YOGA E A "EVOLUÇÃO ESPIRITUAL"
- Marcelo Augusti
- há 7 dias
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Que possam todos ir além do mero conhecimento livresco e realizar-se através da pureza de seus corações no decorrer de suas próprias vidas (Swami Satchidananda)
Yoga é uma dimensão específica da espiritualidade indiana. Não há nenhum movimento espiritual na Índia (bramanismo, hinduísmo, jainismo ou budismo), que não dependa de alguma das mais diversas formas de yoga. Yoga e espiritualidade se referem à mesma coisa.
O yoga, assim, é o estado de consciência mais elevado que o ser humano pode realizar pelo seu próprio esforço. Esta autorrealização espiritual, nada mais significa, que a liberação das estruturas condicionantes que aprisionam o indivíduo num ciclo repetitivo de comportamentos e hábitos.
Porém, o yoga não trata do entendimento das estruturas de poder externo (a cultura, a educação, a política, a sociedade, o mercado consumidor, a religião), que exercem no indivíduo sua forte influência e determinam o modo como vivem e como se expressam.
A questão, para a espiritualidade na Índia, é saber se, para além dessas estruturas de poder externas coercitivas, existe algo mais profundo, algo que esteja em seu interior.
Os antigos sábios, ascetas e filósofos da Índia, pelas suas experiências e percepções, concluíram que os condicionamentos externos eram fáceis de serem detectados e dominados. O “algo mais”, portanto, não era nada referente ao mundo exterior: estava no inconsciente de cada indivíduo.
Ou seja, os maiores obstáculos à liberação dos condicionamentos, encontrava-se no "mundo interior" do próprio indivíduo, isto é, em sua atividade psicomental inconsciente: são os samskaras e os vasanas que formam a estrutura condicionante principal e a mais efetiva ao aprisionamento do indivíduo.
Isto significa que o "mundo interior" do indivíduo está impregnado de impressões e tendências em potencial, e que se encontram alojadas nas “zonas sombrias” de seu inconsciente. São esses “resíduos psicológicos obscuros” que dificultam a liberação de uma vida automatizada.
Samskaras são as impressões psicológicas ou marcas, cicatrizes que trazemos no inconsciente, devido às nossas condutas, pensamentos e sentimentos, sejam eles quais forem, boas ou más, originadas em vidas passadas.
São essas “marcas cármicas” que dão origem aos novos nascimentos, pois eles geram os “resíduos psicológicos” que fazem germinar a semente de um novo ciclo de aprisionamento-aprendizado. Será, pois, no mesmo “campo de batalha sagrado” (kurukshetra), tantas vezes revisitado, que reviveremos experiências, dolorosas ou prazerosas, e oportunidades de livramento.
Os samskaras ativam as nossas ações, pensamentos, emoções e sentimentos; eles são forças psíquicas dinâmicas e poderosas que, em algum momento, se manifestarão no plano consciente, impulsionando nossas expectativas e impactando nossas preocupações sobre a vida condicionada e a necessidade premente de liberação.
Os vasanas são as tendências e predisposições mentais que, ao encontrarem as circunstâncias adequadas, se manifestam e se proliferam. Eles persistem em permanecer no inconsciente, e nos mantém atrelados ao “piloto automático”.
Os vasanas formam uma cadeia dinâmica de desejos sutis, originados pelos samskaras, e que levam o indivíduo à repetição de hábitos e comportamentos, sem que ele tenha consciência disso.
Há de se considerar que as marcas cármicas e os resíduos psicológicos não são apenas originados por ações realizadas em vidas passadas. Toda e qualquer experiência nesta vida, seja agradável ou não, externa ou interna, deixará suas marcas e resíduos na memória e que, ao encontrarem solo fértil e condições adequadas, brotarão como sementes e poderão dar frutos.
Os samskaras e os vasanas não são bons ou ruins em si mesmos; eles são apenas “marcas do que se foi”, porém, com potencial para determinar os “rumos” de nascimentos futuros e delimitar as atitudes, comportamentos e realizações da vida presente.
Samskaras e vasanas, portanto, são os condicionamentos internos do indivíduo; eles são inerentes a cada indivíduo em particular. E, embora sejam potencialmente ativos, eles são parte daquilo que nos constitui como natureza, ou seja, não são a nossa essência.
O yoga nos possibilita o conhecimento e o domínio dessa natureza. Assim, mais importante do que conhecer os mecanismos que condicionam o indivíduo, é aprender a controlar nossas tendências naturais, de modo que elas não ditem o rumo da nossa vida.
O termo “yoga”, dentre outros, significa “pôr sobre o jugo”. O sentido disso não é que temos que nos esforçar para que as tendências permaneçam ocultas; porém que, ao se manifestarem, estejam submetidas a uma vontade superior, qual seja, o pleno domínio da Consciência.
