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Foto do escritorMarcelo Augusti

YOGA, RACIONALIDADE E RELACIONALIDADE


O mundo em que vivemos se configura pela convivência.

(Humberto Maturana)


A vida humana é repleta de experiências. Lançar-se no mundo é uma aventura que proporciona infindáveis experiências. Enquanto estamos vivos, podemos experienciar o mundo de inúmeros modos. Experiência é conhecimento. Logo, para conhecer algo, necessário se faz a experiência desse algo.


Até por volta do século XVII, as pessoas, de modo geral, conheciam o mundo por meio de seus sentidos corporais, agindo no cotidiano. Era a experiência sensório-motora que proporcionava o “saber sobre a vida”. Não havia muitas dúvidas sobre isso, a não ser as “dúvidas filosóficas” e a fé religiosa, que muitas vezes negavam ao corpo a capacidade de gerar conhecimento.


Diziam, os doutos da época, que tal experiência sensível, não era suficiente para, de fato, conhecer o mundo; eles afirmavam que não havia como “pôr à prova” o conhecimento adquirido pelos sentidos corporais, já que tal conhecimento derivava das impressões pessoais. Tratava-se, segundo os doutos, de um conhecimento superficial.


Este conhecimento sensório-motor, fruto da experiência pessoal do mundo, foi denominado de subjetivo, ou seja, que dizia respeito, unicamente, ao indivíduo. Ele, o indivíduo, por meio de seus próprios recursos sensoriais e mentais, experienciava o mundo, interpretava suas impressões e disso extraía um saber peculiar.


Esta subjetividade, todavia, não podia ser compartilhada, pois os outros indivíduos não teriam acesso ao modo como “ele conheceu”, dado que o “seu conhecimento” foi adquirido, exclusivamente, pelos “seus sentidos”, “suas experiências”, "suas interpretações" pessoais.


Para resolver esta questão, que incomodava muita gente, o “espírito crítico”, que comandava a revolução científica, passou a admitir como correto apenas o conhecimento que fosse posto à prova pelo exame meticuloso da razão.


Inaugurava-se, assim, a era da objetividade científica, em detrimento da subjetividade empírica. Não mais o corpo e os sentidos, porém, a razão e o intelecto seriam os fatores determinantes para o conhecimento do mundo. O conhecimento sensível tornou-se “senso comum”, sem qualquer valia.


Mas o que vem a ser a razão e qual sua relação com o intelecto? O significado etimológico da palavra razão vem de duas fontes: do latim rationem, “cálculo, medida, regra”, que é derivado de ratio, aquilo que “determino, julgo, estabeleço”; e do grego logos, “fundamento, proporção, discurso”.


Razão, portanto, é a capacidade de raciocinar ordenadamente, compreender adequadamente, ponderar com clareza; é o “pensamento lógico” que sustenta um argumento, de modo que este seja compreensível a todos. Este "conhecimento racional" permite que todas as pessoas tenham acesso a um saber que pode ser compartilhado por todos, pois pode ser verificado e comprovado.


Assim, a experiência sensível e, por consequência, o corpo e os sentidos, foram relegados a planos inferiores, quando o tema é “conhecer o mundo”. A razão, o intelecto, a capacidade de raciocínio - o pensamento - foram elevados ao mais alto patamar das capacidades humanas, e que passaram a determinar o que é certo ou errado, justo, belo e bom.


Da razão vem a racionalidade, ou seja, a qualidade ou estado de ser sensato, com base em fatos e procedências. A racionalidade implica em equilíbrio emocional, bom-senso, prudência; agir com racionalidade é agir com argumentos válidos e comprovados, para que sustentem a ação.


Até aqui, não há nada de errado com a razão e o conhecimento que dela procede. Embora ela tenha sido a causa do “desencantamento do mundo”, pois quase não sobrou espaço para a sensibilidade, a imaginação, o sonho e a criatividade, a racionalidade é uma forte aliada contra as mazelas sociais, as mentiras descaradas de pessoas sem ética, as falácias de políticos corruptos e as fakes news que insistem em bombardear as redes virtuais.


Mas a razão se torna um problema quando passa a ser o principal instrumento para alcançar resultados, quando ela se torna "um fim em si mesmo". No final do século XIX, o sociólogo alemão Max Weber, percebeu o uso interesseiro da razão, denominando de “racionalidade instrumental” tudo aquilo que se faz, não a partir de princípios éticos e para fins elevados, mas ao modo como se faz e ao resultado que se pretende alcançar.


O progresso e o desenvolvimento da humanidade, em seus aspectos científicos, tecnológicos e industriais, foram baseados nessa “racionalidade instrumental”. Privilegiando o acúmulo de bens materiais, a razão instrumental valoriza tudo o que é prático, controlável, manipulável, individual; calcula com justeza as disponibilidades, os meios de ação, os recursos financeiros, as possibilidades de execução e as probabilidades de sucesso.


