Se a essência é esquecida, o ritual toma conta. E quando o ritual domina a prática espiritual, as aparências exteriores se tornam mais importantes que a experiência interior.
(Haemin Sunim)
Na tradição do yoga, Sadhana (atividades referentes às práticas espirituais e a própria prática em si) é a Ciência da Autocultura. Autocultura ou “cultivo de si mesmo” significa dedicar-se ao estudo do “mundo interior”, da alma e do espírito.
A essência da Autocultura é o alcance de uma vida de perfeita liberdade, de plena consciência e união com o Ser Supremo, de modo a compreender a Vontade Divina e pôr em prática os seus desígnios.
Para o desenvolvimento de nossa natureza espiritual, a Autocultura visa a purificação da mente, isto é, a remoção dos conteúdos que condicionam o nosso comportamento, e que obscurecem a correta percepção da realidade. Tem por objetivo, assim, nos livrar das ilusões do egoísmo.
Os seres humanos, divinos em sua essência, carregam em si todas as qualidades e poderes associados ao Ser Supremo. Tais qualidades, todavia, encontram-se em estado germinal. É o cultivo desse “solo fértil” que leva ao desenvolvimento gradual desses poderes e qualidades, conduzindo-nos a uma expansão ilimitada da consciência e perfeição na conduta.
A Autocultura, portanto, é o que dá sentido à vida e significado à existência. Pela tradição do yoga, são necessárias muitas encarnações e muitas experiências psicofísicas em tempo/espaço os mais diversos, para que uma pessoa desperte a consciência para algo além da matéria e das preocupações com o “mundo exterior”.
Podemos dizer, metaforicamente, que em nosso “mundo interior” há um jardim a ser cultivado. Esse jardim, portanto, se encontra fora do “mundo exterior”; é o lugar onde habita o amor, a paz e a felicidade – suas flores mais belas e magníficas.
Como todo jardim, esse “jardim de bem-aventuranças” tem que ser cultivado, por meio de esforço correto e de muita dedicação e perseverança; trata-se de um lugar para nos resguardarmos do “mundo exterior” – um lugar para encontrarmos a verdadeira dignidade humana, o propósito divino e o próprio Divino que habita o interior desse jardim.
O sentido da vida está no cuidar desse jardim; o significado da existência está em fazer desabrochar as flores e gerar os frutos mais saborosos desse jardim. Assim, a Autocultura, é o objetivo maior de todo ser humano, o esforço consciente para fazer germinar a semente da bem-aventurança que cada um traz em si. Isto é a perfeição e a iluminação.
Yoga, portanto, é a Ciência da Autocultura; é o cultivo interior do amor, da paz e da felicidade, esses frutos sagrados que se expressarão na vida de cada pessoa, seja em seus pensamentos, palavras ou atos. É o princípio divino a desabrochar em nós.
No “mundo interior” é que se encontra o Atma – o princípio divino, o centro de nossa existência. Atma é autoiluminado, autodeterminado e autossuficiente. Mas veja: não é o Atma que será cultivado; porém, são as condições necessárias que devem ser cultivadas, para que os atributos de Atma se façam cada vez mais presente em nossa vida.
Os três atributos de Atma se expressam na vida de cada pessoa da seguinte maneira:
Autoiluminação, ou seja, o conhecimento de que necessitamos para o “cultivo do jardim”, se encontra em nosso próprio “mundo interior”; buscar fora o que se encontra dentro, é perder o precioso tempo. É durante a meditação que podemos acessar essa fonte inesgotável de sabedoria;
Autodeterminação, isto é, que a natureza espiritual deve ser predominante em nossa vida; somente assim, poderemos nos libertar do egoísmo. Para isso, temos que observar a Vontade Divina – o desabrochar das sementes da bem-aventurança – que conduz, cada um de nós, pelo caminho da bondade, da simplicidade e da humildade;
Autossuficiência, que quer dizer que paz, amor e felicidade são qualidades internas, que trazemos, desde sempre, em nosso “mundo interior”, e que não dependemos de nenhum estímulo, objeto ou circunstância externa para vivermos em serenidade, harmonia e contentamento.
A prática do yoga - a Autocultura -, portanto, desloca, aos poucos, a consciência das coisas materiais e preocupações mundanas para a vida interior; é esse fluir da espiritualidade que eleva a consciência, subjugando o egoísmo e unindo a individualidade pessoal ao Atma universal, despertando o indivíduo para a sua natureza divina.