A natureza é tudo aquilo que se transforma, que muda, que é impermanente e transitório. Ela é a responsável pela nossa constituição física e biológica, e por todas as nossas características psicológicas. A natureza é forma, aparência e conteúdo.
A essência é aquilo que não se altera, não se transforma; ela é imutável e permanente. A essência é o que somos em verdade e realidade. O yoga nos ensina que “não somos aquilo que muda, não somos a forma, a aparência e nem o conteúdo”.
O yoga, em um primeiro momento, se realiza, portanto, por meio de um processo que visa purificar a mente - a atividade psicomental - de suas marcas e tendências, liberando-a de seus condicionamentos.
Dito de outro modo, os traços que identificamos como “nossa persona”, devem ser reconhecidos como um elemento gerado pela natureza e superados, para que a verdadeira identidade possa ser “vista” em toda sua resplandecência.
O yoga, portanto, atua em nossa natureza, pois ela é passível de transformação; é, pois, a mente que evolui de um estado condicionado e agitado, para o florescimento da liberdade, da harmonia e da serenidade.
Podemos dizer que o yoga é uma disposição interior orientada para um saber viver preenchido pela vivência constante da transcendência; é a superação da mente, como “aquela que dá as ordens e dita o ritmo da vida”.
Yoga, então, não é um processo de “evolução espiritual”. Pois o espírito é a essência e, como tal, é puro, eterno, infinito e imutável. É a mente que necessita transmudar-se, pois, originada da natureza, a mente está sujeita aos gunas, isto é, aos três elementos básicos que atuam na manifestação: sattva, rajas e tamas.
O Sāmkhyakārikā (Séc. VI, E.C.), de autoria de Íshvara Krishna, o mais antigo texto que traduz os ensinamentos da filosofia Samkhya, elaborado pelo sábio Kapila Muni, nos fala sobre Prakrti (natureza) e Purusha (espírito). Um ser vivo é a união de Prakrti e Purusha.
Sattva, rajas e tamas são qualidades fundamentais de Prakrti, cada uma delas apresentando características peculiares:
Sattva é bondade, harmonia, compaixão, quietude, desapego, a qualidade que reflete luz, pureza e sabedoria;
Rajas é atividade, movimento, intensidade, agitação, aquilo que incita a ação e a reação;
Tamas é escuridão, desordem, deficiência, rigidez, apatia, procrastinação, aquilo que nos mantém na estupidez e na ignorância.
Purusha é a Consciência, aquilo que não se manifesta, é a essência, o espírito, o próprio Ser. Quando o Purusha se une à Prakrti, sua presença perturba o equilíbrio dos gunas, desencadeando, assim, as condições para a manifestação da realidade empírica que os seres vivos experimentam.
Da união de Prakrti com Purusha, emerge Mahat - o “grande princípio”, a sabedoria intuitiva manifestada, como o primeiro produto dessa união. Dele emergem buddhi (a inteligência), ahankāra (o ego e as nossas identificações), manas (a memória, o conteúdo dos nossos arquivos de todas as vidas) e citta (a percepção da atividade psicomental e seu fluxo contínuo e ondulatório), ou seja, os quatro elementos que configuram aquilo que denominamos “mente”.
A mente é a responsável não apenas pela percepção do mundo fenomênico, mas de projetar sobre ele suas próprias narrativas. É por ela que a “vida encarnada” experimentada pelo ego, como sucessivos e alternados momentos de dor ou prazer, alegria ou tristeza, etc.
Entretanto, o Purusha, não é afetado por nenhuma experiência do corpo (forma) ou da mente (conteúdo). Diante do fluxo mental, suas percepções e narrativas, ele permanece imperturbável, pois ele é a "testemunha consciente, separada, neutra, vidente e serena".
O Purusha não depende de nada. Ele existe por si. Entretanto, corpo e mente dependem da “energia vital” (prana) para a sua sobrevivência no mundo fenomênico. Além disso, é o prana que faz a conexão da natureza com a essência.
É essa conexão, quando realizada pelas técnicas do yoga, que promoverá o “conhecimento discriminativo” (viveka), que possibilitará a clara percepção da diferença entre aquilo que em nós é natureza, daquilo que é a essência.
Esse conhecimento é o que nos faz discernir as motivações e tendências que impulsionam nossas ações, palavras e pensamentos. Ele desvenda o nosso "mundo interior".
O discernimento, portanto, é o primeiro benefício proporcionado pelo yoga, pois a prática meditativa - o principal instrumento do yoga - nos leva diretamente ao conhecimento da origem da confusão, ou seja, a nossa atividade psicomental.
