O ser humano, na sua ignorância, se identifica com as camadas de energia material que encobrem a sua real natureza. Ao transcendê-las, ele se torna uma coisa só com o Ser Supremo, que é pura bem-aventurança (Taittiriya Upanishad)
A filosofia que permeia a prática do yoga afirma que todas as entidades vivas estão em estado de ignorância em relação à sua real natureza. Nos identificamos facilmente com a nossa natureza material, porém, nem sempre com a nossa natureza espiritual, esta sim, a nossa verdadeira essência. As entidades vivas trazem em si a centelha do divino, e isto significa que o Ser Supremo habita no interior de cada uma delas. Aquele que assim realiza esse conhecimento, alcança o objetivo da vida terrena.
O Bhagavata Purana, um dos textos considerados sagrados pelos hindus, e que consiste basicamente em narrativas ancestrais que vão desde a criação do universo, dos seres, das divindades e até a extinção do mundo fenomênico, nos explica que, quando a entidade viva emerge do útero, ela se esquece completamente de sua origem divina. Embora seja classificado como literatura secundária, os textos que compõe o Bhagavata servem de base para reflexão para a prática do yoga.
Quando nascemos, já não nos recordamos mais quem, de fato, somos. Então, temos a oportunidade de, durante a nossa existência terrena, nos recordar quem somos e, assim, podermos nos libertar dos ciclos infindáveis de nascimento-morte-renascimento, onde parecemos estar em uma montanha-russa, tal a intensidade das mudanças bruscas que experimentamos entre prazer e dor, alegria e tristeza, perdas e ganhos, e que são os efeitos descontrolados da nossa natureza material.
Para nos libertarmos das influências da natureza material e dos impactos deletérios da alternância entre dukkha (dor e sofrimento, o que é desagradável) e sukha (alegria e prazer, o que é agradável) em nossa existência terrena, estudamos e praticamos yoga. As diversas vias do yoga nos conduzem de volta à nossa essência e, assim, nos será restituída não apenas a recordação de nossa real natureza, mas, principalmente, o pleno reconhecimento de que somos Um com o Ser Supremo.
Como já dito em outro texto, o yoga é a aventura da consciência. Todos as entidades vivas são dotadas de consciência, pois todas são expressões e expansões da Consciência Universal. Logo, cada consciência individual – cada entidade viva – terá pela frente o desafio de evoluir desde a escala mais baixa até o nível mais elevado que lhe é concedida quando imersa na existência terrena.
A Taittiriya Upanishad, texto sagrado classificado no rol dos mais relevantes para o estudo e prática do yoga, declara que, aquele Ser que habita em nosso coração, é a origem de toda a felicidade e prosperidade. O mesmo texto afirma que aquele que se estabelece nesse Ser, alcança a liberdade, a sabedoria e a imortalidade. Portanto, a consciência individual tem o desafio de transpor cada escala de sua evolução e, assim, realizar a transcendência matéria-espírito, o que significa, a princípio, se estabelecer no Ser que habita o coração.
A autotranscendência significa que, embora ainda habitando o mundo da matéria, a consciência evoluiu do padrão mais baixo de entendimento, para o nível mais elevado de compreensão. Isso quer dizer que houve uma transformação na consciência individual da entidade viva que, então, passa a experimentar as bem-aventuranças da vida divina em sua existência terrena. Ou seja, esta realização nos liberta das oscilações abruptas de dukkha-sukha. Para esta realização, portanto, a consciência individual deverá despertar em cada estágio evolutivo em que se encontra, reconhecê-lo como uma etapa a ser superada e, então, avançar para a próxima, até todo o processo ser concluído.
Entretanto, essa evolução, embora pareça óbvia, para a maioria dos seres humanos não é. Os seres humanos fazem parte da inesgotável variedade de entidades vivas; porém, dentre todas elas, ainda que se encontre em condições privilegiadas para o despertar da consciência – comparativamente às outras entidades vivas – os seres humanos se apegam, insistem e se habituam com o sobe-desce da turbulenta existência terrena.
Apegados ao corpo físico e suas sensações, os seres humanos insistem em buscar sukha onde, rapidamente, a mesma se transforma em dukkha. Correndo atrás das satisfações dos sentidos corporais, acreditando que é assim que é a vida, os seres humanos buscam naquilo que é transitório e impermanente, prolongar e repetir ao máximo suas experiências corporais. Quando sukha cessa e dukkha emerge, aos seres humanos o que resta é frustração e sofrimento. E, assim, se habituam a esses infindáveis ciclos, permanecendo aprisionados à sua natureza material.