A Autocultura é o caminho da perfeição; é a saída definitiva do mundo de ilusões e sofrimentos para a verdade da realidade espiritual, permitindo-nos a boa vontade e uma afinidade interior com todos os seres sencientes, pois o Atma que habita em mim, habita em todos. É a vida divina que se manifestará plenamente no plano físico, mental, emocional e energético de cada pessoa.
Quando, pelo yoga, os véus das ilusões vão se dissipando, então, poderemos perceber, claramente, a existência em toda a sua beleza e sabedoria transcendente. A prática da Autocultura requer constância, pois os primeiros sinais da elevação da consciência são evanescentes; se não estivermos firmes no yoga, logo seremos desapontados pelas frustrações do cotidiano e abandonaremos a prática.
Mas aqui vai um alerta: é certo que as redes virtuais facilitaram a comunicação entres as pessoas; porém, estas mesmas redes virtuais potencializaram a cultura da ostentação. Ostentar gera uma sensação de satisfação acentuada consigo mesmo, buscando atrair a admiração ou inveja alheia. Ostentar é um modo falso de tentar provar uma suposta superioridade sobre os outros.
Quem ostenta, portanto, busca autopromover-se. No caso do yoga, nas redes virtuais, o que mais se encontra, são pessoas postando cenas de seus cotidianos, fazendo-se notar, fotografar e filmar exibindo roupas e acessórios de marcas valorizadas comercialmente e, principalmente, mostrando-se em posturas físicas que requerem habilidades específicas ou realizando-as em lugares exóticos (geralmente, as duas coisas estão juntas).
Infelizmente, nossa sociedade atual encontra-se envolvida por um narcisismo cada vez mais inflado pelas redes virtuais. Isso leva instrutores a inventarem coisas para se autopromoverem (“métodos” de yoga revolucionários, por exemplo) e publicarem, religiosamente, suas peripécias ióguicas no Instagram, como se isso bastasse para serem considerados especialistas no assunto, e admirados e invejados pelos incautos.
Muito além das posturas “instagramáticas”, há de se considerar que o yoga entrou no rol de um mercado global do “turismo do bem-estar” que, em 2022, movimentou mais de US$ 800 bilhões, e com previsão de crescimento até 2030. Nesses tempos de consumismo exacerbado, o que observamos é que a superficialidade da autopromoção superou, em muito, a profundidade da Autocultura. Como já analisado pelo sociológo Gilles Lipovetsky, em sua obra A felicidade paradoxal, trata-se de um consumo emocional, em que se buscam constantes novidades, impregnadas de sensações que estimulem sentimentos de felicidade.
Temos que ter o cuidado para não fazer de Sadhana um meio para a autopromoção. Há vários caminhos a percorrer no yoga e muitos são os instrutores disponíveis; é necessário que encontremos o caminho adequado e o instrutor que nos guiará com segurança ao início da jornada ao "mundo interior", cujo objetivo nada tem a ver com a promoção de si mesmo ou pulsões de satisfação egóica.
Dedicar-se a Autocultura é um processo longo, que se inicia quando passamos a refletir - séria, ampla e profundamente - sobre as questões da existência. E quando não encontramos no “mundo exterior” as respostas aos nossos questionamentos, então, buscamos em nosso “mundo interior” – e somente nele - o conhecimento e a sabedoria que nos libertará de todas as ilusões da vida.
O yoga pode ter muitos caminhos. Porém, certamente, não é objeto de consumo ou prática de ostentação.
Hari Om Tat Sat.
Um dos traços chocantes dos tempos atuais é a falta de compreensão sobre a natureza do ser humano. O ser humano está tentando saber tudo no universo. Ele pode dizer com certeza de que são feitas as estrelas distantes de nós milhões de quilômetros. Ele conhece detalhadamente a constituição dos átomos e moléculas. Entretanto, sobre si mesmo praticamente nada sabe e, o que é pior, está muito satisfeito de viver sua vida sem cogitar de onde vem, qual a sua natureza real, porque está aqui neste mundo e para onde vai após a morte. É realmente espantoso como a grande maioria da população do mundo pode viver toda uma vida sem fazer essas perguntas naturais, ou mesmo tomar conhecimento de sua existência (I.K. Taimni)
Mais um excelente texto, professor Marcelo! O ano vai encerrando um ciclo de muito aprendizado. Saudemos 2023!