Se a mente está vinculada a alguma experiência, isso é escravidão. Quando a mente está separada de toda experiência, isso é libertação. Não pensando em termos de perda ou ganho, sou feliz.
(Ashtavakra Gita, 8.4; 13.6)
Aceitar, serenamente, as “coisas da vida” como elas chegam até nós ou tentar interferir para que as “coisas da vida” nos sejam sempre favoráveis? Ver as coisas “como elas são” ou ver as coisas como possibilidade de “levar vantagem em tudo”?
Esses dilemas da vida se confrontam no campo da ética e da moral. Para alguns, tal confronto gera inúmeros conflitos internos; para muitos, não há qualquer dúvida de que “tudo tem que ser favorável” para si mesmo; e para uns poucos, também não há dúvida de que “aquilo que a vida traz”, é “aquilo que tem que ser vivido”.
Suportar, contrariado, algumas vezes contido e outras praguejando, é o máximo que muitas pessoas fazem quando, por alguma razão ou motivo qualquer, não conseguem reverter uma situação a seu favor, e que consideram como inconveniente ou prejudicial aos seus interesses.
Não há virtude alguma em aturar os “ventos contrários” da vida, padecendo calado no íntimo, ou exasperando-se em público em infinitas lamúrias. Lamentar os fatos da vida, fazendo-nos de “pobres vítimas”, transformando os fatos em narrativas fabulosas, intrigas ou invencionices, em nada nos auxilia na percepção e compreensão correta do evento ao qual fomos expostos.
Consentir com a “realidade dos fatos”, sempre é o melhor caminho a seguir. Afinal, um fato não é uma narrativa sobre isto ou aquilo; qualquer fato, em si, é imparcial. Observar um fato é olhar com atenção para aquilo que está acontencendo no momento, sem tentar mudar ou protestar para favorecer-se.
Se quisermos “aprender com a vida”, temos que entender o significado espiritual da palavra “aquiescência”. Aquiescer é “ponderar com transigência”; é saber “permitir-se compreender” para, então, superar. Trata-se de aceitar, incondicionalmente, as coisas que a vida traz, na certeza de que, “tudo que nos chega, pertence a nós”, com um propósito que, a princípio, desconhecemos, e somente conheceremos, se não intervirmos na situação.
A aceitação incondicional das coisas que a vida nos traz, muitas vezes é vista como conformismo; de modo geral e equivocado, esse conformismo associa-se a uma fraqueza de disposição de ânimo para “lutar bravamente” contra tudo que nos desfavorece ou desagrada; como se a vida nos devesse sempre ser favorável, independente de nossas ações e suas consequências. Aceitação incondicional significa reconhecer o processo terreno e espiritual pelo qual atravessamos, sem julgar as situações como negativas ou desconfortáveis.
Vejamos, por meio de um interessante conto taoísta, adaptado ao nosso propósito, o que, exatamente, significa esta aceitação incondicional. Este conto fala de um velho monge, que vivia em uma longínqua aldeia na floresta. O velho monge era muito respeitado pelos aldeões devido à sua imensa sabedoria e compaixão.
Ele vivia só, em uma cabana um pouco mais afastada das demais; enquanto o sábio monge ocupava-se nas práticas espirituais, transmitindo seus ensinamentos alegremente a quem o procurasse, os aldeões tinham por hábito dar-lhe assistência material e levar-lhe alimentos.
Certa ocasião, uma moça da aldeia, ferindo os costumes locais, engravidou de um rapaz. Quando o bebê nasceu, para não ser banida da aldeia, ela, que sempre visitava o sábio mestre, não pensou duas vezes em lançar-lhe a culpa de sua infeliz situação.
Os aldeões, sentindo-se traídos e revoltados, foram até o velho monge, amaldiçoando-o e dizendo-lhe “toma que o filho é teu”. Os aldeões decidiram que não forneceriam mais alimentos ao velho monge e, tampouco, o procurariam para conselhos espirituais.
O monge, quando viu a multidão em frente à sua cabana, raivosos e acusando-o injustamente, permaneceu calado por um momento. Em seguida, com um sorriso nos lábios e sincera alegria no coração, mãos em prece, exclamou “Thatastu!”, e tomou carinhosamente o bebê nos braços como se fosse seu filho.
A partir de então, o monge não pode mais se dedicar às práticas espirituais, que tanto lhe eram do seu agrado, pois o bebê exigia constante atenção e cuidado. Além disso, o monge teria que trabalhar pelos próprios recursos, já que os aldeões não mais destinariam-lhe qualquer caridade.
O tempo passou. O monge vivia alegremente com a criança, ambos cuidando dos afazeres cotidianos. Entretanto, a moça, envergonhada de sua falsa acusação, moía-se de remorso. Não suportando mais a “consciência pesada”, decidiu, então, reunir os aldeões e dizer a verdade.
Chocados com a revelação do fato, os aldeões, imediatamente, foram até o monge, pedindo-lhe perdão pelas injúrias que lhe dirigiram. A moça, por sua vez, exigiu que a criança lhe fosse devolvida, pois que cuidaria dela a partir de agora.
O monge, mais uma vez vendo a multidão eufórica em torno de sua cabana, por um breve instante, permaneceu calado. Em seguida, com um sorriso nos lábios e sincera alegria no coração, mãos em prece, exclamou “Thatastu!”, entregando carinhosamente a criança à sua mãe. Sem mágoas ou ressentimentos com os aldeões, a vida seguiu adiante, e o monge pôde voltar a se dedicar às práticas espirituais quem tanto lhe eram de gosto, e a instruir o povo local com seus valiosos ensinamentos.
