do karma ou do seu prolongamento nas próximas vidas. Professar uma atividade significa uma declaração pública, uma promessa à coletividade, um juramento aos preceitos morais e éticos, onde se assume o compromisso de cumprir com a verdade, estabelecido na honra, honestidade, decência e dignidade na execução de suas funções.
A atividade profissional, nesta perspectiva, é uma via para a autorrealização espiritual. Esta via ou Caminho da Habilidade, requer de seus adeptos o pleno compromisso com o exercício profissional. A dedicação integral ao ofício ou trabalho escolhido, faz da profissão algo sagrado e um acesso extraordinário para o autoconhecimento.
Muitas e importantes reflexões, no contexto do yoga, podem decorrer a partir de questionamentos que envolvam o exercício profissional, no sentido de encontrarmos “a nós mesmos em nós mesmos” e, assim, aprendermos a conduzir nossa vida com sabedoria, serenidade e harmonia, expressando o que há de melhor em nós.
Hari Om Tat Sat.
De mais a mais, visando o teu próprio dever, não vaciles, porquanto, para um príncipe da classe dos guerreiros, nada é superior à uma guerra justa. Felizes são os guerreiros chamados a lutar numa batalha dessa natureza, que lhes vem espontaneamente como uma porta aberta para os céus. Lute apenas por lutar sem pensar em perda ou ganho, em alegria ou tristeza, em vitória ou em derrota, pois, agindo desse modo, você nunca estará em erro. O trabalho que é feito sem apego a resultados, corresponde à via correta. Quem segue por esta via de maneira resoluta possui a mente liberta. Mas a mente do indeciso segue muitas direções (Bhagavad Gita, Canto II).
Muito bom!