O que temos de fazer, parece-me, é tomar consciência das condições da nossa existência diária, dos nossos desgostos, das nossas aflições, da nossa confusão e conflito, e tentar compreendê-los muito profundamente, de modo a estabelecermos uma base correta para começar. Não há outra saída. Temos de encarar-nos tal como somos, em vez de tentar ajustar-nos a qualquer padrão ou a qualquer ideal. Temos de encarar realmente aquilo que somos, e a partir daí dar origem a uma transformação radical. (Jiddu Krishnamurti, O despertar da sensibilidade)
Conta-se que, em certa ocasião, uma mulher levou seu filho até Gandhi, pedindo-lhe que dissesse ao pequeno que parasse de comer açúcar. O Mahatma, olhou para a criança, voltou-se para a mulher e disse-lhe: “Vai embora, e retorne daqui trinta dias”.
Um mês depois, a mulher retornou com o filho. Novamente, pediu a Gandhi que dissesse ao filho para que parasse de comer açúcar. O Mahatma, então, disse ao pequeno: “Pare de comer açúcar”.
Naquele momento, a mulher, indignada, disse a Gandhi: “Mas por que o Mahatma não disse isso trinta dias atrás?”. E Gandhi respondeu: “Porque trinta dias atrás, eu ainda comia açúcar. De lá para cá, deixei de comer”.
O que podemos aprender com Gandhi, o Mahatma (“a grande alma”), nesse episódio de sua vida, é que devemos agir com sinceridade sempre. Aquela antiga frase “faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço”, é a completa perversão do que é a sinceridade.
A palavra “sincero” remonta a uma lenda popular muito interessante. Dizem que na época em que Roma dominava o mundo, era notável a capacidade técnica dos artesãos romanos na fabricação de suas peças e objetos de cerâmica.
Esses artesãos, com um talento inigualável e procedimentos insuperáveis, fabricavam vasilhas, copos e vasos que, tal era o refinamento e perfeição de sua apurada técnica, que era possível ver o conteúdo dentro das peças, fosse água, vinho ou qualquer outra coisa.
As pessoas, quando viam esses objetos, perfeitamente límpidos e transparentes, quase não acreditavam que eles eram peças de cerâmica. E, admiradas, exclamavam: “Que perfeição! Parece até sem cera!”. Sine cerus – sem cera, sincero, então, significa “que deixa transparecer o que está no interior”.
Não importa se isso é uma lenda popular. O que importa aqui é a compreensão da sinceridade. Uma pessoa sincera é “sempre igual a si mesmo”, “aquela em que não há contradição”. Sincero é alguém “puro de intenção”, "transparente".
A sinceridade é a virtude de quem expressa verdadeiramente aquilo que é, sempre deixando transparecer, claramente, o seu interior. Uma pessoa sincera não usa disfarces, não é maliciosa ou dissimulada; ela é verdadeira em suas ações e palavras. Ela faz aquilo que fala, e fala aquilo que pensa. A sinceridade, enquanto virtude, afirma a dignidade e a decência do ser humano.
Mas, vejamos bem. Há pessoas que “falam na cara” o que pensam; e acreditam, assim, que são sinceras. Mas sinceridade nada tem a ver com isso. Pessoas que “falam o que pensam” para ofender, humilhar, difamar, desonrar, caluniar, desacreditar, infamar e macular, agem por vaidade, presunção, egoísmo, narcisismo e preconceito.
Além do mais, tais pessoas são deselegantes, agressivas, estúpidas, insolentes e mal-educadas, pois não medem o que dizem, e falam o que querem na hora que querem, “doa a quem doer”. Isso nada tem a ver com sinceridade, pois não atesta a dignidade e a decência do ser humano.
A sinceridade é a mais elevada expressão de um “coração puro” e manifestação genuína de um propósito verdadeiro. Há, pois, um viés moral e ético que perpassa a pessoa sincera e que culmina na alteridade. Pois para unir-se em verdadeira intenção com o próximo, necessário se faz ser sincero.
A sinceridade brota a partir do conhecimento profundo de si mesmo. “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses”, foi a exortação do filósofo grego Sócrates (séc. V a.C.), que ecoa pelos séculos, para todos aqueles que buscam a sabedoria transcendental.
Conhecer a si mesmo é “despertar a consciência” para a nossa essência espiritual e para a realidade suprema de que tudo no universo está interconectado. Quando o indivíduo alcança esta realização, ele torna-se “o mestre de si mesmo”, o que faz dele um ser humano melhor.
Atma-vichara ou “o conhecimento da essência”, é uma prática ióguica de autoinvestigação. Trata-se de uma “reflexão minuciosa” (vichara) a respeito do “Si Mesmo” (atman), isto é, “daquilo que somos” em essência.
A palavra atman quer dizer “o que está e se encontra em toda parte”; é o espírito, “aquele que respira”, o princípio vital de tudo o que se manifesta. Atman é a “Consciência Cósmica”, o supremo, infinito, eterno e bem-aventurado Brahman.
