Um homem não pode fazer o certo numa área da vida, enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível.
(Mahatma Gandhi)
Monges cegos examinando um elefante (Habanusa Itchõ, século XVIII)
Parábola dos cegos e do elefante
Um grupo de homens cegos soube que um estranho animal, chamado elefante, tinha sido levado até à cidade, mas nenhum deles conhecia a sua forma. Cheios de curiosidade, disseram: "Temos que o examinar através do toque".
Assim, foram à sua procura, e quando o encontraram começaram a tocar-lhe. O primeiro deles, cuja mão tocou no tronco, disse: "Este ser é como um tubo de drenagem".
Para outro dos cegos, que tocou na orelha do elefante, pareceu-lhe um tipo de leque.
Um outro, que mexeu nas pernas, afirmou: "A forma do elefante parece um pilar".
E aquele que colocou a sua mão no seu dorso, disse: "De facto, este elefante parece um trono".
Como se pode ver, cada um deste homens percepcionou um aspecto verdadeiro ao examinar o elefante. Nenhum deles ficou longe da verdadeira descrição do animal. No entanto, eles ficaram aquém de perceber plenamente a verdadeira aparência do elefante.
(Tattvarthaslokavatika, séc. IX)
O que o yoga pode nos ensinar sobre tolerância e benevolência nesses tempos sombrios, quando a sociedade parece enredada por posicionismos extremos, vertidos por práticas político-partidárias que se julgam “donas da verdade”?
Yoga é um termo que provém da raiz sânscrita yuj, cujo significado é “unir, tornar uno, buscar a unidade”. Buscar a unidade na diversidade, tornar uno o que é múltiplo, unir o que está separado – isso é yoga.
O yoga trata, especificamente, da união do Humano com o Divino, pois, na tradição do yoga, tudo o que existe (humanos, plantas, bichos, água, ar, terra, o universo e tudo o que nele habita ou existe), não apenas provém do Divino, porém, é a própria manifestação do Divino.
Isso quer dizer que, em cada ser vivente, em cada planta, em cada bicho, em cada gota d´água, em cada partícula do ar, enfim, em tudo que existe, quer percebamos ou não, há uma centelha da divindade, uma semente do Divino prestes a brotar em cada ser, coisa ou objeto da natureza.
As escrituras sagradas de todas as religiões ou filosofias de todas as eras, sempre apontam para esta verdade e realidade: o Divino está em tudo, pois tudo é o Divino. Por isso, a percepção correta da realidade é fundamental a qualquer prática espiritual.
Paz, amor e felicidade somente se revelam àqueles que percebem o Divino em tudo e em todos, sem exceção. Esta percepção correta da realidade é a via de acesso para “unir o que está separado”. A separação é uma ilusão, pois as aparências enganam somente àqueles que não estão atentos à verdade da “unidade na diversidade”.
Este é o ensinamento mais valioso do yoga. Quando compreendemos esse ensinamento, naturalmente brota em nós a tolerância e a benevolência para com todos os seres vivos e toda a natureza. Uma vida de sabedoria e compaixão se abre para todos que compreendem a verdade da realidade.
O yoga, em sua filosofia, nos apresenta alguns princípios de convivência que, quando praticados, nos desembaraçam das confusões mentais que geram inúmeros conflitos em nossa vida. Esses princípios trazem-nos de volta a lucidez, a sensatez e a equanimidade em todas as nossas ações.
Nesses tempos estranhos em que vivemos, não é a doença ou a guerra que nos causam mais danos. O que está nos levando à falência, seja como nação, como povo, como sociedade e como pessoas, é o egoísmo, fruto de uma ignorância que tomou proporções epidêmicas.
Vejamos, resumidamente, três princípios do yoga que, se compreendidos, observados e praticados com sinceridade de coração, poderão nos trazer de volta a serenidade e a harmonia que até bem pouco tempo atrás, ainda era possível desfrutarmos.