A razão instrumental visa apenas a finalidade e o sucesso da empreitada; todo o processo é meticulosamente calculado para minimizar prejuízos e aumentar os lucros. Mesmo que sua finalidade não seja racional em si, ela se torna racional pela operacionalidade, isto é, pelo estabelecimento do cálculo, da regra, da medida e da proporção.


A racionalidade instrumental elevou a objetividade científica a um patamar “irracional”: por exemplo, produzir gases tóxicos e mortais e armas fantásticas, sem qualquer preocupação ética ou moral se tais produtos irão provocar a desgraça e a morte de milhões de seres ou mesmo destruir a natureza e o próprio planeta.


A racionalidade, portanto, por si só, não é suficiente para que os humanos experienciem o mundo de maneira que o conhecimento que adquiram da vida, possam-lhes proporcionar convivências onde a paz, o amor e a felicidade constituam-se como os fundamentos da existência. É necessário algo mais para uma vida plena.

 

O mundo em que vivemos não é independente daquilo que fazemos. A realidade do mundo em que vivemos se constrói, diariamente, na dinâmica do nosso modo de se relacionar com ele. A fluidez da vida ocorre, particularmente, nas relações interpessoais.

(Humberto Maturana, El sentido de lo humano, 1991)

 

Considerando o yoga como um processo educativo direcionado para o “despertar da consciência”, pode-se dizer que o yoga se configura como um espaço para “reencantar o mundo”, isto é, para que possamos reestabelecer a experiência sensível como suporte para o conhecimento do mundo. Esse “reencantamento” passa, necessariamente, pela questão da relacionalidade.


Mas o que vem a ser relacionalidade? Relacionalidade é a condição humana de interagir com o outro, identificando-o como um semelhante; é a base da alteridade, cuja expressão maior é a empatia. 


Alteridade é saber que existem diferenças entre os seres sencientes, e respeitar essas diferenças é a condição básica contra a discriminação e o preconceito. Empatia é saber se colocar na situação do outro, entender seus medos e angústias, identificando-se com o seu sofrimento, “como se” estivesse sentindo a mesma dor e sofrimento alheio em si mesmo, ou seja, é “sentir o que o outro sente”.

 

Todas as possibilidades de “ser humano” estão em mim: posso ser um torturador e posso ser justo. A única coisa que me permitirá em algum momento da vida não ser o que não quero ser, é saber que não posso ser. (Humberto Maturana, El sentido de lo humano, 1991)

 

A relacionalidade, portanto, é o pressuposto necessário para a racionalidade. Saber se relacionar é fundamental para agir com razão, o que significa ser ético e verdadeiro com todos os seres e em todas as circunstâncias.


Esta ética passa, necessariamente, pelas virtudes da sabedoria, da compaixão, da humildade e da generosidade. Progresso e desenvolvimento sem equanimidade são apenas a perpetuação do horror, da miséria, da indiferença e da ignorância.


Yoga é equanimidade, e isto tem a ver com discernimento. O yoga nos possibilita a vida contemplativa. Esse modo de vida aproxima-se mais da real finalidade humana, pois as pessoas que vivem assim, buscam o bem por ser o bem, e não por quererem outra coisa a partir dele; elas são orientadas pelo exercício de uma razão sem segundas intenções.


A vida contemplativa é a única que permite a verdadeira liberdade. É essa liberdade com respeito a qualquer finalidade ou utilidade, que é a essência da felicidade. Uma vida que se vive apenas para o trabalho, a eficiência, a produtividade, o desempenho e o consumo, torna-se uma vida meramente funcional, utilitária, artificial e, por consequência, sem brilho, sem alegria, sem satisfação. Como afirma um renomado sociólogo: “Onde impera apenas o esquema de estímulo e reação, carência e compensação, de problema e solução, de objetivo e ação, a vida se reduz à simples sobrevivência, e nada mais” (Byung-Chul Han, Vita Contemplativa ou Sobre a Inatividade, 2023).


O mundo em que vivemos, do modo como o construímos e estamos construindo, arraigados na racionalidade instrumental, exige cada vez mais que a nossa atenção se disperse entre as muitas atividades, muitas informações e processos. Na prática, não há espaço para a inatividade, o descanso, o tédio, o ócio criativo; a inquietação e a farta atividade ao qual estamos atolados, apenas provoca mais do mesmo.

Fomos condicionados a crer que ser um "especialista multitarefas” é o que conta pontos para “se dar bem” na vida.  Todavia, isto é um retrocesso à criatividade, e inviabiliza qualquer possibilidade de reflexão e contemplação da existência. Afinal, à quem se dedica a tudo, não sobra tempo para o nada.