Porém, antes de “conhecer a essência”, aquilo que é o mais amplo e profundo do nosso ser, temos que conhecer o “eu” comum, o “eu” cotidiano, com todos seus impulsos, condicionamentos, desejos, ambições, aflições, alegrias, tristezas, dores, prazeres e sofrimentos, e o que há de belo e feio nele.
Enquanto não conhecermos esse “eu” – o que o move, o que nos torna a ser esse “eu” – seremos uma farsa. Não importam as conquistas alcançadas em nossa “vida material”; quando chegar o fim destinado à manifestação desse “eu”, a farsa será revelada; e teremos a certeza de que a nossa vida foi uma total canastrice.
Para conhecer esse “eu”, todavia, necessitamos de liberdade. Uma liberdade que está para além dos tantos significados conferidos a essa palavra, tão desgastada atualmente. Trata-se, aqui, de uma liberdade de ser, que é uma capacidade de agir genuinamente.
A ação genuína é algo raro. Quando passamos à investigação do “eu”, iremos perceber que a maioria das respostas que damos aos estímulos do “mundo exterior” são baseadas no conhecimento que acumulamos ao longo da vida, provenientes da nossa religião, da educação, da política, da família, etc.
É a partir dessas experiências de vida e conhecimentos que se acumulam, que olhamos para o “mundo exterior” e também para o nosso interior. É desse conhecimento e olhar condicionado que julgamos o que é certo ou errado, bom ou mau, justo e injusto, etc.
Mas este modo de “olhar para si mesmo e para o mundo” é apenas sobrepor à realidade e aos fatos da vida, as nossas próprias projeções. Isto é o conhecimento acumulado, e assim traduzimos e interpretamos o que vemos, de acordo com o passado e conforme as experiências previamente adquiridas.
O conhecimento do "eu" depende de uma capacidade refinada de observação. Para observar e aprender sobre o "eu", a atenção deve ser plena. Aprender é inteiramente diferente de acumular. Nossa cultura e sociedade nos estimula a acumular informações. Com a tecnologia digital, nos tornamos pen drives ambulantes, onde registramos tudo o que se passa, principalmente, no “mundo virtual”.
É a partir desses registros que passamos a pensar, agir e reagir ao ambiente em que vivemos. Inconscientemente, apenas acrescentamos mais e mais informações, 99% delas totalmente inúteis. Embotamos a consciência com tantas besteiras, que perdemos a sua vivacidade para aprender e compreender. E confundimos esse acúmulo de informações, esse besteirol, com aprendizagem.
O yoga nos possibilita a observar atentamente e a conhecer o “eu”. O segundo aforisma do Yoga Sutras de Patanjali afirma: yoga chitta vritti nirodha, que significa “yoga é a cessação (nirodha) das perturbações (vritti) da mente (chitta)”. É esta “mente tranquila” que estará apta a conduzir-nos ao conhecimento do “eu”.
Dissemos que para “unir-se em verdadeira intenção” com o próximo, necessário se faz ser sincero. Esse “unir-se verdadeiramente” é yoga. Para que essa união se realize, deve-se haver sinceridade de propósito. Esta sinceridade somente surge quando nos libertamos de tudo o que restringe e oprime a consciência e, assim, poderemos conhecer o “eu" e nos abrir-mos para "outros eus"
O conhecimento desse “eu”, portanto, é que permitirá que a sinceridade emerja de nosso interior. É com base nessa sinceridade, na liberdade e com a “mente tranquila” que estaremos aptos a investigar para além do “eu”, e permitir, assim, o resplandecer do Si Mesmo, o Atman, a essência.
Sem transparência não se faz yoga; sem pureza de intenção não se alcança o autoconhecimento. Uma consciência perdida em meio a uma farsa não nos transformará no “mestre de si mesmo”.
Yoga é a revelação da “verdade interior”, que apenas surge quando a liberdade e a sinceridade estão presentes. Leia, reflita e medite.
Hari Om Tat Sat.
Conhecer-se a si mesmo é a mais árdua tarefa em que cada um pode se empenhar. Conhecer-se a si mesmo é observar-se. Por meio da observação estamos a aprender, a aprender constantemente. Mas para cada um se observar, tem de haver liberdade; uma liberdade que não seja reação, uma revolta, um livrar-se de algo que incomoda. Falo de uma liberdade psicológica, que é não estar fascinado, subjugado ou oprimido por coisa alguma, por nenhuma circunstância, por nenhuma rotina, tradição, crença, dogma, ideologia. Essa observação é absolutamente necessária, porque, se não nos conhecermos a nós mesmos, não se revelará o que verdadeiramente somos. Os políticos, os gurus e os intérpretes tornam as pessoas insinceras, pois a sua influência aprisiona a consciência, e não as deixam conhecer os seus próprios pensamentos, o que elas realmente são. Mas a mente que aprende, ou se encontra num estado de aprender, está sempre num estado de livre e atenta observação.
(Jiddu Krishnamurti, O despertar da sensibilidade)
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