Ahimsa
A não violência é o princípio básico do yoga. Mas não apenas do yoga, pois ahimsa é um princípio universal, que aparece em todas as doutrinas religiosas de todas as eras. Violência é agressão intencional ou não intencional. A violência se manifesta de muitas formas, seja através de ações, palavras ou pensamentos, atingindo a todo e qualquer ser vivo e mesmo à natureza. É muito fácil cometer uma agressão se não estivermos muito atentos e conscientes de nossos pensamentos, sentimentos e emoções, pois isso se converte em palavras e atos. Não importa se causamos danos grandes ou pequenos. O certo é que não deveríamos causar danos ou prejuízo algum a quem quer que seja.
Aparigraha
Se apossar de algo, seja o que for, é um modo de violência, que pode ser física, moral ou psicológica. O desejo de possuir, dominar e controlar não é saudável, pois é um desvio da percepção correta. Qualquer possessividade transitória, como, por exemplo, usar pessoas (ou suas crenças e fé), para alcançar interesses particulares e, depois, descarta-las, é uma forma de apego ao poder. Explorar um ser humano ou explorar a natureza em geral, para obter vantagens particulares, é o desejo egoísta de assenhorar-se de algo que não nos pertence; apossar é o mesmo que aprisionar, atar, submeter, engaiolar o que é alheio, seja um objeto ou uma crença.
Anekantavada
Acreditar que a verdade é privilégio de alguns, constitui-se em uma das formas mais potentes e perniciosas que geram conflitos entre os seres humanos. Observar o pluralismo de opiniões é compreender que os vários pontos de vista sobre o que se considera verdade, não são a própria verdade, porém, apenas perspectivas. A serenidade e a harmonia entre as pessoas, em muito pode ser atribuída à consideração pelos pontos de vista de outras filosofias, religiões e ideologias. Quando alguém se apega às próprias ideias sobre a verdade, pode cometer equívocos e erros terríveis, pois considera que apenas a sua perspectiva sobre a vida é correta. Quantos crimes e atrocidades já foram cometidos pela humanidade em nome de uma opinião particular que, à força da violência e da intolerância, quer prevalecer sobre tudo e todos.
A parábola dos cegos e do elefante é um exemplo de como as perspectivas sobre a realidade podem ser contraditórias. Ainda que todos os cegos toquem o elefante, cada um deles, ao tocar em partes diferentes, descrevem não o que veem, mas o que pensam ser um elefante completo. Isso porque acreditam que a parte tocada representa a verdade tal qual ela é.
Na tradição do yoga, as perspectivas parciais da verdade são denominadas de naya. Pelo conceito de syadvada devemos considerar que todas as perspectivas são apenas parcialmente verdadeiras e, ao mesmo tempo, parcialmente falsas. É por uma perspectiva ampliada da realidade, ou seja, integrar diversos pontos de vistas, que podemos chegar a uma verdade mais abrangente, que nada exclua. A integração de perspectivas é o princípio denominado nayanada.
Ou seja, as pessoas devem fazer um esforço em direção a inclusão das verdades parciais, isto é, descobrir os elementos que se ocultam em cada perspectiva para que assim, a verdade maior possa ser compartilhada por todos. Não se trata de deixar de lado as próprias crenças ou valores, porém, pôr em suspensão os julgamentos, para buscar entender, com sinceridade de propósito, aquilo que o outro tem a dizer, ou seja, compreender o ponto de vista alheio e integrá-lo aos seus princípios.
Anekantavada é o respeito pela opinião alheia. Não é necessário atacar aquilo que não concordamos. Somente ataca quem tem medo, quem é covarde. Somente os fortes é que são capazes de integrar pontos de vistas distintos. Ao mesmo tempo que defendem suas perspectivas sobre a realidade, eles não se entrincheiram e não se apegam às suas próprias perspectivas sobre a realidade, buscando a compreensão sobre outros pontos de vistas, pois não consideram as opiniões alheias como rivais.
Esse respeito se dá pela compreensão de que a realidade se faz de muitos elementos, ela é múltipla. Querer encerrar a realidade em uma única perspectiva, aceitando que apenas um ponto de vista em particular se constitui na verdade definitiva, é ir em direção à falência, pois a visão limitada da realidade é capaz de provocar muitos males aos indivíduos e à sociedade em geral. Todas as perspectivas devem ser consideradas se, de fato, almejamos uma imagem completa da realidade.
