A qualidade essencialmente autotranscendente da existência humana torna o homem um ser além de si mesmo (Victor Franklin)
No livro O Despertar da Kundalini, de Gopi Krishna (1903—1984), um dos primeiros iogues indianos a popularizar o conceito de kundalini (serpente de fogo, força cósmica) para o mundo ocidental, o autor nos fala desse potencial biológico contido em nosso organismo que, quando descoberto pelos meios adequados e utilizado corretamente, nos conduzirá para o despertar de uma consciência superior e, por conseguinte, à iluminação espiritual.
Alcançar essa consciência superior é aquilo que podemos denominar de autotranscendência. A autotranscendência significa que na existência do ser humano, sempre há algo mais a ser conhecido além do seu ego e personalidade.
Ou seja, `há algo a ser buscado e descoberto ou que se revelará a nós para além de nossa individualidade. Essa individualidade se refere às nossas inúmeras identidades pessoais, como nome, idade, local de nascimento, endereço, pai e mãe, nacionalidade, etnia, profissão, religião, etc.
Embora seja uma questão fundamental na vida de qualquer ser humano, a autotranscendência, de um modo geral, é pouco ou nada desenvolvida, pois ela está atrelada à espiritualidade, e os indivíduos, em sua maioria, estão presos à materialidade.
A autotranscendência não desenvolvida pode ser observada nas pessoas pela sua baixa autoestima, seus recorrentes sentimentos de infelicidade e vazio existencial, a sua alienação em relação aos outros seres e ao mundo como um todo (egoísmo).
A negligência no desenvolvimento da autotranscendência não permite que o indivíduo eleve a sua consciência para além de suas necessidades básicas (fome, sede, proteção, repouso, prazer sexual) ou mantenha-a restrita à determinados unidirecionamentos culturais, sociais, religiosos e ideológicos.
Em tal estado de consciência reduzida, o indivíduo se vê aprisionado aos mecanismos de seu corpo físico e em suas próprias armadilhas mentais, desconsiderando a sua responsabilidade em relação ao desenvolvimento de seu potencial humano e ao bem-estar comum de todos os demais seres.
A consciência limitada ao mundo físico, ao corpo, aos sentidos e sensações corporais, aos conteúdos mentais e suas projeções sobre a realidade, obscurece a percepção correta em relação ao Atma, que está no centro da existência de cada pessoa. Privado do discernimento, o indivíduo se atrela à ignorância e se perde no mundo da matéria.
É esse Atma – reflexo do princípio divino, nossa essência espiritual – que temos que descobrir ou que se revelará a nós, e que expandirá a consciência individual e fragmentária para uma consciência universal e integrativa.
Temos então que, a autotranscendência é a capacidade ou habilidade de expandir os limites da consciência individual, de modo a promover a integração do indivíduo com o todo. Trata-se de um movimento da consciência no sentido de harmonizar a filosofia e a prática, as relações interpessoais e essas com o ambiente, o passado com o futuro e, assim, dar um significado ao presente capaz de superar toda a força do egoísmo. No mais, autotranscendência é a conexão da consciência com dimensões da existência que estão além do que pode ser discernido pela mente comum.
Assim, para haver autotranscendência, o indivíduo deve, necessariamente, despir-se de suas máscaras: o ego e a personalidade. Necessário se faz, portanto, reconhecer a sua natureza humana, antes de conhecer sua essência divina.
Ou seja, antes de ser divino, o indivíduo, primeiro, tem que ser humano, na total acepção do termo. Logo, é pelo reconhecimento de sua humanidade, e tudo o que isso implica efetivamente em sua vida, que o indivíduo, então, poderá transcender a sua condição humana (não se deixar levar pela realidade material e fugaz), e acessar, assim, a sua divindade e o que ela lhe revela de maior valor: a sua liberdade e imortalidade.
Mas em que se constitui essa humanidade? Na perspectiva filosófica, humanidade é a essência do Homem (de humus, “aquele que é da terra”), significando aquilo que constitui os seres humanos (sua essência terrena), em relação aos princípios universais que regem a conduta ideal – a civilidade – não levando em conta as orientações de caráter individual. É apenas quando o indivíduo desenvolve a sua humanidade que ele estará apto à revelação de sua divindade.
A capacidade de autotranscender implica, portanto, em perder a si mesmo (o ego, a falsa personalidade), para alcançar o Si Mesmo (o Atma, a verdade de quem somos); isso gera o medo do desconhecido, que nada mais é do que a nossa própria ignorância em relação ao que somos.
O yoga é a ciência da autotranscendência. Os primeiros passos no yoga referem-se ao desenvolvimento de nossa humanidade, ou seja, a observação dos yamas e nyamas, que são princípios éticos e morais, cujo objetivo é corrigir e aperfeiçoar a nossa conduta, nossa civilidade.
No processo evolutivo da autotranscendência pelo yoga, os passos seguintes são o domínio do corpo (asanas) e o controle da respiração (pranayamas). Esses dois aspectos são importantes, pois eles preparam-nos para os dois próximos passos: o controle dos sentidos (pratyahara) e a concentração (dharana).
O domínio do corpo nos conduz à quietude; o controle da respiração nos possibilita direcionar a energia vital para a contenção dos sentidos corporais; isso torna possível a concentração, que nada mais significa do que a mente focada, sem distrações com sensações, pensamentos, emoções e sentimentos.
Os dois passos finais do processo de autotranscendência pelo yoga são a absorção mental (dhyana) e o êxtase místico (samadhi). É quando a mente se dissolve em plena consciência, que esta consciência desperta, então, para o Atma, reconhecendo, assim, sua essência divina, que é toda plena de paz, amor e bem-aventuranças infinitas.
Autotranscendência é integração. Pelo yoga, realiza-se a perfeita integração: conduta, corpo, energia, mente e espírito – humano e divino. Ao acessar a sua divindade, o indivíduo, todavia, não deixa de ser humano; ele vai além de si mesmo, ou seja, traz para a sua vida terrena (que é a sua humanidade) a vida divina (a sua espiritualidade). Isto é a autotranscendência, isto é yoga.
Hari Om Tat Sat.
Ótimo texto para iniciarmos o ano, Prof. Marcelo!