Retornando à sua montanha, Shiva, em sua excitação, causada pela separação de sua amada, lembrou-se de Sakti, que era mais querida para ele do que a sua própria vida. Abandonando suas vestes, ele vagou por todos os mundos e, não a vendo em lugar nenhum, as dores de sua separação apenas aumentavam. Então, Shiva, o Auspicioso, retornou à sua montanha e, permanecendo em absoluta imobilidade, realizou a bem-aventurança: ele viu a sua forma real imperecível (Shiva Purana 2,3)
A tradição do yoga deixou-nos o legado de uma sabedoria ancestral, transmitida pelos ensinamentos dos mestres imortais, peritos que eram nas artes divinas. As experiências esotéricas desses mestres constituem-se nos fundamentos das ciências espirituais, e que ainda hoje nos servem como orientação para as práticas de yoga.
No capítulo III do Yoga Sutras, de Patanjali, encontramos as referências sobre as realizações no yoga. Essas realizações ou poderes divinos são alcançados apenas pelos mestres autorrealizados (siddhas), aqueles que obtiveram um elevado nível de aperfeiçoamento da mente e da expansão da consciência.
No capítulo 3.1, Patanjali afirma: Kurmanadyam Sthairyam, que significa, “para manter-se estável, concentre-se em kurmanadi”. Estabilidade é o equilíbrio corpo-mente, a harmonia que se estabelece entre a quietude do corpo firme e o silêncio da mente atenta.
Kurmanadi é um dos muitos suportes (adharas) para onde direciona-se o fluxo da energia vital (prana), por meio da respiração consciente, durante as práticas de meditação. Kurmanadi é o “canal (nadi) da tartaruga (kurma)", que se localiza na cavidade da garganta.
Quando direciona-se o prana para kurmanadi, alcança-se a perfeita imobilidade (sthairya) do corpo. É esta perfeita imobilidade do corpo que assegura a perfeita estabilidade da mente; este é o caminho para o yoga, isto é, a união da consciência individual com a Consciência Cósmica, a plena harmonia Humano-Divino.
Neste estado de elevada consciência (samadhi), todas as distrações cessam; o ego - a falsa identidade - se retira, e o que permanece é a verdadeira natureza. Assim, todas as formas exteriores (rupa) se dissolvem, e o que fica é somente a forma real (svarupa).
Ao acessar Kurmanadi, a ignorância a respeito de si mesmo - a falsa identidade - se desfaz; emerge, assim, a verdadeira natureza (satya-svarupa), completamente livre de toda imperfeição e qualquer impureza, tal qual a Consciência Infinita.
Então, pela obtenção do conhecimento correto "daquilo que é", a pessoa torna-se um yogi; onde quer que esteja, sua essência estará presente e ativa, qual seja, a “bem-aventurança suprema” (parananda-svarupa).
Vimos que kurmanadi é o “canal da tartaruga”, e que o mesmo se localiza na cavidade da garganta. Ao acessar kurmanadi, o poder que daí advém é a cessação completa da fome e da sede; fome e sede não apenas de alimentos que sustentam o corpo, pois que este produzirá o próprio néctar da imortalidade (amrita), mas a cessação dos desejos e paixões mundanos.
Vejamos alguns significados e representações da tartaruga nas ciências espirituais. Em um antigo texto hindu (Vishnu Purana), conta-se que os semideuses (devas), haviam perdido seus poderes divinos e imortalidade para Durvasa, um sábio de temperamento explosivo. Eles, então, pediram ajuda a Brahma, que levou o caso até Vishnu, a Suprema Divindade. Vishnu solicitou que os devas agitassem o oceano cósmico para, assim, obterem o elixir da imortalidade.
A tarefa era de grande exigência e os devas recorreram aos demônios (asuras) para que os ajudassem. Também contaram com a colaboração da montanha Mandara, que se ofereceu como uma vara de bater, e da serpente Vasuki, que se dispôs como uma corda. Assim que a agitação do oceano teve início, a montanha começou a afundar; Vishnu, então, como avatar de uma tartaruga, surgiu para auxiliar, carregando a montanhas nas costas, provendo a necessária solidez para que a tarefa fosse cumprida.
Na cosmovisão do Hinduísmo, a Terra é sustentada por quatro elefantes, que estão apoiados no casco de uma tartaruga, que é uma base forte e estável. A tartaruga, nessas duas representações, simboliza força, coragem, segurança – ela é solidez e equilíbrio.
A tartaruga simboliza conhecimento, concentração, proteção e sabedoria. Sempre que necessário, após aventurar-se pelo “mundo exterior”, ela se recolhe, retorna ao seu estado original de quietude e silêncio, isola-se em seu “mundo interior” e restaura a paz e a tranquilidade.
Ela é o símbolo da vida longa, da imortalidade, da prosperidade e da felicidade. Assim como a tartaruga, que alterna sua existência entre a água (a emoção) e a terra (a razão), em nossa jornada espiritual, temos que buscar o equilíbrio entre o movimento e o repouso, e deixar-se fluir harmoniosamente pela vida.