Mas o que ocorre, atualmente, nessa época avançada da tecnologia da informação, onde há um campo fértil para a disseminação de tantas mentiras, é que as pessoas, acirradas em seus ânimos egoístas, sequer procuram “apalpar o elefante” para saber do que se trata. Esse egoísmo exacerbado, uma particularidade de Kali-yuga (o Tempo de trevas que vivemos, segundo a tradição do yoga), torna as pessoas cegas, surdas e reativas a qualquer movimento que seja contrário ao que pensam, fazem ou acreditam.
Simplesmente, julgam e condenam (lacram e cancelam, em termos atuais), conforme os ditames de seu egoísmo, considerando que estão do “lado certo”, quando não percebem que não há um lado a escolher (somos todos brasileiros, não importa de que região, classe social, cor da pele, crença religiosa, valores ideológicos, gênero, etc.), ou mesmo se o que se diz certo é, de fato, certo, e o que se diz errado, é, de fato, errado.
Tudo é muito relativo, “o lado”, “o certo” ou “o errado”, pois a visão não é do todo, mas apenas uma ínfima parcela da realidade, pois poucos se esforçam para ir além de suas “verdades e convicções”, que jamais foram analisadas à luz da reflexão. Apenas reagem, como cães raivosos, tentando morder e dilacerar a tudo e todos, pois foram infectados por um terrível vírus que lhes despertou uma ira infundada: o vírus do ódio.
Cada indivíduo enxerga o que quer, conforme lhe convém. A somatória dessas percepções equivocadas, originadas do egoísmo, leva à configuração de um cenário desastroso da realidade, pois, além da má vontade para com a verdade, há a proliferação das mentiras. Talvez, na história recente da humanidade, nunca houve uma profusão de mentiras como estamos presenciando atualmente. E, mais do que a proliferação indiscriminada da mentira, é estarrecedor o fato de que muitas pessoas são condescendentes com isso.
Observamos as notícias diárias que se espalham pelas mídias. O ódio e a intolerância invadiram os templos da graça Divina. Líderes religiosos, e não importa de que denominação pertencem, venderam “a alma ao diabo”, pois compactuam com esse universo de enganos e falcatruas. Perseguem e expulsam de seus templos, aqueles que são contrários a uma ordem de conduta que consideram certa e única. Parece que uma profecia está em curso. Vejamos o que diz o livro sagrado que esses líderes trazem sempre à mão:
Nessa época, muitos ficarão escandalizados, trairão uns aos outros e se odiarão mutuamente. Então, numerosos falsos profetas surgirão e enganarão a muitos. E, por causa da multiplicação da maldade, o amor da maioria das pessoas se esfriará (Mateus, 24: 10-12)
E ainda mais, dentre vós mesmos surgirão homens que torcerão a verdade, com o propósito de conquistar os discípulos para si (Atos, 20:30)
Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, porém, avaliai com cuidado se os espíritos procedem de Deus, porquanto muitos falsos profetas têm saído pelo mundo (1 João, 4:1)
É nesse atual cenário desastroso que se cometem muitas perversidades, pois o desinteresse pela verdade, aliado à falsidade que corrói a tolerância e a benevolência, promovem profundos desequilíbrios na serenidade e na harmonia, seja nas pessoas, individualmente, seja na coletividade, gerando desprezos e maldades de todos os tipos.
Talvez seja o momento de um recolhimento, de um retiro para dentro de si mesmo. Fechar as portas ao alvoroço que vem de fora e nos contamina; silenciar a mente, manter a quietude do corpo e se concentrar no Divino que vive em cada um de nós. E, assim, manter a atenção na Voz do Silêncio, que sussurra em nosso coração; essa voz, jamais nos incita ao ódio; ela é a voz do amor, da paz e da felicidade. Ouçamos, pois.
Assim como uma gota de veneno compromete um balde inteiro, também a mentira, por menor que seja, estraga toda a nossa vida.
(Mahatma Gandhi)
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