A consciência que se apega aos repetitivos ciclos dukkha-sukha, não evolui. Ela se torna estagnada, embotada, degradada. Um ser humano, cujo poder luminoso da consciência não alcança um palmo adiante do nariz, vive em trevas. Onde há trevas, não há luz; porém, é das trevas que emerge a luz. Assim como a flor de lótus, símbolo da pureza espiritual, que emerge das águas lodosas do pântano, a consciência emergirá das trevas da ignorância, se nos dedicarmos a compreender a força que nos aprisiona ao mundo material.
Vamos, então, conforme a tradição do yoga, aos cinco estágios básicos da evolução da consciência individual em sua aventura na existência terrena. O primeiro estágio diz respeito à satisfação das necessidades básicas de alimento. O corpo físico, para se sustentar e cumprir com suas funções anátomo-fisiológicas, necessita de alimentos. Esse primeiro estágio corresponde a annamaya kosha, que é o instinto primitivo pela sobrevivência.
O estágio seguinte, quando o corpo está nutrido, é a necessidade de segurança e proteção. A alma, identificada com o corpo físico, sente-se segura quando ela se convence que seu corpo, alimentado e protegido, é capaz de continuar sobrevivendo. O segundo estágio corresponde a pranamaya kosha, pois a garantia de sobrevivência encontra-se na capacidade de continuar respirando.
Alimentar e respirar são aspectos primários da consciência individual. Esses dois estágios da evolução da consciência são níveis primitivos e dizem respeito à vida de qualquer animal que existe no planeta Terra. É no terceiro estágio evolutivo, manomaya kosha, que a consciência se dá conta da atividade mental e criativa, e busca ampliar as possibilidades de se “sentir viva”, entretendo-se e envolvendo-se emocionalmente com as coisas do mundo. É nesse estágio que a maioria das pessoas se encontra: perdidas entre as ilusões da mente. Ou seja, a consciência ainda está voltada para “fora de si mesmo”, absorvida e encantada pela energia do mundo material.
Agora, uma importante observação: a energia material se distingue de sua contraparte, a energia espiritual (embora ambas sejam provenientes da mesma fonte). Enquanto a energia material, caso não seja compreendida e controlada, enreda a consciência para o “mundo exterior”, levando-a a se perder nos labirintos da existência terrena em busca da satisfação dos anseios do corpo e mente, a energia espiritual emerge do autoconhecimento, e conduz a consciência ao “mundo interior”.
O quarto estágio, portanto, é quando a consciência começa a se questionar sobre o sentido de sua existência. Esse estágio corresponde a vijñanamaya kosha, que é o nível da inteligência. Assim, ao voltar-se para o mundo interior, a consciência entra em contato com a energia espiritual, que lhe abre as portas da intuição, da compreensão de si mesmo, do desapego do mundo material e da certeza da impermanência da natureza material. É quando nos damos conta de que individualismo não é sinônimo de individualidade, e temos a convicção de que, para além dessa existência material efêmera e turbulenta, há algo que a todos une, é eterno e imutável.
Podemos comparar os cinco estágios da evolução da consciência com as cinco etapas básicas da vida humana: bebê, criança, adolescente, adulto e maturidade. Um bebê chora pois necessita de alimento; uma criança sente-se segura quando se encontra ao lado daqueles que lhes protegem; um adolescente sempre está entretido com as distrações mundanas; um adulto procura ser responsável em tudo o que faz, ainda que cometa muitos equívocos; mas é apenas na maturidade que o indivíduo humano se encontra plenamente apto para desfrutar a vida, dominar as situações com maestria e tomar decisões com habilidade de modo a não prejudicar ninguém.
Pois bem, o quinto estágio é quando a consciência alcança o plena compreensão do propósito da existência. Se no estágio anterior ela passou a questionar a existência e a buscar a verdade da vida, em anandamaya kosha, o quinto estágio, ela encontrou o que procurava, sem saber que era isso que tanto procurava: ela encontrou a si mesma. Conduzida pela energia espiritual, a consciência agora é toda bem-aventurança e plenitude; ela completou a sua jornada terrena, finalizou sua aventura na existência material e cumpriu a meta da vida, a trajetória que todo ser senciente faz da terra ao céu, do profano ao sagrado, do humano ao divino.
No quinto estágio, a consciência individual se une, finalmente, à Consciência Universal. O yoga se realiza. Eis o summum bonum, isto é, o bem maior e o único propósito que o ser humano deve buscar em sua frágil e fugaz existência material. Pois a aventura terrena, para quem trilha o “caminho de volta”, é paz, amor e felicidade infinitos.
Hari Om Tat Sat.
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