Se não for capaz de estabelecer a mente fixa em Mim, persista no esforço para Me encontrar em tudo aquilo que me representa (Bhagavad Gita, Cap. 12, v. 9)
A meditação é o estágio comum a todas as vias que conduzem à evolução da espiritualidade. O estado meditativo tem como base a concentração (dharana) da mente em um único objeto. No Sutras, Patanjali denomina o estado da “mente concentrada” de ekāgratā, ou seja, a capacidade absoluta de manter a atenção fixa em um único ponto.
Meditar é manter a mente livre de distrações, o que somente pode ser conseguido por meio da integração do fluxo mental, isto é, do contínuo e interminável ir-e-vir dos pensamentos. Busca-se, pela meditação, transpor o estado de sarvārthatā (a atenção difusa “que a tudo pretende alcançar”), para alcançar ekāgratā (a concentração imperturbável fixa no “uno”).
A clareza mental é consequência da meditação. Conforme os pensamentos se tornam menos dispersos, somo levados a um estado mental pacífico. Ao alcançar esta “mente pacífica”, começamos a perceber que são as distrações que nos causam desejos, apegos, aversões e provocam medos, angústias e sofrimentos.
Patanjali nos ensina no Yoga Sutras (3.11) que:
À medida que o hábito de buscar a tudo (sarvārthatā) é substituído pelo hábito de buscar o “uno” (ekāgratā), a mente concentrada (cittasya) alcança com o objeto a plena união (samādhi parināma).
Samādhi parināma, a “plena união”, é a transformação da mente que ocorre pelo processo de eliminação gradual das distrações e dispersões do fluxo mental, e que culmina no surgimento de uma concentração única, isto é, na integração dos pensamentos.
Na prática meditativa, é muito difícil desenvolver a “mente atenta” ou a “mente pacífica”, enquanto o corpo permanecer em posturas desconfortáveis ou cansativas, e a respiração não estiver tranquila e imperceptível. No yoga, a disciplina do corpo e a respiração tranquila são obtidas pela dedicação aos asanas (posturas fixas) e pranayamas (técnicas respiratórias).
Logo, para se alcançar o “estado meditativo”, se faz necessário uma “dedicação severa” (tapas) para superar os desafios do corpo inquieto, da mente agitada e da respiração apressada. A concentração e a plena atenção é fundamental nesse processo.
A integração do fluxo mental ou dhyana (meditação ióguica) concede ao praticante, portanto, a capacidade de unir-se plenamente a algo. Este “algo” pode ser Íshvara (se o praticante for um devoto amoroso - bhakta), o conhecimento supremo (se o praticante for um buscador da verdade - jñani) ou qualquer “objeto” que ele, yogui, queira unir-se para tornar-se “uno” com ele.
A meditação sobre alguém ou algo busca, assim, identificar-se com esse alguém ou algo, unir-se com ele, tornar-se uno com ele. Para Patanjali, o “objeto de meditação” (bhavyam), tanto pode ser uma divindade (Íshvara) quanto qualquer um dos “elementos da natureza material” (tattvas). Na tradição do Vedanta, entretanto, o objeto de meditação sempre é a divindade. Denomina-se esse processo de upasana, que significa “sentar-se para reverenciar”.
Considera-se upasana como a persistente dedicação direcionada para se alcançar o estado de concentração onde tudo o que é meditado é completamente identificado, absorvido e unificado pela consciência. Em outras palavras, upasana é o procedimento meditativo que leva “dois a se tornarem um”, ou seja, “você é isso”.
Upasana, portanto, vai além de dhyana, pois não se trata apenas de concentrar-se em um único objeto para uma plena união; porém, mais do que unir-se plenamente ao objeto, é “tornar-se o próprio objeto”, vivendo plenamente esta identidade na vida diária.
Upasana, assim entendido, é aproximar-se de um ideal escolhido ou objeto de adoração, para contemplá-lo, fervorosamente, conforme os ensinamentos dos Shástras (escrituras sagradas) e dos gurus. Pacificada a mente, conforme entra em comunhão com o objeto de adoração, transmuta-se, gradualmente, a identificação da entidade vida (jivatman) com o “ser divino” (Brahman).