Para que o discernimento floresça, entretanto, temos que nos estabelecer na qualidade “luminosa” da natureza, isto é, sattva. É apenas quando estabelecidos em sattva, que emergirá a clareza do “aprendizado superior” (vydia), que resulta na percepção correta da distinção entre mente e Consciência.
Isto significa que, pela prática meditativa, citta (a percepção do fluxo que dá ao ego a impressão de uma consciência individual), ao ser submetido à investigação de buddhi (a inteligência discriminativa), revela-nos que essa ‘consciência individual’, não é aquilo que somos em essência. Pois o fluxo é o que passa, aquilo que corre e escoa; mas a essência é o que permanece inalterada.
É quando nos estabilizamos no estado meditativo, isto é, quando aquietamos a mente, que Buddhi, responsável pela reflexão e a contemplação que leva ao discernimento, retira o véu que encobre a compreensão correta de nossa natureza.
Bodhicitta, termo que significa “mente desperta” ou “mente iluminada”, nada mais é do que a compreensão correta do fluxo incessante da natureza que jorra na mente. Quando o ego (ahankāra), amparado pela memória, se identifica com o fluxo, surge a impressão de uma “consciência individual”, que alega para si mesmo que "isso sou eu", "isso é meu".
É a mente, pois, que precisa do yoga; é o ego que necessita a desprender-se da identificação com o fluxo e com a memória. A mente precisa do yoga para, por meio de buddhi, se purificar de seus conteúdos condicionantes. E a única coisa que o ego precisa aprender é não ser egoísta.
Enquanto houver condicionamentos e egoísmo, não haverá paz, amor ou felicidade genuínos. Ao livrar-se dos condicionamentos e do egoísmo, corpo e mente passam a realizar as ações de modo pacífico e altruísta. Viver não será mais um fardo pela busca incessante pelo bem próprio.
O yoga nos liberta da “força ilusória” (maya) da natureza, dos conteúdos da mente (samskaras e vasanas), que são a causa principal do sofrimento que provocamos a nós mesmos e aos demais seres vivos.
Pela autorrealização no yoga, transcendemos a natureza, suas limitações e brevidade, e revelasse-nos a essência, aquilo que em verdade e realidade somos: o Eterno, o Ilimitado e o Infinito.
Afirma Patanjali no Yoga Sutras:
Tendo cumprido seu propósito, a natureza retorna ao seu equilíbrio original, e a Consciência, não mais sendo velada pelas atividades dos gunas, assenta-se em sua própria essência (Yoga Sutras, IV, 34)
O propósito da natureza é possibilitar, exatamente, a liberação da própria natureza. Quando isso se realiza pelo yoga, ou seja, quando o “a espiritualidade desperta”, a natureza retorna ao seu equilíbrio original.
A mente, antes, então controlada pelo ego e a memória, com suas perspectivas limitadoras, não mais se sobreporá à realidade com suas representações, discursos, narrativas ou dramas pessoais. Pacífica e integrada, ao abrir-se ao Ilimitado, a mente repousa na sabedoria infinita da Consciência onipresente.
Patanjali, no início do Sutras, diz:
Yogas chitta vritti nirodha
(Livro I, verso 2)
A cessação das ondas do fluxo mental é Yoga.
Tada drashtuh svarupe’ vasthanam
(Livro I, verso 3)
Então aquele que vê permanece em sua própria essência.
Esses dois aforismos iniciais nada mais são do que a realização do yoga, que o último aforismo (Livro IV, verso 34), citado anteriormente, apenas confirma.
A prática do yoga é ‘cessar’ (nirodha) a identificação com as ‘ondas’ (vritti) do ‘fluxo mental’ (citta); a experiência que disso decorre é o ‘apaziguar-se na própria essência’ (svarupa vasthanam).
Porém, apenas quando se ‘vê’ o equívoco dessa identificação, é que se pode ‘permanecer’ (avasthanam) na essência (svarupa) do si mesmo. Aquele que ‘vê’ é o observador (drashtuh), ou seja, o Purusha, o vidente, a Testemunha-Consciência que a tudo presencia ao seu redor e dentro de seu interior.
Mas o espírito não pode desvendar a natureza antes que ela mesma assim o faça, pois, conforme o Samkhya, espírito (essência) e natureza (matéria) são distintos. É a mente, produto da natureza, que é o instrumento apto a conhecer a si mesma. O espírito é apenas a testemunha de todo esse processo de ‘descoberta’.
Quando a mente desvendar a si mesma, então o véu da ilusão será retirado. Isto significa que o complexo ego/memória – os administradores do fluxo mental – foram expostos pela inteligência, como impostores, tornando visível a identificação equivocada da natureza com a essência.
Pois sattva, a qualidade luminosa da natureza, quando prevalece ativa e sob o controle do ego, é confundida com a luz da verdadeira essência. É apenas pela compreensão correta que a distinção torna-se evidente.