É no estado contemplativo que podemos nos aprofundar no conhecimento das coisas; porém, isso apenas é realizado quando aprendemos a desacelerar, a sair do modo hiperativo e multitarefas que degrada a existência; precisamos reabilitar um estado passivo de plena atenção e tranquilidade, para que aflore o discernimento.


Como dito, yoga é equanimidade. O cultivo de um espírito sereno, equilibrado e imparcial, fruto do discernimento, é o que nos torna hábeis no trato com todos os seres sencientes. A equanimidade é a base da relacionalidade; enquanto o discernimento é o ápice da racionalidade.


Ser racional e relacional é o modo como devemos nos apresentar ao mundo, pois são os pilares que sustentam a integridade da boa convivência, e que nos levam a manter uma atitude de aceitação e compreensão diante de todos os seres e nas mais variadas circunstâncias da vida.


Ser racional e relacional não significa, todavia, que devemos aprovar tudo o que os outros fazem, concordando com os absurdos daqueles que se entregam à racionalidade instrumental; porém, é ser capaz de manter uma abertura permanente para o diálogo, e a oportunidade, sempre presente, de compreensão e reconciliação.

 

Se compreendo o mundo em que vivo e me movimento em harmonia com ele, tudo o que faço em concordância com essa harmonia, gera entendimento. Desde o momento em que se vive a harmonia da existência, não há esforço, não há sofrimento, não há angústia.

(Humberto Maturana, El sentido de lo humano, 1991)

 

A experiência vivida pelas práticas de yoga retomam a importância da integração do “mundo interior” e “mundo exterior”, a harmonia espírito e matéria; isso se faz por uma razão que podemos dizer sensível, que busca unir os opostos e, cujo maior benefício, é resgatar a beleza da vida e a alegria de viver.


Esta “razão sensível”, onde a comunhão com a natureza e a ampla e profunda interrelação com os seres se apresenta como algo essencial à existência humana, permite o desfrutar da vida em plena harmonia e serenidade com tudo e com todos.


Quanto maior a consciência da importância dessa integração – da não exclusão dos opostos – maior será a percepção de que o Universo é fonte inesgotável de vitalidade, energia, amor, paz e felicidade. Pois, se enclausurarmos a racionalidade na gaiola do utilitarismo egoísta, distanciando-a do “mundo vivido”, uma racionalidade fechada em si mesmo, "razão pela razão", seremos incapazes de perceber e viver a vida em seu esplendor.


Ficar se lamentando pelo que não se tem, lastimando perdas, julgando e condenando tudo o que não estiver conforme “a minha razão”, apenas estanca a nossa evolução espiritual. E o yoga pode auxiliar, e muito, a nos livrarmos, definitivamente, de hábitos e costumes que são obstáculos à jornada rumo ao divino. Sair do automático e desacelerar, é o início de uma nova vida racional e relacional.


Praticar a contemplação caminhando é um excelente meio para se aprender a desacelerar; andar sem expectativas, apenas andar pelo andar, sem metas ou objetivos a alcançar. Perceber o ritmo dos próprios passos, estar atento ao modo como os pés tocam o solo, se suavemente ou com aspereza, diz muito sobre como nos relacionamos com a vida. Sentir a própria respiração, se acelerada e superficial ou tranquila e profunda, revela-nos o quanto nosso “mundo interior” está saudável ou necessitando de cuidados.


Caminhar sem expectativas do que encontrar pelo caminho, mas ser capaz de observar com atenção e serenamente tudo o que se passa ao redor; apenas observar, sem julgar, sem projetar a própria sombra (nossos conceitos e preconceitos) naquilo que o sol ilumina à frente. Enfim, permitir que essa luminosidade nos esclareça sobre “nossas razões”, e nos liberte de nossos medos e angústias.


Um passo, uma inspiração; outro passo, uma expiração; se precisar, pare, olhe atentamente, permita o desabrochar do sentimento, experiencie a vida que se revela, estabeleça uma relação íntegra com o presente, desfrute o “agora”.


Esta experiência sensível da caminhada contemplativa, que o yoga nos proporciona, é um convite para aprendermos que a racionalidade flui livre e harmoniosamente pela relacionalidade.


Yoga é plenitude. Não desperdice o que ela tem a oferecer a você. Estude, pratique, liberte-se.


Hari Om Tat Sat.

 


Quando estancamos as relações humanas, afirmando que “as coisas são como são”, negando-lhes a possibilidade de serem diferentes do que se mostram, não permitimos a fluidez da vida em um mundo em constante mudança. Porém, se há uma possibilidade de refletirmos que existe um espaço para a mudança, saímos da armadilha de que “as coisas são como são”. 

(Humberto Maturana)

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