Considera-se dois tipos de upasana: (1) pratikopasana (meditação na forma) e (2) ahamgrahopasana (meditação sem forma). Em pratikopasana, “atribui-se qualidades” (saguna) à divindade, ela adquire uma forma e um nome, e são elas que são reverenciadas na meditação.
Já em ahamgrahopasana, medita-se em um conceito básico e abstrato, que está de acordo com as ideias impostas pelas escrituras. A divindade, portanto, é sem forma, pois a ela “não se atribui qualidades” (nirguna).
A palavra pratika quer dizer “símbolo, emblema, imagem”. Meditar em um símbolo significa que o objeto reverenciado representa os atributos conferidos à divindade, ao ideal ou ao àquilo que é meditado. Trata-se de qualificar o objeto de reverência para buscar nele a necessária inspiração que eleve a consciência a unificar-se com ele.
Exemplos de pratikopasana: contemplar imagens de divindades, ouvir os contos sobre os feitos das divindades (lilas), contemplar a expansão do céu azul ou o nascer do sol, concentrar-se no som de um riacho borbulhante, meditar na chama de uma vela, entoar mantras, etc. Pratikopasana é a meditação em tudo aquilo que consideramos como expressão das qualidades infinitas e eternas do Ser Supremo.
O termo ahamgrahopasana significa “percepção” (graha) do “Eu Sou” (aham). Assim, identificar-se diretamente, sem nenhuma intermediação simbólica, com o “Eu Sou” – a essência divina – o Brahman transcendental, é o propósito desta meditação.
Exemplos de ahamgrahopasana: meditação nos mahāvākyas (grandes contemplações), como Tat Tvam Asi (“tu és isto”) e Aham Brahmasmi (“sou a realidade suprema”); meditar em Sivoham (“eu sou bem-aventurança infinita”). Ahamgrahopasana é meditar diretamente no Ser Supremo, não para tornar-se “uno” com ele, porém, para conhecer sua totalidade e perceber-se como “Eu Sou Ele”.
Na tradição do yoga, considera-se o Ser Supremo como pessoal e impessoal. Quando pessoal, a ele se atribui qualidades, nome e forma (namarupa); portanto, ele é Saguna Brahman. Porém, sem atributos e sem forma, impessoal, ele é Nirguna Brahman.
Meditar em Nirguna Brahman não é tarefa fácil para a maioria das pessoas; somente aqueles que purificaram a mente, isto é, cuja mente se mantém estável e serena, são capazes de concentrar-se em Nirguna Brahman.
A maioria das pessoas necessita de um símbolo, uma imagem, um ícone ou qualquer coisa que represente os atributos do Ser Supremo para concentrar-se; Saguna Brahman, portanto, é o caminho mais indiciado, principalmente, para os principiantes. Isto porque suas mentes ainda se encontram em estado de agitação, e o símbolo acaba por facilitar a concentração e induzir ao processo meditativo.
O “esforço persistente” (abhyāsayōgēna) é, portanto, indicado para a mente que não consegue se fixar na “essência divina sem forma” (svarupa) e, pela sua inconstância, necessita de uma “divindade pessoal com atributos” (ekarupa), como Krishna, Shiva, Vishnu, Ganesha, Lakshmi, Surya, etc., ou alguma forma (humana, animal, vegetal ou mineral), que lhe seja do agrado e fé, e represente a divindade particular, para manter firme a concentração.
Essa “divindade pessoal” (Ishta Devata), conceituada com atributos humanos, é um objeto valioso para aqueles que se encontram nos estágios menos evoluídos do processo do “despertar da consciência”. A maioria das pessoas sentem-se mais confortáveis e amparadas, do ponto de vista religioso, quando são devotas de alguma divindade. Afinal, é na relação de fé, devoção e confiança, que as pessoas compartilham seus problemas com a divindade, pois “o deus pessoal” sempre está presente para “ouvir e auxiliar” nas questões mais simples ou mais complicadas da vida do devoto.