Os atributos da tartaruga, juntamente com a localização de kurmanadi, nos mostra claramente que a estabilidade, a harmonia e a felicidade tanto almejadas, se encontram exatamente no âmago de cada pessoa. O domínio de kurmanadi nos revela “aquilo que é”, o real imperecível, a essência, o indivisível, o Uno que reside em toda e qualquer diversidade, que é a base firme, estável e consistente que a tudo provê e sustenta.
O acesso à Kurmanadi – que, em outras palavras, é a fonte da vida, o “coração do Ser”, o reservatório de tudo o que foi, é e será, a interiorização, a sabedoria, a paz e o amor – promove uma reestruturação em nossa mente: abandonamos o ímpeto às reações intempestivas, pois o que nos move não é mais o ego e sua insensatez e mesquinharias, mas uma consciência ampla e profunda, serena e equânime.
Estaremos aptos a perceber indícios de possíveis emoções que possam desencadear reações destrutivas à paz interior e à tranquilidade alheia. Diante de uma situação potencialmente conflituosa, podemos ponderar: “isso não diz respeito a mim”; ou “por que antecipar um drama ou uma tragédia, se não sei qual será o rumo dos acontecimentos, e mesmo que saiba, não há nada que poderei fazer para reverter"?
Meditação Kaya Sthairyam
Assim como a tartaruga recolhe seus membros para dentro do casco, aquele que é capaz de retirar seus sentidos dos objetos dos sentidos está firmemente estabelecido em consciência perfeita (Bhagavad Gita, 2, 58).
Kaya Sthairyam (“corpo firme”) é uma prática meditativa que consiste no cultivo da absoluta quietude. Permanecer com o corpo imóvel, absolutamente imóvel, eis o princípio desta prática, cujo propósito é o emergir do silêncio interior.
Estabelecido em uma postura (asana) preferencialmente sentada, e que seja de fácil execução, mantenha a tensão necessária entre a firmeza e a leveza, o corpo absolutamente imóvel, porém, confortável. Permaneça consciente do corpo e suas sensações, da mente e seus pensamentos. Atente-se a tudo, mas nada retenha, nada julgue; deixe tudo fluir naturalmente.
Qualquer impulso para o movimento (mexer um dedo, coçar a cabeça, esfregar os olhos, ajeitar a roupa, engolir a saliva, etc.) deve ser superado com rigorosa resolução; lembre-se que a imobilidade deve ser absoluta.
Direcione a consciência para cada parte do corpo (da cabeça aos pés) e para as sensações que delas emergem (frio, calor, dor, formigamento, tensão); sempre atento ao que acontece no aqui e agora do corpo e mente, porém, sem nada a fazer, sem interferências ou apegos, apenas simples e atenta observação.
Consciente da imobilidade do corpo, sua firmeza e estabilidade, observe-se, como se estivesse olhando de fora; atente-se à sua postura, observando-a minuciosamente de vários ângulos de cada vez e, depois, por todos ao mesmo tempo; visualize-se em perfeito estado de equilíbrio e harmonia.
Quando a imagem de um corpo absolutamente imóvel, firme, relaxado e estável surgir com nitidez, a mente estará tão imóvel, firme, relaxada e estável quanto o corpo; o silêncio da mente é o reflexo da quietude do corpo e vice-versa. É neste estado de quietude e silêncio que a atenção se volta para a respiração consciente.
Observe atentamente o movimento de inspiração e expiração, sem ditar ritmos, sem nada forçar, nada controlar; apenas observe o fluxo natural, o ritmo próprio do momento, do ir e vir do ar que entra e sai pelas narinas, que preenche e esvazia os pulmões. Mantenha a consciência na constância e regularidade do fluxo, e observe como o ritmo se reduz paulatinamente.
Na medida em que a mente se transforma num grande “espaço vazio”, a respiração se torna tão sutil que não mais se perceberá o seu fluxo. Eis a realização do estado de kaya sthairyam, isto é, a cessação da consciência corpo-mente, onde tudo permanece absolutamente imóvel.
É neste estado profundo de concentração (dharana), que se alcança-se o “coração do Ser” – kurmanadi. Tal qual a tartaruga que se retira para o “mundo interior” para comungar com a quietude e o silêncio, assim penetramos no mais recôndito espaço do corpo-mente, onde reina o Absoluto, o Ilimitado: é lá que estaremos em completa uniformidade com a Consciência Cósmica, e a plenitude e a eternidade se revelarão como inerentes “àquilo que somos”.
Hari Om Tat Sat.
Esse mundo de diversos nomes e formas é composto pelo desejável e o indesejável. Por esses as pessoas se esforçam, mas pelo autoconhecimento ninguém se dedica. É uma pena que as pessoas se entreguem a tão colossal destruição da vida por esses ganhos insignificantes. Mas nada disso prende a atenção do sábio, pois ele adquiriu o autoconhecimento. Estabelecido naquele assento supremo (kurmanadi) ao qual o sol e a lua (as dualidades) não têm acesso, ele está liberto da ilusão da dor e do prazer (Yoga Vasishta IV, 57)
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