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Foto do escritorMarcelo Augusti

YOGA E A TRANSMIGRAÇÃO DAS "ALMAS"



Uma partícula de mim, perpétua, tendo sido individualizada no mundo dos vivos, lavra os cinco órgãos dos sentidos e o sexto, a mente, fixados na natureza. Assim como o ar transporta os aromas, a entidade viva no mundo material leva de um corpo para outro suas diferentes impressões e tendências. Com isso, ela aceita uma espécie de corpo e, ao abandoná-lo, volta a aceitar outro. Aceitando esse outro corpo grosseiro, obtém outra mente, sentidos e percepção para, então, desfrutar um conjunto específico de objetos, coisas e circunstâncias do mundo material. Os que estão emaranhados não conseguem compreender, mesmo que tentem, como a entidade viva pode abandonar seu corpo, nem conseguem entender que tipo de corpo ela usufruirá sob o encanto dos modos da natureza. Mas aquele que purificou sua mente e está situado no yoga, pode ver tudo isto com muita clareza. (Bhagavad Gita, Cap. 17, 7-11)



Desde as mais remotas eras, o ser humano se debruça sobre a questão de suas possíveis e inúmeras “vidas encarnadas”. Acredita-se, pela sabedoria de antigos mestres, que a “vida encarnada” não se finda com a morte do corpo, porém, que a morte nada mais é do que a passagem para um novo ciclo de existência, onde o indivíduo adquire outro corpo e assume novas formas de vida.


Na tradição do hinduísmo, considera-se que a entidade viva viaja por diversas dimensões do Tempo e Espaço, experienciando inúmeras e diferentes manifestações físicas e circunstâncias no mundo da natureza material. É o cumprimento do dharma (a agenda que cada entidade viva deve cumprir em cada uma de suas manifestações) e seu karma (as ações, justas ou equivocadas, que realiza em cada “vida vivida”), que determinam suas próximas encarnações (suas futuras vidas manifestas). Esse processo infalível do “vir-a-ser” ou ciclos das transmigrações é denominado de “roda do samsara”.


A “alma encarnada” ou a “entidade viva” é constituída por duas naturezas: a material e a espiritual. Sua natureza material se revela por dois aspectos: (1) o corpo físico, em suas mais variadas formas, suas funções fisiológicas e suas sensações sensoriais; (2) o corpo sutil, que se conhece pela mente, as emoções, os sentimentos, a energia vital e as percepções existenciais.


O corpo físico ou sthula-sharira é passível de mudanças ao longo do tempo; ele é o corpo que nasce, se desenvolve, cresce, adoece e, por fim, fenece. Sthula-sharira é o corpo finito, passível a todo tipo de sorte e transformações durante o período em que serve de abrigo e veículo para a entidade viva em sua jornada pelo mundo material.


O corpo sutil ou suksma-sharira é aquele que traz consigo as memórias, as impressões e tendências. Ele reage às sensações do corpo físico – que está diretamente em contato com o mundo material – o que o leva a ter percepções do agradável, desagradável e neutro. Suksma-sharira comanda sthula-sharira, direcionando-o na busca pelo agradável e repelindo o desagradável.


O corpo físico está sujeito às inúmeras agressões e violências no mundo físico; ele machuca, quebra, é violado, se oxida. É sthula-sharira que está sujeito à dor. O corpo sutil sente as agressões e violências impostas ao corpo físico; é suksma-sharira que está sujeito ao sofrimento. Podemos dizer, então, que a dor é caracteristicamente física, e o sofrimento é psíquico.


A transmigração da “alma” é a passagem da entidade viva por sucessivas encarnações, em diversas formas de manifestação no “mundo material”. O propósito deste fenômeno talvez seja o de possibilitar, para a “alma encarnada”, inúmeras e variadas “experiências sensoriais” no “mundo material”, de modo a conduzi-la para a resposta definitiva sobre o conhecimento da verdade da realidade última da existência: quem sou eu?


Dissemos que a entidade viva é constituída por duas naturezas, a material e a espiritual. Mas é a natureza espiritual que se constitui em sua essência, ou seja, aquilo que subsiste por si mesmo, que não depende de nenhum tipo de determinação, que não está sujeito ao tempo, e está para além do espaço. Esta essência é Atma, o Ser, Consciência Pura, Eterno, Infinito, Não-nascido, sem início, meio ou fim. Este Atman é a realidade imperecível que subjaz a tudo o que existe; é a Testemunha Imutável, e “tu és isto” (Tat Tvam Asi).


A entidade viva, portanto, não é o corpo físico, tampouco o corpo sutil. Sthula e suksma são aspectos materiais e fenomênicos desta entidade “sempre existente”. Enquanto sthula é caracterizado pela finitude no tempo, suksma vagueia livremente pelo espaço. Ambos estão sujeitos ao transitório e ao impermanente. Atman, “aquilo que sou”, permanece inalterado, está além da dor e do sofrimento, pois é Sat-chit-ānanda, “Existência Infinita, Consciência Pura e Bem-aventurança Eterna”.