Todavia, a apreciação do Ser Supremo deve evoluir. Para além de Ekarupa Íshvara (um aspecto particular da divindade, incluindo todas as formas e representações que sejam conforme o agrado, a fé e confiança do indivíduo – “Deus está na imagem”), avança-se para Svarupa Íshvara (a essência imanente que, quando percebida, expande a mente para a totalidade – “Deus está em Tudo”).
Este “sagrado que se manifesta em tudo” é, em última análise, uma experiência do Real. Para o devoto que “percebe e adora a Deus em todas as coisas”, esse “mundo sacralizado” é o esforço para manter-se o mais próximo possível da divindade, pois que isto lhe suscita o sentimento de conexão com “algo maior” e o reencontro com a sua dimensão existencial mais profunda.
Mircea Eliade (1907-1986), pesquisador romeno e autor de diversos livros sobre religião e religiosidade, dentre eles “O Sagrado e o Profano”, publicado originalmente em 1957, afirma o seguinte:
Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania (a revelação do sagrado).
Uma pessoa devota, portanto, pode “encontrar Deus” nas coisas mais simples da Natureza, como uma pedra, uma árvore, uma cachoeira; toda a Natureza, por fim, pode tornar-se sagrada, e a pessoa estará, assim, vivendo em um “mundo sagrado”.
O próprio Eliade afirma que “as imagens, os símbolos, os mitos, pertencem à substância da vida espiritual; não são criações irresponsáveis da mente; eles respondem a uma necessidade e preenchem uma função: desvendar os mais secretos e diversos aspectos do ser. Pode-se camuflá-los, mutilá-los e degradá-los, mas que nunca se poderá extirpá-los." (Imagens e Símbolos, 1952).
Da imagem de uma divindade (onde se crê que uma imagem representa fielmente os atributos de uma divindade em particular), evolui-se para a “expressão da divindade” em tudo o que existe (o vento, a água, o fogo, as montanhas, os rios, os animais, as estrelas, todos os seres vivos, etc.). Isto quer dizer que, a contemplação de tudo o que existe, torna-se uma “comunhão divina”, uma “revelação do Ser”.
Se antes o devoto apenas enxergava “Deus na imagem”, e agora sua visão (darshana) é “Deus em tudo”, houve um avanço considerável no processo meditativo e no despertar da consciência. Entretanto, enquanto sua visão estiver limitada ao nome e forma (namarupa), ao Saguna Brahman, o indivíduo estará aprisionado ao universo material, ao agradável e desagradável, apego e aversões e às leis do Tempo e Espaço.
Nessa condição, podemos amar a Deus em uma vaca (que nos fornece leite, carne e couro, coisas úteis para nós), mas, não faremos o mesmo em relação a um mosquito (que nos traz doenças e desgraças). Ver apenas os aspectos positivos da manifestação divina ou aquilo que nos agrada é vibhuti yoga.
Porém, se uma parte específica da criação divina me desagrada, significa que ainda não desenvolvi a necessária maturidade espiritual para compreender a Existência; minha “visão da realidade” (jiva drishti) ainda se encontra defeituosa. É o meu olhar, interpolado pelas lentes do egoísmo e preconceito, que vê “Deus na vaca”, mas não vê “Deus no mosquito”. Se faz necessário compreender, portanto, que tudo na criação não se opõe, mas se complementa; é esta interdependência que se configura no Todo.
É necessário, portanto, ir além. Este além é o Nirguna Brahman, o “Deus” impessoal, sem forma, sem nome, sem atributos, o Todo-Abrangente, o Absoluto. Pois ver “Deus na criação” não é o mesmo que ver “Deus como a própria criação”. Enquanto não formos capazes de compreender que “Deus é Tudo”, e esse “Tudo” inclui “tudo mesmo, sem exceção”, não estaremos aptos ao “Amor Universal” (prema).
A compreensão de que “Deus é Tudo” é, na verdade, uma revelação que ocorre quando estamos imersos em profunda meditação. A verdade Tat Tvam Asi (“Eu Sou Isto”), somente pode ser alcançada por uma mente livre de condicionamentos, preconceitos, apegos e fantasias. Aquilo que é “Real” se reflete na “mente pacífica” pela luz da consciência, que é a Luz Divina - Brahman, a Consciência Pura – Atman.
