Virtude, riqueza e prazer devem ser buscados igualmente. Nenhum deles deve ser buscado em detrimento de outros (Mahabharata)
De modo geral, o que é ensinado nas religiões por “autorrealização espiritual” está atrelado à renúncia, penitências e sacrifícios. As paixões do corpo devem ser subjugadas, pois, conforme se ensina geralmente nas religiões, riquezas materiais e prazeres sensuais são obstáculos para se alcançar o Divino.
As religiões, de modo geral, pregam que o caminho para o Céu é estreito e se faz por uma íngreme estrada; nesse percurso há pedras pontiagudas e espinhos dolorosos que dilaceram o corpo. Tal escalada se faz despojado de todo amparo, pés descalços e braços nus, cabisbaixo e contrito.
Há quem, ainda, não satisfeito, chicoteia o próprio lombo, enquanto segue a marcha peregrina pela via dolorosa sagrada do sofrimento. Como diz a letra de uma popular canção, “se eu quiser falar com Deus, tenho que aceitar a dor, tenho que me ver tristonho, tenho que me ver medonho e apesar do mal tamanho, alegrar meu coração”.
A mesma canção também diz que “se eu quiser falar com Deus, tenho que caminhar decidido, pela estrada que, ao findar, vai dar em nada, nada do que eu pensava encontrar”. Renúncia, penitências e sacrifícios é o que se espera daqueles que buscam o Divino. O sofrimento é a via principal de acesso.
Isso não é de todo errado; porém, tampouco não é de todo certo. Os caminhos que levam ao Divino são muitos e podem divergir uns dos outros, no que se refere aos meios e métodos utilizados. De fato, renúncia, penitências e sacrifícios são deveres de todos aqueles que buscam o Divino. Contudo, será que o Divino somente se encontra na dor e no sofrimento?
Bhoga é um termo sânscrito que significa “indulgência”, “prazer sensorial”. Trata-se de desfrutar dos prazeres materiais da existência, de ser complacente com desejos e preferências. Como caminho para a autorrealização espiritual, bhoga, conforme alguns acreditam, diverge de yoga, cuja realização se encontra, principalmente, na renúncia aos prazeres materiais.
Há quem acredite que as experiências voltadas ao prazer sensorial são obstáculos para o alcance do Divino. Desta forma, bhoga não seria um caminho para a autorrealização espiritual. O bhogui, ao desfrutar intensamente dos prazeres terrenos, entregando-se a eles, estaria violando os princípios iogues da união com o Divino.
Quem assim acredita, não está de todo errado. A luxúria ou o excesso de indulgência em relação às necessidades de satisfação biológica e aos desejos materiais, acabam por desviar o indivíduo do caminho que conduz ao Divino, pois o mesmo se encontra entretido e apegado às próprias afeições.
Entregar-se, sem qualquer discernimento, aos prazeres terrenos, de certo enfraquecerá corpo e mente, pois que a energia vital será desperdiçada com banalidades que não levarão a lugar algum, que dirá ao Divino. Para que bhoga seja um caminho para a autorrealização espiritual, portanto, há de se desfrutar das coisas da vida sem a elas se apegar.
O Ser Supremo, em sua infinita sabedoria, criou um mundo fenomênico onde as fontes de prazer sensorial são inesgotáveis; ele deseja que sua criação desfrute das coisas por ele criadas. Os sentidos corporais e as sensações deles decorrentes, são as portas da alma para o mundo exterior; quando a alma entra em contato com os objetos de percepção sensorial, estímulos prazerosos alegram o espírito.
Correr, caminhar, dançar, cantar, ler, escrever, praticar esportes ou qualquer atividade corporal ou cognitiva, bem como a variedade das formas, cores, texturas, sons, aromas, sabores e odores do mundo fenomênico, se constituem nas fontes inesgotáveis de prazer sensorial que estão aí para o nosso desfrute e deleite.
Não há “pecado” em degustar um alimento ou bebida saborosos, em admirar-se com uma bela visão, em extasiar-se com um perfume inebriante, em se encantar com uma canção cativante, em agradar-se com uma textura macia e insinuante ou deliciar-se em um ato sexual amoroso, consentido e permitido conforme os ditames da consciência mais elevada.
