O Senhor Divino disse: Mais uma vez explicarei a vocês a sabedoria suprema, o melhor de todos os conhecimentos; o sábio que alcança esse conhecimento se eleva à mais alta perfeição. Aquele que se estabelece neste conhecimento supremo, transcende a natureza, pois revela-se a essência, que é idêntica a Mim. Ele não mais nascerá no momento da criação e nem mais se perturbará no momento da dissolução (Bhagavad Gita 14, 1-2)
O capítulo catorze do Bhagavad Gita versa sobre a "natureza material" das entidades vivas. As entidades vivas que se manifestam no mundo, são a expressão da mais pura essência Divina. Todavia, para que se manifestem, são revestidas pela “natureza material”.
A “natureza material” (prakrti) possui três qualidades (gunas): bondade (sattva), paixão (rajas) e ignorância (tamas). É a “natureza material” e suas qualidades que determinam as possibilidades e limites da entidade viva enquanto “ser manifesto no mundo”.
Sattva é pureza, harmonia, serenidade, saúde, felicidade, longevidade, sabedoria, compaixão e iluminação. Rajas é movimento, atividade, equilíbrio dinâmico, busca por realização. Tamas é resistência às mudanças, inércia, lentidão, inatividade, obscuridade, repouso.
Essas qualidades interagem entre si e alternam seu predomínio nas entidades vivas. Por vezes o “modo bondade” prevalece sobre a paixão e a ignorância. Outras vezes, o “modo paixão” domina a bondade e a ignorância; e ainda outras, o “modo ignorância” supera a bondade e a paixão.
A influência dos gunas aprisiona as entidades vivas na materialidade. A “natureza material” é sedutora; ela se manifesta em “mil formas” e cada uma delas tem o seu atrativo, o seu laço, o seu encanto.
No modo bondade (sattva), onde prevalecem as virtudes, a entidade viva é dotada de sabedoria, bem-estar e felicidade. Porém, a entidade viva, torna-se apegada à sua natureza sátivica, que lhe dá a sensação agradável de contentamento e realização espiritual.
Já no modo paixão (rajas), surgem os desejos e afeições mundanas, que enlaçam a entidade viva pelo apego às ações fruitivas. Ganância, agitação, esforço por ganhos mundanos, inquietação e a busca pelos prazeres sensoriais, são os laços típicos da natureza rajásica. E no modo ignorância (tamas), dominam a negligência, a preguiça, a inércia, a indiferença, a indolência.
Os três gunas influenciam, portanto, o nosso comportamento, nossas atitudes, ações, pensamentos e palavras. Eles se alternam sem aviso prévio. Quando percebemos, já estamos em outro modo operacional: ora estamos tranquilos, ora impacientes; num momento somos vegetarianos, no outro, “porco no rolete”; agora esbanjando conhecimento, daqui a pouco entregue à total obscuridade.
Se não percebemos essa influência, somos levados pela “natureza material”, conforme seus “caprichos”. Essa influência em si, não é boa e nem ruim; é apenas a “natureza sendo natureza”: transitória, impermanente, cíclica, diversa, múltipla, que ora expande, ora retrai.
Enquanto não compreendermos o modus operandi da “natureza material” e a influência de suas qualidades na determinação do nosso “jeito de ser”, e que essa natureza nada tem a ver com a nossa essência, que é Satcitānanda (“existência eterna, consciência plena, bem-aventurança infinita”), permaneceremos em aflições, angústias, desesperos, dores e sofrimentos sem fim.
Os gunas estão presentes em todas as criações da “natureza material”, não apenas na constituição das entidades vivas. Sattva, rajas e tamas são energias cósmicas que compõem os cinco elementos básicos da “natureza material”: água, terra, fogo, ar e éter.
Éter ou akasha é o “vazio potencial”, o “fluído ilimitado”, a “fonte da expansão da criação”. É o elemento mais sutil e também neutro. É do éter que surgem os outros quatro elementos. É a combinação dos quatro elementos (água, terra, fogo e ar) que dá origem às mais diversas e múltiplas formas criadas pela “natureza material”.
Os cinco elementos, portanto, trazem em si as características de cada uma das qualidades da “natureza material”:
Éter: predominantemente sattva;
Ar: predominantemente rajas;
Fogo: predomina sattva e rajas;
Água: predomina sattva e tamas;
Terra: predominantemente tamas.
A combinação desses elementos originam as substâncias materiais presentes no corpo físico e que o sustentam, conferindo-lhe saúde em suas funções fisiológicas, mantendo o equilíbrio psicossomático e, como consequência, garantindo imunidade, bem-estar e longevidade.
Aqueles que desejam a longevidade, que é o instrumento para a realização do dharma (virtude e equidade), artha (riqueza material) e sukha (prazer e felicidade), devem depositar a máxima confiança nos ensinamentos do Ayurveda (ciência da vida).
(Ashtanga Hrdayam I, 2)
Estas substâncias são denominadas doshas e são três: vata, pitta e kapha. São estes três doshas que, em estado de equilíbrio, dão suporte fisiológico ao corpo e mantém a saúde em dia; porém, quando em desequilíbrio, provocam doenças e aniquilam o corpo.
Quando o éter se combina com ar, origina-se a substância vata. Vata regula a respiração, o ritmo cardíaco, a contração muscular, o sistema nervoso, o movimento, é a expressão da comunicação e a criatividade.
Quando o fogo se combina com a água, surge pitta. Pitta domina a digestão, o metabolismo, a temperatura corporal, a cognição, o processamento das emoções e experiências, é a expressão da competitividade e a perspicácia.