O que transmigra, portanto, não é o corpo físico, já que este tem prazo de validade bem definido. Tampouco Atman, a Consciência que a tudo permeia. Quem faz a “jornada terrena / espiritual” é o corpo sutil; é ele que leva consigo a bagagem kármica de uma vida para outra, alojando-se em sucessivos e distintos corpos físicos e experienciando a existência nas mais variadas circunstâncias.


A morte se dá quando sthula não mais apresenta condições suficientes para suksma continuar sua jornada. Seja por doença, velhice ou condições kármicas (um acidente, por exemplo), suksma  que contém em si a energia vital – dissipa-se, retirando-se para a busca de uma nova moradia que lhe permita seguir adiante. Quando suksma se retira, o que fica é matéria inerte, “corpo sem vida”.


Mas, vejamos bem: não é “o mesmo indivíduo que renasce”. A morte põe fim a um ciclo de vida individual específico: aquele indivíduo, com aquela forma e que experienciou a existência naquelas circunstâncias, concluiu sua jornada. A próxima forma, circunstâncias e entrelaçamentos vividos serão conforme o dharma destinado e o karma a ser cumprido.


Podemos dizer que a vida é finita, mas a existência é eterna. A vida é o breve instante em que o indivíduo experiencia uma forma e circunstâncias de existência específica. Se o corpo físico se deteriora e fenece com o tempo, o corpo sutil “leva de um corpo para outro suas diferentes impressões e tendências”, vagando pelo espaço, “assim como o ar transporta os aromas”.


Dissemos que Atman, a Consciência Pura, permeia o mundo fenomênico; Atman é a “partícula perpétua”, luz que refulge no coração, e que se encontra no centro de tudo e qualquer coisa existente. Atman é o Observador, a Testemunha da vida, “aquele vê sem ter olhos, que ouve sem ter ouvidos, que olfata sem ter nariz, que saboreia sem ter língua, que toca sem ter mãos e caminha sem ter pés”.  Quando suksma se retira de sthula, mesmo assim, Atman permanece inalterado, impoluto.


Vejamos uma interessante metáfora que nos auxilia na compreensão do processo de transmigração das “almas”. Um computador apresenta dois componentes fundamentais: o hardware e o software. Hardware é a estrutura física e toda a sua funcionalidade; software é a sequência de instruções que servem para execução das tarefas, ou seja, são os programas que comandam o funcionamento do computador. Porém, para que o computador funcione, ainda falta o principal: a eletricidade.


Nesta metáfora, hardware é o corpo físico; software é o corpo sutil; Atman é a eletricidade. Atman é aquilo que está presente em todos os computadores, indiferente de hardware e software. Um computador, mesmo bem estruturado fisicamente, com todas as peças em seus devidos lugares e em condições perfeitas, mas sem os programas que executam suas funções, é um computador “morto”. E mesmo ligado à rede elétrica, ele não executa as suas funções.


Quando trocamos nosso computador, trocamos o hardware; e levamos para o computador novo, o nosso software, isto é, os programas e arquivos de que necessitamos para dar continuidade à execução do nosso trabalho. Logo, mesmo em um computador "morto", ainda há eletricidade, assim como em um cadáver, Atman se encontra presente. Assim como não é a eletricidade que passa de um computador "morto" para um computador novo, não é Atman que transmigra, pois Atman não é a “alma”; ele é a Consciência Pura que a tudo permeia, que está em tudo e todos.


Pelos aspectos da natureza material, a vida de um indivíduo será interrompida e não haverá mais continuidade deste personagem e suas ações e realizações em qualquer tempo ou lugar (pois que suas identificações se dissipam com a morte do corpo físico); entretanto, a existência é imperecível, interminável, perpétua, infinita. Pois a existência é Atman, a Consciência eterna que manifesta e habita o centro de cada entidade viva que se aventura pelo Universo.


O yoga nos conduz pelo caminho do autoconhecimento, isto é, do conhecimento de Atman, do “Eu Sou”. Pela prática de asanas, dominamos o corpo; pela prática de pranayamas, controlamos a mente. Ao alcançarmos o domínio do corpo e o controle da mente, alcançamos a serenidade. Superando a natureza material e suas distrações, estaremos aptos à conexão com a essência espiritual.


É somente neste estado de quietude que Atman refulgirá no silêncio do nosso coração. Então, despertaremos para a verdade de quem somos. Vida e morte, viver ou morrer não será mais causa de medo e sofrimento.


Hari Om Tat Sat.

 

A verdade é que o Eu interno de cada ser humano é extremamente grandioso, e extremamente amável. Tudo está contido no Eu. O poder criativo de todo esse universo está dentro de cada um de nós. O Princípio Divino que cria e sustenta esse mundo pulsa dentro de nós na forma da luz supremamente bem-aventurada. Ela cintila no coração e brilha através de todos os nossos sentidos. Se, em vez de buscarmos conhecimento do mundo externo, buscássemos o conhecimento interno, nós logo descobriríamos aquela refulgência. Eu sou Isto – So Ham.

(Guru Keyuravati, Vijnana Bhairava Tantra).

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