Enquanto o véu da ilusão não for retirado, o ego permanece na ignorância de que ele é "a" Consciência. Ele então se arroga à pretensão de ser o verdadeiro espírito, o Purusha.
Como o conteúdo da mente em sattva parece ser tão puro e nobre, e o ego não pode ver o objeto real, ele tende a se considerar livre de todos os condicionamentos. Patanjali nos alerta:
Mesmo uma mente equilibrada e clara é diferente da consciência pura. Quando não há distinção dessa diferença, a consciência individual se confunde com experiências, sentimentos e percepções. Quando realiza-se a distinção, pela meditação, o resultado é o conhecimento da consciência pura (Yoga Sutras, Livro III, verso 36).
O conhecimento do Purusha (purusha-jñanam) somente se realiza quando a mente condicionada, ainda que estabelecida em sattva, é percebida claramente como natureza, e não como essência.
A “experiência da fruição” (bhoga), ou seja, de que estamos desfrutando a vida, é apenas o movimento do fluxo mental percebido. Essa ‘consciência mental’, sob o domínio do ego, confunde-se com o Ser, o Purusha. Logo, tudo o que se faz, pensa e fala é próprio da natureza, não do espírito.
Ah, então não sou o ego e a memória, nem a inteligência e a consciência? Neti, neti (“nem isso, nem aquilo”). Nada disso! Mas quem sou eu?
“Sou a Consciência Pura, desprovido de qualquer dúvida. Não sou a origem e nem o criador. Sou apenas existência infinita e sempre presente” - assim afirmam os versos do Avadhuta Gita, a Canção do Espírito Livre que, embora sejam da tradição do Advaita Vedanta, cabem muito bem nesse contexto.
Yoga é simples, não tem segredos ou mistérios. Considere que toda a sua vida foi uma participação, ativa ou passiva, no mundo fenomênico, com todas as experiências que a natureza (Prakrti) te proporcionou, conforme suas próprias latências.
Porém, quando a mente se purifica pelo yoga e o véu da ilusão é retirado, então você “vê”, de fato, o quê e quem você é. Esta autorrealização te conduz ao tranquilo permanecer em si mesmo. É o encontro com a espiritualidade mais elevada.
Não há mais expectativas, não há mais temores; nada a fazer, nenhum lugar a ir. Pois a maior ilusão foi superada: o medo da morte e a dissolução do ego. É somente a partir daqui que se pode viver a paz divina (nirvana) e a plena e eterna bem-aventurança (ānanda).
A vida continuará, de certo, com seus altos e baixos. Corpo e mente continuarão a cumprir as tarefas para as quais se manifestaram no mundo. A roda da vida não irá parar antes de realizar o ‘destino’ que lhe trouxe à vida.
Esse “efeito inicial” (prarabda karma), que pôs a roda da sua vida a girar, não pode ser evitado ou mudado, mas apenas exaurido quando experimentado. As provações da vida continuarão, porém, elas não mais afetarão a sua estabilidade mental, que é a sua maior riqueza: a paz interior.
O filósofo e teólogo Martin Bubber (1878-1965), em sua obra Eu e Tu (1923), acentuo duas atitudes que o indivíduo pode ter frente ao mundo: Eu-Tu ou Eu-Isso. Eu-Tu é uma atitude de encontro genuíno entre eu e o outro; e esse encontro somente é possível pela reciprocidade que se faz pelo diálogo autêntico.
O princípio Eu-Isso é quando nossas experiências de vida se tornam em algo meramente objetivo e utilitário, desprezando-se o diálogo autêntico com o outro, sem qualquer comprometimento verdadeiro com o próximo.
A espiritualidade é a arte do encontro. Ela somente se realiza pelo encontro: seja esse encontro do eu com o outro em nossas relações cotidianas no mundo exterior, seja ele do "si" com o "Si-Mesmo", em nosso "mundo interior".
A paz interior é fruto do despertar da espiritualidade. O encontro promove a equanimidade; yoga é equanimidade (samatvam yoga ucyate - Bhagavad Gita, 2, 48).
Um termo sânscrito descreve a equanimidade de um modo bem peculiar: hridaya, o “coração do Ser”; mas que podemos traduzir como “a sabedoria de ofertar e receber em perfeito equilíbrio”.
Desvende a natureza, restaure o seu equilíbrio; e a essência se revelará.
Hari Om Tat Sat.
A vida em si mesma é um livro aberto, uma escritura. Leia-a. Leia enquanto cava um buraco ou chanfra um pedaço de madeira ou prepara um alimento na cozinha. Se não lhe for possível aprender com suas atividades diárias, como há de compreender as escrituras?
(Swami Satchidananda)
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