Bhoga, portanto, não impede o caminho para a autorrealização espiritual. Saber deleitar-se com as coisas que a vida material oferece, conforme o destino nos presenteia, é usufruir cada momento com alegria, plena satisfação e sem apegar-se ao desejo de repetição.
Esta é a questão do apego que, se não estivermos atentos, nos desvia da senda espiritual, nos aflige com as banalidades do mundo fenomênico e, por fim, nos aniquila qualquer possibilidade de transcendência: quando algo nos agrada aos sentidos, desejamos repetir a experiência insistentemente. Aquele “gostinho de quero sempre mais” é o que nos pode embaraçar em situações que em nada condizem com a conduta ética e moral que permeia o caminho para o Divino.
O caminho do bhogui nada tem a ver com devassidão, lascívia, luxúria ou depravação. Seguir por esta via pode ser tão difícil quando a vereda do yogui. Assim como a prática do yoga exige renúncia, penitência e sacrifício, ao bhogui cabem as mesmas premissas. Vejamos:
O bhogui, embora não renuncie aos prazeres sensoriais, ele não os procura; ele abdica da busca. Apenas quando uma ocasião se apresenta favorável e conforme os princípios da mais elevada consciência, o bhogui alegra-se e deleita-se com aquilo que a vida lhe oferece no momento. Pois, alegria e deleite são tão sagrados quanto amor e paz. Não há serenidade, felicidade ou harmonia que se sustentem, sem momentos de descontração e regozijo.
O bhogui aceita e reconhece quando comete algum tipo de excesso. Assim como o yogui, ele dedica-se diariamente à reflexão sobre seus pensamentos, palavras e ações, arrepende-se dos equívocos e agradece pelas bênçãos recebidas. Ele é beneficente com o próximo, e mantém-se firme na humildade, na simplicidade, na generosidade e na compaixão. Seu sacrifício está nos atos de altruísmo e abnegação em favor de todos que nele buscam refúgio.
Yoga e bhoga, embora pareçam caminhos espirituais muito distantes e até antagonistas, apresentam o mesmo princípio subjacente: discernimento. Não se apegar ao prazer, ainda que possa desfrutá-lo com intensidade, é observar o último preceito da ética do autocontrole: aparigraha. Isto significa não possessividade, não ser ganancioso, não buscar mais do que lhe convém, não acumular seja lá o que for (desde objetos ou coisas materiais até experiências sensoriais). Afinal, não é necessário ser um glutão para satisfazer a fome.
Bhoga, assim como yoga, pode ser compreendido como bem-aventurança. Somente em um estado de mais elevada consciência, podemos desfrutar a vida, em sua mais esplendorosa beleza, com genuína intensidade, em serenidade e harmonia, sem sermos enredados pelas circunstâncias e arrastados pelos desejos e apegos.
Aos devotos puros do Ser Supremo, não apenas a virtude, mas os prazeres da vida lhe são concedidos. Lembremo-nos das gopís de Vrindávana, pastoras que se destacavam pela seu incondicional amor e devoção a Krishna, a Suprema Personalidade de Deus. O Bhagavata Purana descreve o serviço devocional amoroso das gopís, que desfrutavam do amor conjugal e da companhia de Krishna, em uma aparente vida de extrema sensualidade.
Mesmo sem praticar severas austeridades, penitências e sacrifícios, apenas por meio do serviço devocional amoroso, as gopís alcançaram o mais elevado estado de consciência e liberação da matéria. Nesta relação mútua de amor, devoção, serviço e proteção entre Krishna e as gopís, estabeleceu-se o verdadeiro princípio da religião e do yoga: simplesmente amar o Ser Supremo, o doador da vida plena e de todas as infinitas e eternas bem-aventuranças.
Hari Om Tat Sat.
Seguindo-se o verdadeiro princípio religioso de amar a Deus, mesmo as entidades vivas conhecidas como sthira-cara foram também libertas de toda a contaminação material e transferidas para o reino espiritual. Sthira se refere às árvores e plantas, que não podem se mover, e cara diz respeito aos animais, que são móveis, especialmente as vacas. Quando Krishna estava presente, Ele libertou todas as árvores, macacos e outras plantas e animais que O viram e O serviram, tanto em Vrindāvana como em Dvārakā. (Srimad Bhagavatam, Canto X, Cap. 90, Os passatempos de Krishna)
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