A “revelação do Real” é uma contínua progressão na dedicação e perseverança nos estudos (que inclui sravana, ouvir os ensinamentos dos mestres), a reflexão (manana) sobre os ensinamentos do Vedanta, do Bhagavad Gita e dos Upanishads, e que culmina em nididhyasana (“uma consistente e profunda meditação nos mahāvākyas”).
Este é o caminho do Jñana Yoga, o caminho do conhecimento, isto é, da compreensão correta de Brahman (a Realidade Suprema) e da identidade de Atman (a Consciência Pura), e da clara percepção da relação direta Atman-Brahman e do “Eu Sou”.
Meditar, portanto, é preparar a mente para contemplar “Deus” em todas as suas múltiplas e variadas manifestações, e alcançar a compreensão correta de que o Divino Ser Supremo (Baghavan), não apenas “está” em sua criação, mas Ele “é” o próprio Universo manifestado.
Afirma a Brihadaranyaka Upanishad (S.2, Cap.IV, v. 5)
O Ser deve ser realizado – deve ser ouvido, refletido e meditado; pela realização do Ser, por meio da audição, reflexão e meditação, tudo isso é conhecido.
Assim, upasana (a meditação da tradição Vedanta), consiste na “firme determinação” (nididhyasana) para alcançar a “visão direta de Deus” (nirvikalpa samadhi), e sua eterna, infinita e absoluta bem-aventurança.
Aprender a contemplar “Deus” em suas imagens, símbolos, templos e representações, é o primeiro nível da evolução espiritual; a etapa seguinte é perceber e apreciar o Divino em sua criação, em todos os seres, em tudo o que existe; por fim, ser capaz de “ver” o Ser Supremo como o próprio “Universo manifestado” e para além dele (transcendente).
A vereda da espiritualidade, que tem na meditação o seu principal instrumento de evolução da consciência, conduz as pessoas, gradualmente, dos símbolos materiais às imagens mentais, do “Deus Pessoal” particular ao “Deus Impessoal” absoluto, da realidade relativa ao Real Imperecível.
Do imanente Saguna Brahman ao transcendente Nirguna Brahman, eis alguns aspectos da vereda do conhecimento e da meditação que o yoga dispõe a todo aquele que se aventura na jornada do humano ao divino.
Ver o Todo “nas partes”; ver as partes como "o Todo”; e ver o Todo “além do Todo”, este é o grande desafio espiritual da vida de cada um de nós.
Hari Om Tat Sat.
Só do indivíduo moderno depende “despertar” para esse inestimável tesouro de imagens que ele traz consigo; despertar as imagens, para contemplá-las na sua virgindade e assimilar a sua mensagem. A sabedoria popular tem frequentemente exprimido a importância da imaginação para a própria saúde do indivíduo, para o equilíbrio e riqueza da sua vida interior. Aquele que “carece de imaginação”, torna-se como um ser limitado, medíocre, triste, infeliz. Os psicólogos, na primeira fila dos quais se encontram C. G. Jung, mostraram até que ponto os dramas do mundo moderno derivam de um desequilíbrio profundo da mente, tanto individual como coletiva, provocado em grande parte por uma esterilização crescente da imaginação. “Ter imaginação” é gozar de uma riqueza interior, de um fluxo ininterrupto e espontâneo de imagens. Mas espontaneidade não significa invenção arbitrária. Etimologicamente, “imaginação” é solidária com imago, “representação, imitação”, e com imitor, “imitar, reproduzir”. Desta vez a etimologia faz eco tanto das realidades psicológicas como da verdade espiritual. Ter imaginação, é ver o mundo na sua totalidade; pois o poder e a missão das imagens consistem em mostrar tudo o que permanece refratário ao conceito. Assim se explica a desgraça e a ruína do indivíduo que “não tem imaginação”: ele está isolado da realidade profunda da vida e da sua própria alma (Mircea Eliade, Imagens e Símbolos, 1952)
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