Terra e água formam o elemento kapha. Kapha responde pela estrutura geral do organismo, a proteção das articulações, das células, a manutenção da imunidade, a resistência física e resiliência, é a expressão de compaixão e generosidade.
É durante a concepção que os doshas se combinam para determinar as características físicas, fisiológicas e psíquicas de cada indivíduo. Os doshas, portanto, estão diretamente relacionados a quem somos em nossa individualidade biológica. Quando estão em “equilíbrio normal” (avikrta), os doshas cumprem plenamente suas funções biológicas, garantindo-nos a “saúde perfeita”.
Porém, a tendência dos doshas é o “desequilíbrio anormal” (vikrta), pois eles aumentam (vrddhi) ou reduzem (ksaya) em quantidade (pramana), qualidades (gunas) e ações (karma), conforme o corpo interage com o ambiente. A própria palavra dosha, da raiz sânscrita dush (“impureza”), significa “aquilo que gera desequilíbrio biológico e provoca doenças”.
Os doshas se desequilibram e reequilibram a partir do princípio samanya vishesha siddhanta, isto é, “os iguais aumentam os iguais, os diferentes diminuem os diferentes”. Por exemplo: para quem é competitivo, quanto mais estiver exposto às competições e estimular a competitividade, maior será o desequilíbrio nas funções psicobiológicas. Alguém com essa característica (predomínio pitta), necessita de atividades colaborativas e cooperativas para manter o equilíbrio e a boa saúde física e mental.
Conforme o guna predominante e a combinação prevalecente dos doshas, a entidade viva é dotada de uma “natureza peculiar”. Assim, quando a entidade viva entra em contato com a “natureza material”, ela se torna condicionada por essas qualidades e substâncias.
Gunas e doshas, portando, são as forças que determinam a natureza da estrutura psicobiológica de uma pessoa; eles são responsáveis pelos padrões biológicos e psicológicos de percepção e resposta aos estímulos externos e internos, pela manutenção da saúde geral e a longevidade, e configuram as tendências básicas individuais de ação e pensamento.
O estudo dos gunas e doshas é fundamental para se alcançar o conhecimento correto sobre a “força que nos move”. Estamos sujeitos à “força da natureza”, somos levados pelas nossas tendências – a natureza que manifesta o karma individual – até o momento em que descobrirmos, que em nós mesmos, se encontra o “poder da transformação”, que é a consciência cósmica (Citta).
Transformar vem do latim transformare, cujo significado é “através de” (trans) “dar forma” (formare). Transformar é “dar forma através de”, ou seja, “converter”, “fazer mudar de aspecto”. Tem a ver com transmutação, isto é, “mudar de uma coisa para outra”.
A “força da natureza” é o que nos mantém aprisionados aos ciclos ininterruptos de nascimentos-mortes (samsara) e nos ilude com seus encantos. Essa força nos ata de tal modo, que é difícil se libertar da materialidade e evoluir para a espiritualidade.
Porém, algo maior que a “força da natureza” é o “poder do espírito”. É o espírito que vivifica e faz com que a matéria se manifeste, e que a natureza se expresse em suas “mil formas”. Somente o “poder do espírito” – Citta – é capaz de superar a “força da natureza” e transformar a nossa “aventura terrena” na mais bela “jornada espiritual”.
Uma pessoa dominada pela “natureza tamásica” pode, pelo “poder do espírito”, esforço e dedicação, fazer prevalecer a “natureza rajásica”; e desta, a partir de bons pensamentos e ações altruístas, conduzir-se para a “natureza sátivica”.
Expressões genuínas de generosidade, simplicidade, humildade, sabedoria e compaixão refletem as características da “natureza sátivica”. É estabelecido em sattva que a transformação pelo yoga será realizada.
A prática do yoga, logo, conduz a essa “transformação da natureza”. As experiências proporcionadas pelo yoga realizam mudanças no “mundo interior” (despertam a consciência) que, como consequência, se refletem em mudanças no “mundo exterior” (na realidade material).
Pelo yoga, portanto, é possível mudarmos o predomínio de uma qualidade para outra. E o primeiro passo para nos libertarmos dos condicionamentos é o conhecimento da influência dos gunas sobre o nosso comportamento. É o início da jornada para realizarmos a perfeita equanimidade, a plena harmonia e a serenidade entre os “dois mundos”.
O yoga nos liberta do domínio da “natureza material”, não nos liberta dela; ela não mais exercerá sua ação regular sobre nosso comportamento, pois reconheceremos de imediato a sua atuação e teremos o antídoto. Com muita prática e devoção, talvez possamos até controlar a “natureza material”. Patanjali descreve no Yoga Sutras, alguns “poderes espirituais” (siddhis) que são desenvolvidos conforme se avança nos estágios da evolução espiritual.
Yoga, antes de mais nada, é um propósito; é pelo propósito que se alcança a transformação. Estude e pratique.
Hari Om Tat Sat.
Aqueles que são iguais em felicidade e sofrimento; que são estabelecidos na consciência plena; que olham para um torrão, uma pedra e um pedaço de ouro como de igual valor; que permanecem os mesmos em meio a eventos agradáveis e desagradáveis; que aceitam tanto o desprezo quanto o elogio com equanimidade; que permanecem os mesmos em honra e desonra; que tratam tanto o amigo quanto o inimigo da mesma forma; e que abandonaram toda a ação intencional - diz-se que eles se elevaram acima dos três gunas (Bhagavad Gita 14, 24-25)
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