Thatastu é o “segredo” de uma vida feliz. É um termo sânscrito que significa “cumpra-se”, “que assim seja”, “que se faça a sua vontade”. Thatastu é a compreensão correta de que tudo o que a vida traz, é o que tem que ser vivido, para ser aprendido e transcendido. Thatastu é a serenidade que brota espontaneamente, grandiosa e perfeita, quando paramos de resistir contra tudo o que nos desagrada ou desfavorece.
O que nos torna infelizes é a não aceitação incondicional dos eventos da vida. A vida traz eventos muito dolorosos, como a perda de um ente querido e, sem dúvida, é custoso compreendermos tal perda e acatar o destino. Mas o que “pega” as pessoas são os acontecimento corriqueiros; são esses pequenos eventos que fazem a pessoa “perder as estribeiras” e sofrer por coisas sem nenhum sentido.
Por exemplo, quando alguém marca um encontro e a pessoa não aparece. O fato é: uma pessoa não aparaceu no encontro marcado. Apenas isso e nada mais. Mas a nossa mente... Ah, a nossa mente! Mergulhados em uma fértil imaginação, julgamos o ocorrido, criamos uma “história”, visualizamos o cenário, os atores, as ações e os diálogos e, por fim, decretamos a sentença!
Se o encontro era logo pela manhã bem cedo, num dia frio, é possível que se pense: “Preguiçoso, irresponsável; deve estar metido embaixo dos cobertores, enquanto passo frio esperando. Vai ver que esteve na gandaia, enchendo a “cara” de álcool e agora tá na ressaca. Conheço muito bem esse sem-vergonha. Ah, miserável infeliz, quando eu te ver, te direi poucas e boas, por ter me deixado aqui sozinho"!
Quanto mais cores e detalhes infundirmos na “história”, mas ela se parecerá verdadeira; e mais acreditaremos na fábula que contamos a nós mesmos. E mais frustrados ficaremos. A raiva brotará das entranhas e o ódio tomara conta de alguns, a ponto de desejarem uma terrível vingança. São essas “histórias”, imaginadas em nossa mente, que nos causam tristeza, apatia, angústia e sofrimento sem fim. São essas “histórias” que nos levam a cometer inúmeras bobagens na vida.
O colega não apareceu no encontro e tampouco lhe deu satisfação? Thatastu! O que você fez enquanto esperava? Aproveitou bem o seu tempo? Levou um bom livro para ler e aprender algo edificante? Praticou a meditação? Ou desperdiçou a oportunidade se perdendo no Tik Tok? Ou ficou “imaginando coisas”, elaborando narrativas perversas que apenas te conduzirão por uma espiral descendente de aflições, intrigas e desarmonia?
Os fatos não contam uma “história”; porém, elaboramos uma a partir deles. Quando observamos atentamente o “agora”, a luz da consciência ilumina a nossa mente. E percebemos, com toda clareza, os rumos que tais narrativas fabulosas determinam para a nossa vida.
Não precisamos de invencionices para justificar algum momento que nos foi contrário ao esperado. Se criarmos expectativas sobre qualquer coisa, temos que saber que, nem sempre, elas serão realizadas. Aliás, a frustração é mais fácil de acontecer do que uma expectativa se realizar.
Mas como nos livramos dessas “histórias” que a mente nos conta? Patanjali, no segundo aforismo do Sutras, afirmou: yoga citta vrtti nirodha. A tradução é: “yoga é o controle das atividades da mente”.
Citta é a mente em movimento; vrtti são as flutuações dos conteúdos mentais, o constante ir-e-vir dos pensamentos; nirodha é o estado de controle dos pensamentos; yoga é a natureza serena da mente. A mente sem controle está sempre sujeita a alterações (parinama). Sob controle, ela é pacífica, serena como um mar sem ondas, límpida como as águas de um lago que reflete o céu.
Não se pode restringir a fluidez da mente, porém, pode-se canalizar a energia psíquica, direcionando-a para onde quisermos. Canalizar a energia psíquica é não se deixar distrair pelo constante fluxo da mente. O “controle dos pensamentos” se faz pela observação atenta das flutuações do conteúdo mental, que são as imagens que se formam na mente e os diálogos que ela estabelece.
São estas imagens e diálogos que moldam as narrativas fabulosas e as invencionices sobre os fatos da vida. São estas imagens e diálogos, que surgem na mente – e que brotam do nosso inconsciente – que “contam as histórias por trás dos eventos”. Tais “histórias” não nos ensinam absolutamente nada sobre os fatos da vida; mas são obstáculos, por vezes, intransponíveis para alcançarmos o mínimo de lucidez e discernimento.
O Buda, em sua imensa sabedoria e compaixão, ensinou: “a mente escraviza, a mente liberta”. Manter a tranquilidade diante de qualquer circunstância, observando com atenção o que se passa no “agora”, sem julgamentos, é o caminho para a compreensão correta dos sentidos e significados das experiências da existência.
Aceitar incondicionalmente as circunstâncias da vida é uma opção que está sempre disponível a todas as pessoas. Temos muito que aprender com thatastu.
Hari Om Tat Sat.
No espelho da sua mente, imagens de todos os tipos aparecem e desaparecem. Sabendo que elas são criação sua, silenciosamente observe-as ir e vir, esteja alerta, mas sem se perturbar. Essa atitude de observação silenciosa é a própria base do yoga (Sri Nisargadatta Maharaj)
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